Proc. nº 1050/2018-A
Relator: J. Cândido de Pinho
Data do acórdão: 24 de Janeiro de 2019
Descritores:
- Suspensão de eficácia
- Acto positivo
- Acto de abertura de concurso
- Recorribilidade do acto
- Abertura de concurso
SUMÁRIO:
I - Um acto positivo é aquele que, de algum modo, altera a esfera jurídica do interessado requerente e só ele justifica a suspensão da sua eficácia.
II - Um acto que determina a abertura de um concurso deixa intocável a situação de facto actual, em nada a alterando. Apenas é potencialmente alterador da ordem factual que se vive hic et nunc. Portanto, verdadeiramente, ele, por si só, nada altera por enquanto.
III - Os requisitos de procedibilidade do art. 121º, nº1 do CPAC são cumulativos, salvo nas situações da previsão dos nºs 2,3 e 4 do art. 121º e 129º, nº1. O que significa que a falta de um deles importa a improcedência do pedido.
IV - Quando os danos a que respeita a al. a), do nº1, do art. 121º do CPAC são quantificáveis, podendo ser ressarcíveis pela via da execução de sentença ou pela via autónoma da acção indemnizatória, não se pode dar por ocorrido o requisito respectivo.
V - A eficácia de um acto só é suspensível se ele, concomitantemente, for contenciosamente recorrível. O acto que determina a abertura de um concurso não é, em princípio, recorrível contenciosamente e, por isso, a sua eficácia também não pode ser suspensa ao abrigo da providência prevista nos arts. 120º e sgs. do CPAC.
Proc. nº 1050/2018-A
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
B, do sexo masculino, casado, de nacionalidade chinesa, portador do BIRPM n.º 7******(*), residente em Macau, na Rua do ......, n.º ... a ..., Edificio “......”, ....º andar ..., ---
Requereu neste TSI a suspensão de eficácia do despacho
do Chefe do Executivo proferido na Informação n.º 075/DINDGV/2018, que determinou a abertura de um concurso público para a construção de uma travessia aérea pedonal na AV. de ...... na Taipa.
Para o efeito alegou os requisitos do art. 120º, nº1, do CPAC em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
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Contestou a entidade requerida, pugnando pela improcedência da pretensão.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“B, devidamente identificado nos autos, requer a suspensão da eficácia do acto de 07 de Março de 2018, do Exm.º Chefe do Executivo, através do qual foi autorizada a abertura do concurso público para a Obra de Construção da Travessia Pedonal da Avenida de ......, na Taipa. Alega que a obra cujo concurso público foi autorizado pelo despacho suspendendo lhe vai ocasionar prejuízos de difícil reparação, e aduz que a pretendida suspensão não acarreta lesão para o interesse público prosseguido pelo acto e que não há indícios de ilegalidade do recurso.
Contestou a autoridade requerida, conforme. articulado de fls. 52 e seguintes, pugnando pelo indeferimento da peticionada suspensão, por não estarem preenchidos os requisitos prejuízo de difícil reparação e inexistência de indícios de ilegalidade do recurso.
Vejamos, começando por lembrar que a suspensão de eficácia está reservada a actos administrativos de conteúdo positivo ou que, sendo de conteúdo negativo, apresentem uma vertente positiva e a suspensão a esta se circunscreva, e depende, em regra, da verificação cumulativa dos três requisitos, um positivo e dois negativos, enunciados nas alíneas a) a c) do artigo 121.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo Contencioso, a saber:
- a previsibilidade de que a execução provoque prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que ele defenda ou venha a defender no recurso;
- não acarretar a suspensão grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto;
- não resultarem do processo fortes indícios de ilegalidade do recurso.
A primeira questão que se coloca é, pois, a de saber se estamos ou não perante acto de conteúdo positivo, o que passa por indagar se o acto é ou não susceptível de provocar alteração na esfera jurídica do requerente. Atentos os fundamentos em que o requerente sustenta e estrutura o pedido, segundo os quais a obra autorizada pelo acto suspendendo vai dificultar o acesso às fracções imóveis de que é proprietário e reduzir a sua visibilidade e exposição ao público, o que implicará um abaixamento do respectivo valor e dos proventos que proporcionam, é patente o conteúdo positivo do acto, dada a alteração que vai ocasionar na esfera jurídica do requerente, sendo, por isso, susceptível de suspensão de eficácia.
Porque assim, vejamos se estão preenchidos aqueles requisitos, sendo certo que, porque de verificação cumulativa são, tal como se referiu, bastará a falta de um deles para conduzir ao insucesso da providência.
Começando pelos negativos, não se afigura que o processo aponte para a existência de fortes indícios de ilegalidade do recurso prevista naquele artigo 121.º, n.º 1, alínea c). A autoridade administrativa sustenta que ocorre essa ilegalidade, argumentando que o requerente não possui legitimidade para impugnar o acto, pois não vai ser afectado na sua esfera jurídica, porquanto nem o seu direito de propriedade nem o seu direito de uso das fracções vão sair molestados. Salvo melhor juízo, está suficientemente caracterizada e demonstrada a lesão que o acto pode ocasionar no património do requerente, por via da desvalorização das fracções, que, por isso, tem interesse e legitimidade na sua impugnação e, por inerência, na suspensão da respectiva eficácia. Ademais, não se vislumbra a inobservância de outros pressupostos formais que possa dar corpo à existência de fortes indícios de ilegalidade do recurso, pelo que temos, assim, preenchido o requisito da alínea c).
No que toca ao requisito da alínea b), não divisamos fundamentos ponderosos para considerar que o protelamento da execução do acto, resultante da eventual suspensão da sua eficácia, possa trazer lesão relevante ao interesse público por ele concretamente prosseguido. Essa é também a visão do requerente, que não se mostra contrariada pela autoridade requerida. Acha-se, pois, também preenchido o requisito da alínea b) do mencionado artigo 121.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Abordando, por último, o requisito da alínea a), ou seja, a previsibilidade de ocorrência de prejuízo de difícil reparação em resultado da execução do acto, é sabido que cabe ao requerente alegar e demonstrar a verificação desse prejuízo. Nesse sentido, o requerente alegou a desvalorização das fracções e o decréscimo do seu rendimento. Mas ele próprio logrou quantificar e indicar os prejuízos ocasionados em resultado da execução do acto. Dado que não está em causa a perda das próprias fracções ou a inviabilização do seu uso, nenhuma dificuldade se levanta na quantificação dos prejuízos alegados, que, como se disse, o próprio requerente ofereceu. Temos, pois, que concluir que, no contexto de ponderação meramente patrimonial que está em causa, não levantará problema de maior a liquidação dos danos ou prejuízos que o acto pode ocasionar ao requerente, pelo que nenhuma razão se vislumbra para considerar difícil a sua reparação.
Em suma, não se verifica a previsibilidade de ocorrência do prejuízo de difícil reparação, sem o que a providência não pode ser concedida.
Nestes termos, o nosso parecer vai no sentido de ser negada a peticionada suspensão de eficácia.”
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
1. O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias.
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2. Da legitimidade do requerente
Na sua contestação, a entidade requerida suscitou esta excepção com o argumento de que o requerente não terá legitimidade para interpor recurso contencioso do acto suspendendo, o que contrariaria a previsão do nº1 do art. 121º do CPAC.
Não concordamos. Na óptica do requerente, o acto em apreço é fonte de danos para a sua esfera, enquanto dono de três estabelecimentos comerciais que serão afectados pela construção da travessia aérea pedonal no local. Porquê? Porque o suporte desta passagem é localizado em frente dos seus espaços comerciais. Afectação que se caracterizaria pela diminuição substancial do valor comercial das lojas em função do decréscimo de clientes ao local.
Sendo, então, aparentemente lesivo o acto, parece que legitimidade não lhe falta para o poder impugnar, tendo em atenção o disposto no art. 33º, do CPAC.
Concluímos, pois, pela improcedência da excepção.
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3. Assim, ambas as partes são legítimas e estão devidamente representadas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III – Os Factos
1 - O requerente é proprietário das fracções autónomas do Edifício ......, sito na Avenida de ...... na Taipa, n. º..., Fracção C – CR/C, Fracção D – DR/C e Fracção E – ER/C (com descrição predial n.º 2****), todas destinadas à finalidade comercial (daqui em diante designadas por “lojas comerciais”).
2 - O requerente tem dadas de arrendamento as supracitadas três lojas a:
- C, arrendatária da fracção autónoma CR/C, loja designada por “......”, dedicada à actividade de restauração e de bebidas;
- D, arrendatária da fracção autónoma DR/C, loja designada por “XXXX Beauty Center”, dedicada à actividade de tratamento de beleza;
-“XXXX Property Agency (Macau) Lda.”, arrendatária da fracção autónoma ER/C, loja dedicada à actividade de mediação imobiliária.
3 - As lojas, quando exerçam actividades, devem ter uma fachada e tabuleta bem visível de tal modo a atrair os clientes.
4 - O pavimento junto das supracitadas três lojas, que se situa na Avenida de ...... na Taipa, tem 635cm de largura.
5 - Contudo, a entrada e saída da supracitada travessia aérea pedonal situa-se no centro do pavimento, mas a parte da passagem reservada aos peões e às três lojas, mais larga, é de cerca de 180cm e, mais estreita, de 125cm.
6 - Quanto esteja estreito o pavimento, os peões não podem permanecer facilmente no exterior das três lojas, ficando reduzido o fluxo de clientes das lojas, bem como é difícil proceder à carga e descarga de mercadorias.
7 - Em Dezembro de 2018, o requerente solicitou à empresa XXXX (Macau), Lda. que procedesse à avaliação das supracitadas três lojas comerciais.
8 - Segundo o relatório de avaliação, após a construção da travessia aérea pedonal, serão instalados à frente das três lojas um elevador, escadas e ponto de desembarque de escada rolante. Uma vez que entre as fachadas das três lojas e as instalações de desembarque, a distância mais curta é menos de 2 metros, estando previsto que parte das fachadas das lojas será tapada na sequência de conclusão da obra, bem como o lugar de descarga de mercadoria existente junto das lojas também iria ser cancelado, estando previsto que tais instalações, após a sua construção.
9 - Segundo o referido relatório, se não for construída a travessia aérea pedonal, o valor total de mercado das supracitadas três lojas é de HK$187.000.000,00 (cento e oitenta e sete milhões dólares de Hong Kong), entre as quais, o valor da fracção C é de HK$74.500.000,00 (setenta e quatro milhões, quinhentos mil dólares de Hong Kong), o valor da fracção D é de HK$71.300.000,00 (setenta e um milhões, trezentos mil dólares de Hong Kong) e o valor da fracção E é de HK$41.200.000,00 (quarenta e um milhões, duzentos mil dólares de Hong Kong)
10 – E se não for construída a travessia aérea pedonal, o valor total da renda de mercado das supracitadas três lojas é de HK$281.000,00 (duzentos e oitenta e um mil dólares de Hong Kong), entre as quais, a renda mensal da fracção C é de HK$1l3.000,00 (cento e treze mil dólares de Hong Kong), a renda mensal da fracção D é de HK$107.000,00 (cento e sete mil dólares de Hong Kong) e a renda mensal da fracção E é de HK$61.000,00 (seiscentos e um mil dólares de Hong Kong).
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IV – O Direito
1 - A análise dos requisitos de procedibilidade do art. 121º do CPAC carece de uma conclusão favorável acerca do carácter positivo do acto suspendendo, tendo em conta o que preceitua o art. 120º precedente.
Ora, um acto positivo é aquele que altera de algum modo a esfera jurídica do interessado requerente e só ele justifica a suspensão da sua eficácia.
Sendo assim, parece que o acto que determina a abertura de um concurso deixa intocável a situação de facto actual, em nada a alterando. Apenas é potencialmente alterador da ordem factual que se vive hic et nunc. Portanto, verdadeiramente, ele, por si só, nada altera por enquanto.
O acto de abertura, enquanto acto inicial de procedimento, é apenas um acto procedimental que só em casos pontuais é, por si mesmo, lesivo. Na generalidade dos casos, ele não produz qualquer lesão, nem altera o status do indivíduo.
Neste sentido, porque não se mostra verificada a condição do artigo 120º, cremos que o acto aqui em causa não pode ser objecto da requerida providência.
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2 - Ainda assim, e por mera cautela, avancemos para a análise do pedido e dos requisitos previstos no art. 121º, nº1, do CPAC.
Antes de mais nada, vale a pena recordar que estes requisitos são cumulativos, salvo nas situações da previsão dos nºs 2,3 e 4 do art. 121º e 129º, nº1 (entre nós, ver Ac. do TUI, de 4/03/2016, Proc. nº 7/2016 e Ac. do TSI, de 23/11/2017, Proc. nº 925/2017). O que significa que a falta de um deles importa a improcedência do pedido.
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3 - No que se refere ao da alínea a), do nº1, do art. 121º citado, cremos que ele não se verifica. Com efeito, o que a norma dispõe é que a execução do acto deve previsivelmente causar ao requerente um prejuízo de difícil reparação.
Ora, um dos critérios para a densificação deste conceito indeterminado tem sido o da possível avaliação económica. Ou seja, se não for possível avaliar economicamente um dano, i.é., se não puder ser quantificado o prejuízo, ou se for muito difícil essa avaliação, então estar-se-á perante um prejuízo de difícil reparação. E porquê? Porque muito provavelmente - mesmo em caso de procedência do recurso contencioso interposto do acto - jamais poderia o lesado vir a ser justamente indemnizado, nem pela via da execução de sentença, nem pela via autónoma da acção indemnizatória (v.g., Ac. do TUI, de 29/06/2016, Proc. nº 35/2016).
Ora, observando esse critério no caso vertente, não encontramos obstáculo a uma eventual indemnização pelos danos que o acto venha a provocar, já que o próprio requerente quantificou o respectivo valor sem qualquer esforço.
Mas, mesmo que esse não fosse o critério a seguir, então poder-se-ia acolher aquele outro que olha para a expressão como representando um quadro de facto revelador de uma situação de danos intoleráveis e geradores de carência quase absoluta de insatisfação das necessidades básicas e elementares. E tal não é o caso, até porque nem ele sequer foi assim desenhado pelo requerente, que se limitou a indicar o abaixamento do valor das lojas comerciais, seja em termos do mercado imobiliário da propriedade, seja em termos do valor locatício.
Portanto, somos a concluir que o requisito em análise não ocorre.
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Quanto ao da alínea b), do nº1 (não determinação de grave lesão para o interesse público), não nos deparamos com nenhum impedimento à sua verificação em concreto.
Efectivamente, o máximo que poderia acontecer com a suspensão seria somente uma dilação na conclusão do procedimento concursal e, consequentemente, na execução da obra de travessia aérea pedonal, que, ao que tudo indica, não parece ter carácter urgente.
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O mesmo se não diz do requisito da alínea c), do nº1 do mesmo preceito (não existência de fortes indícios de ilegalidade do recurso).
Tem sido considerado, com efeito, que este requisito se satisfaz unicamente com a verificação de causas de tipo adjectivo relacionadas com a interposição do recurso e, portanto, com excepções e questões processuais que obstem ao conhecimento do recurso. É, por exemplo, o caso de ilegitimidades, irrecorribilidade, caducidade do direito de recorrer, etc. (J. Cândido de Pinho, Notas e Comentários ao Código de Processo Administrativo Contencioso, I, págs. 220-221).
Ora, e como já acima fizemos notar, o acto suspendendo é aquele que determina a abertura de um concurso de obra pública. Todavia, estamos em crer que um acto deste género não é contenciosamente recorrível.
Não é recorrível, uma vez que, a se, não produz efeitos externos e lesivos na esfera do aqui requerente (art. 28º, nº1, primeira parte, do CPAC). Na verdade, a concreta abertura do concurso não implica que o concurso vá até ao seu termo (pode a entidade pública desistir dele em qualquer altura do procedimento), nem obriga a que seja feita a adjudicação se ocorrer algum obstáculo de ordem pública ou de legalidade que constitua impedimento dirimente.
Ora, se o concurso pode não ir até ao seu final, não é possível pensar que o requerente possa recorrer do acto que determina a sua abertura. E, como se sabe, a eficácia de um acto só é suspensível se ele, concomitantemente, for contenciosamente recorrível.
Sabemos bem da existência de alguns actos que iniciam procedimentos e que, excepcionalmente, podem ser objecto de recurso contencioso. Mas esses são casos contados e limitam-se a situações em que o próprio acto que determina a abertura é, por si mesmo, lesivo (às vezes até inconstitucional) da esfera do recorrente1.
Mas aqui o acto em causa, em si, não é fonte de lesão e só o acto final (e definitivo) que adjudica a obra poderá ser sindicado nos tribunais (em sentido semelhante, ver o Ac. do TUI, de 23/05/2012, Proc. nº 22/2012).
Parece, então, que se ele não é recorrível, também não será suspensível.
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Por todas estas razões, somos a concluir que não estão reunidos os se requisitos necessários ao deferimento do pedido.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a providência.
Custas pelo requerente, com taxa de justiça em 4 UCs.
T.S.I., 24 de Janeiro de 2019
(Relator) José Cândido de Pinho
(Primeiro Juiz-Adjunto) Tong Hio Fong
Fui presente (Segundo Juiz-Adjunto) Joaquim Teixeira de Sousa Lai Kin Hong
1 Pense-se no exemplo absurdo de um acto que determina a abertura de um concurso para provimento de secretários pessoais, mas limitando as candidaturas a pessoas do sexo feminino e de cabelos louros. Perece que essa limitação é, por si mesma, lesiva de todos os interessados que reúnam todas as outras características necessárias, menos o género e a cor dos cabelos, o que à partida os impede de se apresentarem ao concurso e atenta contra o princípio constitucional da igualdade.
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