Processo nº 929/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 17 de Janeiro de 2019
ASSUNTO:
- Aplicação da lei no espaço
- Natureza do bem matrimonial
SUMÁRIO:
- Tendo provado que os cônjuges passaram a residir em Hong Kong após o casamento no Interior da China, onde formalizaram novamente o casamento e não tendo provado que tinham fixado alguma vez a residência conjugal habitual no Interior da China, a lei competente para reger a situação é a lei de Hong Kong, cujo regime matrimonial supletivo é o de separação de bens.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 929/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 17 de Janeiro de 2019
Recorrente: B (Autora)
Recorridos: C, D, F e G (1º a 4ª Réus)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 14/05/2018, julgou-se improcedente a acção interposto pela Autora B.
Dessa decisão vem recorrer a Autora, alegando, em sede de conclusões, os seguintes:
1. O presente recurso ordinário é interposto da sentença proferida nestes autos em 14 de Maio de 2018 que julgou improcedente a acção e absolvou os réus dos pedidos formulados.
2. A sentença recorrida julgou improcedente a acção porquanto entendeu que não se provou que as partes tinham residência habitual comum à data do casamento celebrado no Interior da China, já que o casamento celebrado em Hong Kong em 4 de Setembro de 1975 foi meramente a repetição de um casamento já celebrado, ou, subsidiariamente, o local da primeira residência conjugal.
3. E que, dessa forma, era de afastar a norma contida no artigo 51 ° do Código Civil de Macau.
4. Erroneamente, porém.
5. Tendo casados no Interior da China em 1973, a lei competente do Interior da China seriam as normas do artigo 10° da Lei do Casamento da República Popular da China de 1950, com um esclarecimento autêntico posterior.
6. Nos termos dessa lei, a quota ideal em questão é considerada um bem comum do casal.
7. O argumento-chave em que se fundamentou a sentença recorrida é o de que a Autora não logrou demonstrar que juntamente com o seu ex-marido viviam no Interior da China quando lá se casaram.
8. Mas este argumento improcede, pois, sendo ambos chineses de nacionalidade e ali residentes habituais, e atendendo à carência de autorização governamental da RPC para emigração de seus cidadãos, a vida em conjunto do casal no Interior da China se presume.
9. A presunção de vida comum do casal constitui uma característica essencial do matrimónio.
10. E esta presunção só cessa a partir da data em que passou a viver em Hong Kong.
11. A excepção de que o casal embora casado não estivesse a viver em conjunto é que deveria ter sido alegado e demonstrado.
12. Com efeito, sendo a autora e seu ex-marido ambos chineses de nacionalidade e ali residentes habituais, a vida em conjunto do casal no Interior da China se presume.
13. Devendo, pois, correctamente subsumindo os Jactos e aplicado o Direito, ter sido aplicado o conceito-quadro do artigo 51º n.º 1 do Código Civil de Macau, julgando o imóvel em causa um bem comum do casal, e inválido o negócio de compra e venda do imóvel.
14. Agindo diversamente, a sentença recorrida violou a lei, a norma constante do conceito-quadro do artigo 51º do Código Civil de Macau.
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As 3ª e 4ª Rés F e G responderam à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 369 a 377 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
- 透過2002年10月21日之公證書,H取得物業標示編號***的 “B2” 獨立單位 (位於澳門......斜巷 (......上巷) ...號......閣...樓...座) 的四分之一所有權。(見卷宗第42至45頁) (alínea A) dos factos assentes)
- 根據物業登記登錄編號第****9G號,H被登記為上述獨立單位的四分之一所有權人。(見卷宗第26頁) (alínea B) dos factos assentes).
- 於2012年02月07日,H與被告G簽署買賣公證書,H聲明以澳門幣600,000元之價值,將A.項所指獨立單位的四分之一所有權出售予被告G。(見卷宗第53至55頁) (alínea C) dos factos assentes).
- 根據物業登記登錄編號第****90G號,C.項中由被告G取得的原屬H的四分之一所有權被登記於G名下。(見卷宗第27頁) (alínea D) dos factos assentes).
- H於2014年12月06日在澳門逝世。(見卷宗第9頁)(alínea E) dos factos assentes).
- 原告於1997年起移居美國。(alínea F) dos factos assentes).
- 原告與H在1973年10月26日於中國內地結婚。(resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- Após o casamento, a Autora emigrou para Hong Kong, e depois a Autora e H passaram a viver em Macau, onde este último viveu até ao seu falecimento (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
- 透過於2012年05月17日轉為確定的初級法院編號CV2-12-0088-CPE兩願離婚案件,原告與H之婚姻關係被解銷。(resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- 1950年頒布的《中華人民共和國婚姻法》第10條規定: “夫妻雙方對於家庭財產有平等的所有權與處理權”。 (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- 1950年04月14日中央人民政府法制委員會向中央人民政府委員會第七次會議所作《關於中華人民共和國婚姻法起草經過和起草理由的報告》中說明儘管男女婚前各自所有的財產,均解為夫妻共同所有和共同處理的家庭財產。(resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- H在未有通知原告也沒有取得原告同意的情況下作出已證事實C.項的行為。(resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Pelo menos desde o ano de 1997, a Autora foi viver para a América e H continuou a morar em Macau, ficando cessadas as relações de coabitação, assistência ou cooperação e passando os dois a fazer vidas totalmente separadas (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- H, médico de profissão, continuou a exercer a sua actividade e com os rendimentos da mesma adquiriu, em 2002, o imóvel em causa, sem usar qualquer dinheiro ou valor que tenha tido origem na relação conjugal que o ligava à Autora (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- A Autora não contribuiu seja por que forma para a aquisição do imóvel em causa (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- A Autora sabe que em nada contribuiu para a aquisição do imóvel em causa (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
- A Autora e H formalizaram novamente o casamento no dia 04 de Setembro de 1975 em Hong Kong (resposta ao quesito 13º da base instrutória).
- O 1º Réu nasceu em ** de Abril de 19**, em Hong Kong (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- O 2º Réu nasceu em ** de Agosto de 19**, em Hong Kong (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- No dia 04 de Setembro de 1975, H vivia em ...... St., n.º ..., ...º andar, Cheung Chau, Novos Territórios - Hong Kong (resposta ao quesito 16º da base instrutória).
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III – Fundamentação
A sentença recorrida tem o seguinte teor:
“…
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Pede a Autora que fosse anulada a compra e venda de uma quota ideal correspondente a ¼ de um imóvel feita entre o seu ex-marido, H, e a 4ª Ré, em 7 de Fevereiro de 2012, através da qual aquele vendeu a esta o citado bem.
Para o efeito, alega que a quota ideal em questão foi adquirida, em 2002, pelo seu ex-marido a quem a Autora ainda estava ligada pelo casamento celebrado no Interior da China em 1973 onde os nubentes residiam à data do casamento e que a transmissão impugnada foi feita sem aviso nem consentimento da Autora.
Segundo a Autora, a transmissão feita pelo seu ex-marido à 4ª Ré é anulável porque o objecto do negócio era um bem comum pertencente à Autora e ao seu ex-marido por força do regime de bens em que os mesmos estavam casados para o que era necessário o consentimento da Autora.
Contestando a acção, vêm as 3ª e 4ª Rés reconhecer apenas a aquisição feita pela 4ª Ré da quota ideal bem como aceitar o alegado pela Autora de que se tinha separado do seu ex-marido em 1997 impugnando os demais factos invocados pela Autora. Além disso, excepciona a pretensão desta alegando que a quota ideal em questão foi adquirida com rendimentos exclusivamente auferidos pelo ex-marido da Autora, já depois da separação total do casal por 5 anos e para o qual nenhum contributo a Autora teve. Ainda em sua defesa, mas já por meio de articulado superveniente, sustentam as mesmas Rés que a Autora e o seu ex-marido registaram o casamento em Hong Kong em 4 de Setembro de 1975 data em que o ex-marido da Autora residia em Hong Kong.
Com base nesses factos, as 3ª e 4ª Rés entendem, por um lado, que o bem transmitido no negócio impugnado pertencia exclusivamente ao ex-marido da Autora razão por que a transmissão não carecia do consentimento da Autora e, por outro, que esta última abusou do seu eventual direito de impugnação.
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Flui da exposição feita que o que interessa aqui esclarecer é: se a venda feita pelo ex-marido da Autora carecia do consentimento desta.
Para esse efeito, impõe-se determinar a natureza da quota ideal alienada: se era um bem comum pertencente ao ex-marido da Autora e à Autora ou era um bem pessoal daquele. Isto porque só no caso de se entender que o mesmo tem a natureza de um bem comum é que se coloca a questão de saber o ex-marido da Autora podia aliená-lo sem consentimento da Autora e, tendo assim feito, quais são as consequências designadamente se assiste à Autora o direito de impugnar a transmissão.
Inicia-se, pois, com a questão da natureza do bem alienado.
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Natureza do bem alienado
Está assente que a Autora e o seu ex-marido, celebraram casamento, em 1973, no Interior da China tendo os mesmos formalizado novamente o casamento, em Hong Kong, em 4 de Setembro de 1975, casamento este que veio a ser dissolvido por divórcio em 2012.
Quanto ao bem, segundo a matéria provada, o mesmo foi adquirido pelo ex-marido da Autora em 2002, ou seja, quando a Autora e o seu ex-marido ainda estavam casados entre si.
Assim, para cabalmente responder à questão colocada, urge apurar se a Autora e o seu ex-marido estavam vinculados a um regime de bens ou a algumas regras que definiam a titularidade dos bens adquiridos durante o período de tempo em que os mesmos estavam casados entre si.
Por outra banda, por as partes terem alegado que, à data do casamento, a relação estava em contacto com diferentes ordenamentos jurídicos e por estar provado que a Autora e o seu ex-marido passaram, entretanto, a viver em Macau e, posteriormente, se separaram, vivendo um em Macau e outro nos Estados Unidos da América, há que determinar, antes de mais, a lei competente para responder à questão de saber se vigorava entre os mesmos algum regime de bens ou regras que definiam a titularidade dos bens adquiridos durante o citado período.
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Sustenta a Autora que estava casada com o seu ex-marido num regime de bens que qualifica a quota ideal sub judice com bem comum porque ao presente caso é aplicável a lei do Interior da China.
Defendem as 3ª e 4ª Rés que a lei competente é a lei de Hong Kong por força da qual o citado casal estava casado no regime de separação de bens.
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A ser competente o do Interior da China, serão aplicáveis as normas dos artigos 10º da Lei do Casamento da República Popular da China de 1950 que têm a seguinte redacção: “夫妻雙方對於家庭財產有平等的所有權與處理權” para a qual existe o seguinte esclarecimento: 1950年4月14日中央人民政府法制委員會向中央人民政府委員會第七次會議所作《關於中華人民共和國婚姻法起草經過和起草理由的報告》中說明儘管男女婚前各自所有的財產,均解為夫妻共同所有和共同處理的家庭財產。
Nesse cenário, a quota ideal em questão era um bem comum da Autora e do seu ex-marido.
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Segundo a lei de Hong Kong, o casamento não cria qualquer alteração na titularidade nem dos bens adquiridos pelos nubentes antes do casamento nem dos bens que vêm a ser adquiridos durante a constância do casamento podendo cada um dos cônjuges dispor livremente do que lhe pertence aplicando apenas, no caso de divórcio, anulação do casamento ou separação judicial do casal, o Chapter 192 – Matrimonial Proceeding and Property Ordinance, que fixa as regras que presidem à divisão do bens considerados matrimoniais ou não matrimoniais.
Dito de outra maneira, não existem normas no ordenamento jurídico de Hong Kong que fazem alterar a titularidade dos bens pertencentes a cada uma dos cônjuges; o que existem são normas que disciplinam a divisão dos bens existentes aquando da extinção do casamento por divórcio, anulação do casamento ou separação judicial do casal.
Ou seja, durante o casamento, os bens mantém-se na titularidade do cônjuge que os adquire com os seus meios não se comunicando ao outro cônjuge; só aquando da extinção do casamento, por divórcio, anulação do casamento ou separação judicial, é que se coloca a questão de saber se há bens matrimoniais ou não matrimoniais a partilhar, bens estes que, nesta fase derradeira do casamento, ainda se encontram na titularidade dos cônjuges, como é óbvio.
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Se a lei de Macau dever reger o presente caso, as normas dos artigos 1698º a 1736º do CC de 1966 que disciplinam as convenções antenupciais e os regimes de bens são aplicáveis ao caso.
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No que diz respeito ao ordenamento jurídico dos Estados Unidos de América, por não se saber em que Estado dos Estados Unidos de América reside a Autora, não é possível identificar as normas que seriam aplicáveis.
Dispõe o artigo 22º do CC que “A lei exterior a Macau declarada aplicável é interpretada dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele fixadas. 2. Na impossibilidade de averiguar o conteúdo dessa lei, recorrer-se-á à lei que for subsidiariamente competente, devendo adoptar-se igual procedimento sempre que não for possível determinar os elementos de facto ou de direito de que dependa a designação da lei aplicável.”
Assim, na análise a proceder não se pode atender às eventuais normas provenientes do ordenamento jurídico americano.
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Segundo João Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3ª edição, Almedina.Coimbra, pgs 404, 405 e 409, “Conforme se depreende do teor do art. 52.º (o correspondente ao artigo 50º do CC de Macau), que apenas exclui do seu âmbito as matérias a que se refere o art. 53.º (o correspondente ao artigo 51º do CC de Macau), a lei designada como estatuto das relações pessoais dos cônjuges regula não apenas matérias estritamente pessoais como ainda questões de carácter patrimonial: todas aquelas questões cuja solução não é posta na dependência do particular regime de bens (legal ou convencional) do casamento, mas antes vale de igual modo para todas as uniões matrimoniais(1) Trata-se de questões reguladas por normas instituidores daquilo a que também se chama um , normas estas que se preocupam com assegurar uma certa unidade de direcção dos interesses do casal, ou com uma certa solidariedade entre os cônjuges, e que, complementar ou correctivamente, também podem querer garantir uma certa independência entre o mesmos cônjuges, neste ou naquele domínio.” sendo “,.. reconduzíveis ao conceito-quadro do art. 53.º (o correspondente ao artigo 51º do CC de Macau) todas aquelas normas materiais que estabelecem uma regulamentação diversificada para as relações patrimoniais dos cônjuges, conforme o regime de bens que vigora para dado casamento, e, em função desse regime, fixam as regaras da partilha, no termo das ditas relações patrimoniais. Trata-se, portanto, daquelas disposições que não são comuns a todos os casamentos, por isso mesmo que são específicas de certo ou certos regimes de bens.” (sublinhado nosso)
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Ora, tendo esses ensinamentos presentes, conclui-se facilmente que as normas existentes no ordenamento jurídico de Macau disciplinam de forma diferenciada as relações patrimoniais dos cônjuges tendo em conta o regime de bens instituído na sociedade conjugal aquando do casamento. Assim, as mesmas têm por objecto regular a substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens legal, ou convencional sendo subsumíveis no conceito-quadro do artigo 51º do CC.
Preceitua o artigo 51º do CC que “1. A substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, legal ou convencional, são definidos pela lei da residência habitual dos nubentes ao tempo da celebração do casamento. 2. Não tendo os nubentes a mesma residência habitual, é aplicável a lei da primeira residência conjugal. 3. Se a lei aplicável for outra que não a de Macau e um dos nubentes tiver a sua residência habitual no território de Macau, pode ser convencionado um dos regimes admitidos neste Código.”
Portanto, a aplicabilidade da lei de Macau ao caso pressupõe que, à data da celebração do casamento, a Autora e o seu ex-marido tenham residência habitual em Macau ou Macau seja o local da primeira residência conjugal.
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Por sua vez, as normas dos ordenamentos jurídicos do Interior da China e de Hong Kong acima elencadas têm inequivocamente por objecto regular as relações patrimoniais dos cônjuges independentemente de qualquer regime de bens que possa existir no seio da sociedade conjugal. Pois, as mesmas aplicam-se a qualquer casamente independentemente da existência ou não de um particular regime de bens.
Assim, essas normas são subsumíveis no conceito-quadro do artigo 50º do CC.
Estipula o artigo 50º do CC que “1. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum. 2. Não tendo os cônjuges a mesma residência habitua, é aplicável a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.”
Portanto, urge esclarecer se, à data da aquisição do bem, a Autora e o seu ex-marido tinham residência habitual comum ou a vida familiar deste casal se localizada no Interior da China e, se à data da dissolução do casamento por divórcio, a Autora e o seu ex-marido tinham residência habitual comum ou a vida familiar deste casal se localizava em Hong Kong.
Além disso, é de ter em conta que nos termos do artigo 30º, nºs 2, do CC, “Considera-se residência habitual o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal.”
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Alega a Autora que, à data em que celebrou casamento com o seu ex-marido em 26 de Outubro de 1973, os dois viviam no Interior da China tendo o casal, depois do casamento, emigrado para Hong Kong e, nos anos 80 do século passado, passado a viver em Macau. Mais defende a Autora que fixou residência nos Estados Unidos de América em 1997 enquanto que o seu ex-marido continuou a residir em Macau até à morte.
As 3ª e 4ª Rés, por sua vez, defendem que a Autora e o seu ex-marido registaram o casamento no dia 4 de Setembro de 1975 em Hong Kong e, nesta altura, o ex-marido da Autora vivia em Hong Kong.
Feito o julgamento da matéria de facto, apurou-se que a Autora e o seu ex-marido contraíram casamento no Interior da China em 1973, como foi já referido, e aquela emigrou para Hong Kong depois do casamento tendo posteriormente a mesma e o seu ex-marido fixado residência em Macau. Mais está provado que os mesmos formalizaram novamente o casamento no dia 4 de Setembro de 1975 em Hong Kong quando o ex-marido da Autora se encontrava a viver em Hong Kong. A Autora não logrou demonstrar que juntamente com o seu ex-marido vivia no Interior da China quando se casaram lá.
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Assim, para os efeitos sub judice, está tão-só apurado o seguinte:
- O ex-marido da Autora morreu em 2014, em Macau;
- A Autora e o seu ex-marido contraíram casamento no Interior da China em 1973;
- Após o casamento, a Autora emigrou para Hong Kong, passando os dois depois a viver em Macau;
- Em 1997, a Autora passou a viver nos Estados Unidos de América e o ex-marido da Autora manteve-se em Macau;
- A Autora e o seu ex-marido formalizaram novamente o casamento no dia 04 de Setembro de 1975 em Hong Kong;
- O 1º Réu (filho da Autora e do seu ex-marido) nasceu em ** de Abril de 19**, em Hong Kong;
- O 2º Réu (também filho da Autora e do seu ex-marido) nasceu em ** de Agosto de 19**, em Hong Kong; e
- No dia 04 de Setembro de 1975, o ex-marido da Autora vivia em Hong Kong.
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Da articulação desses factos, vê-se que:
- À data do casamento celebrado no Interior da China:
* A Autora não vivia em Hong Kong;
* Não se sabe onde a Autora vivia;
* Nem se sabe onde o ex-marido da Autora vivia; e
* Não está demonstrado que havia residência habitual comum nessa data.
- Depois do casamento celebrado no Interior da China:
* A Autora passou a viver em Hong Kong e esta e o seu ex-marido fixarem-se depois em Macau;
* Em 1997, a Autora passou a viver nos Estados Unidos de América e o ex-marido da Autora manteve-se em Macau; e
* Está demonstrado que Macau era a residência habitual comum da Autora e do seu ex-marido até 1997.
- À data da nova formalização do casamento em Hong Kong:
* O ex-marido da Autora vivia em Hong Kong;
* Não se sabe onde a Autora vivia (porque não se sabe quando é que a Autora passou a viver em Hong Kong); e
* Não está demonstrado que havia residência habitual comum nessa data.
- Depois da nova formalização do casamento em Hong Kong:
* A Autora e o seu ex-marido viviam em Hong Kong antes de passarem a viver em Macau;
* Em 1997, a Autora passou a viver nos Estados Unidos de América e o ex-marido da Autora manteve-se em Macau; e
* Está demonstrado que Hong Kong era a residência habitual comum da Autora e do seu ex-marido antes de Macau se tornar a residência habitual comum de ambos.
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Dando mais um passo conclui-se que:
- Não há dados a indicar que havia residência habitual comum à data do casamento celebrado no Interior da China;
- Hong Kong podia ser a residência habitual comum à data da nova formalização do casamento, tendo em conta que está provado que, nesta altura, o ex-marido da Autora aí vivia, que a Autora passou a viver em Hong Kong depois do casamento celebrado no Interior da China e que o 1º filho do casal nasceu em Hong Kong antes da formalização do casamento em Hong Kong;
- Havia residência habitual comum em Hong Kong depois da formalização do casamento em Hong Kong;
- A residência habitual comum localizava-se em Macau entre o momento em que a Autora e o seu ex-marido deixaram a residência habitual comum em Hong Kong e 1997; e
- A partir de 1997, a Autora passou a viver nos Estados Unidos da América e o seu ex-marido continuou a viver em Macau até morrer.
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Antes de mais, há que salientar que, para os efeitos sub judice, o que interessa apurar é se as partes tinham residência habitual comum à data do casamento celebrado no Interior da China visto que o que foi feito em Hong Kong em 4 de Setembro de 1975 era meramente uma nova formalização do casamento já celebrado.
Ora, flui do acima exposto que não está demonstrado que havia residência habitual comum à data do casamento celebrado no Interior da China.
Assim, há que indagar se, depois da celebração do casamento no Interior da China, chegou a haver primeira residência conjugal - artigo 51º, nº 2, do CC.
Conforme os dados acima apurados conclui-se que essa residência se localizava em Hong Kong visto que, como foi já salientado, nada indica que os cônjuges chegaram a residir juntos no Interior da China apesar de terem aí celebrado o casamento.
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Nem se diga que muito provavelmente passaram a primeira noite ou os primeiros dias do casamento no Interior da China.
Antes de mais, nada indica que isso assim aconteceu.
Além disso, a noção de residência conjugal não pode deixar de referir-se ao local onde a vida de casados se desenvolve ainda que por curto período de tempo, local este ligado ao casal ou a um dos cônjuges de forma estável. Pois, basta pensar-se nos casamentos celebrados no estrangeiro durante uma viagem feita com este propósito. Ninguém qualificaria o local da celebração do casamento como primeira residência conjugal.
No presente caso, nada indica que a Autora ou o seu ex-marido residia no Interior da China, razão por que, mesmo dando como provável que estes, logo depois do casamento, tivessem passado a primeira noite ou os primeiros dias no Interior da China, ainda assim, não se pode considerar que a primeira residência conjugal aí se localizava.
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Por força disso, as normas do ordenamento jurídico de Macau acima referidas não são aplicáveis ao presente caso porque Macau não era nem o local da residência habitual comum dos nubentes à data do casamento nem era o local da primeira residência conjugal mas tão-só o ordenamento jurídico com o qual a vida conjugal estava em mais estreita conexão à data da aquisição do bem em 2002 e à data da morte do ex-marido da Autora, por ter sido o local da última residência habitual comum.
Também não são aplicáveis ao presente caso as normas da lei do Interior da China que qualificam todos os bens dos cônjuges como bens comuns carecendo, portanto, os actos de disposição destes bens do consentimento de ambos os cônjuges porque, à data da aquisição do bem, o casal não tinha residência habitual neste ordenamento jurídico.
O mesmo ocorre com as normas da lei de Hong Kong porque, à data do divórcio, a Autora e o seu ex-marido não tinham residência habitual neste local nem Hong Kong era o local onde a vida familiar se encontrava em mais estreita conexão.
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Do exposto, constata-se que nenhuma das leis acima analisadas é competente para ser aplicada ao caso. Nesse cenário, nada resta senão ter em conta as circunstâncias em que o bem alienado foi adquirido.
Está provado que a Autora e o seu ex-marido se encontravam separadas desde 1997 e a quota ideal sub judice foi adquirida pelo ex-marido da Autora com rendimentos obtidos a partir da sua actividade profissional sem qualquer contribuição da Autora.
Tendo a quota ideal sido adquirida exclusivamente com meios do ex-marido da Autora, a quota não pode deixar de ser um bem próprio do mesmo porque nenhuma norma faz alterar este carácter pessoal. É, portanto, destituído de fundamento qualificar a quota ideal sub judice como bem comum apesar de ter sido adquirido durante a constância do casamento.
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Mesmo que se qualifiquem as normas do ordenamento jurídico do Interior da China como subsumíveis no conceito-quadro do artigo 51º do CC, a lei do Interior da China nunca pode ser considerada competente para reger o presente caso porque, conforme o acima expendido, à data do casamento celebrado no Interior da China, não havia residência habitual comum e a primeira residência conjugal se localizava em Hong Kong.
O mesmo se diz em relação às normas do ordenamento jurídico de Hong Kong. Pois, ainda que se considere essas normas como devendo integrar o conceito-quadro do artigo 51º do CC e, como tal, a lei de Hong Kong é aplicável ao caso, a solução a dar é exactamente o mesmo. É que, como foi já referido, segundo essa lei nenhuma alteração se verifica na titularidade dos bens adquiridos pelos cônjuges com os seus meios não sendo estes bens comunicáveis ao outro cônjuge. Tendo a quota ideal sido adquirida por meios exclusivos do ex-marido da Autora, o bem é próprio e, como tal, pode ser livremente alienado sem necessidade de qualquer consentimento da Autora.
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Consentimento da Autora
Apurada a natureza do bem, resta analisar se procede a queixa da Autora acerca da falta do seu consentimento.
Está assente que o ex-marido da Autora fez a transmissão impugnada sem ter antes obtido o consentimento da Autora.
Foi já salientado mais acima que tal consentimento só é exigível se o bem em questão for um bem comum da Autora e do seu ex-marido; não o sendo, o respectivo titular pode livremente dispor dele.
Tendo acima concluído que o bem pertencia exclusivamente ao ex-marido da Autora, é manifesto que este não necessitava de obter o consentimento da Autora para o acto impugnado.
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Consequências da falta de consentimento
Uma vez que se entendeu que a transmissão não carecia do consentimento da Autora, nenhum vício capaz de invalidar o negócio pode ser assacado ao mesmo.
Assim, fica destituído de interesse analisar a excepção de abuso de direito deduzida pelas 3ª e 4ª Rés para obstar a invalidação da transmissão.
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Pedidos da Autora
Com fundamento na falta do seu consentimento, pede a Autora que a transmissão feita pelo seu ex-marido a favor da 4ª Ré seja anulada e o respectivo registo predial cancelada.
Flui da análise acima feita que os fundamentos invocados pela Autora não podem proceder. Pois, aí concluiu-se que a quota ideal alienada pelo seu ex-marido não era bem comum para cuja transmissão não carecia do consentimento da Autora.
Assim, os pedidos formulados pela Autora não podem deixar de improceder.
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IV – Decisão (裁 決):
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção e, em consequência, absolve os Réus, C, D, F e G, dos pedidos formulados pela Autora, B.
Custas pela Autora.
Registe e Notifique.
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據上論結,本法庭裁定訴訟理由不成立,駁回原告B針對被告C、D、F及G提出之請求,開釋四名被告。
訴訟費用由原告承擔。
依法作出通知及登錄本判決。”
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Para a Autora, o Tribunal a quo errou na aplicação de direito por não ter presumido que ela e o ex-marido tinham residência habitual no interior da China aquando do casamento em 1973, uma vez que ambos são chineses, pelo que não podiam ter outra residência habitual fora do interior da China no momento do casamento.
Adiantamos desde já que não lhe assiste razão.
Foi perguntado no quesito 2º da Base Instrutória o seguinte:
“結婚時,兩人住在內地? ”
Feito o respectivo julgamento, o Tribunal a quo considerou o referido quesito como não provado, decisão essa que não foi qualquer objecto de impugnação.
Nesta conformidade, como esta factualidade foi afastada no julgamento da matéria de facto, nunca pode exigir o Tribunal a quo, no julgamento de direito, voltar a concluir pela sua existência com base na presunção.
No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do TSI, de 19/03/2016 e de 05/05/2016, proferidos, respectivamente, nos Procs. nº 763/2014 e nº 153/2016.
Tendo em conta a matéria fáctica apurada, a saber:
- a Autora e o seu ex-marido passaram a residir em Hong Kong depois de casarem no Interior da China; e
- formalizaram novamente o casamento no dia 4 de Setembro de 1975 em Hong Kong
entendemos que a lei competente para reger a situação sub justice é a lei de Hong Kong, cujo regime matrimonial supletivo é o de separação de bens.
Assim, bem decidiu o Tribunal a quo quanto à natureza do bem imóvel alienado.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
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Custas do recurso pela Autora.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 17 de Janeiro de 2019.
(Relator)
Ho Wai Neng (com declaração de voto)
(Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
DECLARAÇÃO DE VOTO
Salvo o devido respeito, entendo que mesmo que se aplicasse a lei do Interior da China no momento da celebração do casamento, a solução do caso seria o mesmo.
Vejamos a sua razão de ser.
Como é sabido, a interpretação da lei não deve cingir-se à letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (cfr. artº 8º, nº 1 do C.C.).
A razão de ser para o legislador estabelecer o regime matrimonial da comunhão de adquiridos consiste na vida em comum do casal, no sentido de pressupor ambos contribuírem para o bem-estar da vida conjugal.
No caso em apreço, ficaram provados que:
- Pelo menos desde o ano de 1997, a Autora foi viver para a América e o ex-marido continuou a morar em Macau, ficando cessadas as relações de coabitação, assistência ou cooperação e passando os dois a fazer vidas totalmente separadas.
- O ex-marido da Autora, médico de profissão, continuou a exercer a sua actividade e com os rendimentos da mesma adquiriu, em 2002, o imóvel em causa, sem usar qualquer dinheiro ou valor que tenha tido origem na relação conjugal que o ligava à Autora.
- A Autora não contribuiu seja por que forma para a aquisição do imóvel em causa.
- A Autora sabe que em nada contribuiu para a aquisição do imóvel em causa.
Ora, se um dos cônjuges abandona injustificadamente o lar familiar, sem contribuir minimamente para a vida familiar e sem contacto com outro cônjuge ao longo de vários anos, jamais poderia continuar beneficiar o regime da comunhão de adquiridos no sentido de ter o direito à meação sobre o bem entretanto adquirido por outro cônjuge após a separação de facto.
Tal bem deveria ser considerado como bem próprio de outro cônjuge.
A resposta em contrário violaria, a nosso ver, o espírito legislativo da criação do regime matrimonial da comunhão de adquiridos, bem como os valores ético-jurídicos do Direito.
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RAEM, aos 17 de Janeiro de 2019.
Ho Wai Neng
5
929/2018