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Processo nº 847/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 31 de Janeiro de 2019

ASSUNTO:
- Princípio da livre apreciação das provas
- Reapreciação da matéria de facto

SUMÁRIO:
- Segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.° do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
- A reapreciação da matéria de facto por parte deste TSI tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
O Relator,
Ho Wai Neng


Processo nº 847/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 31 de Janeiro de 2019
Recorrente: A (Réu)
Recorrida: B (Autora)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por sentença de 20/03/2018, julgou-se procedente a acção interposta pela Autora B.
Dessa decisão vem recorrer o Réu A, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
- O presente recurso tem por objecto a douta Sentença proferida no Processo acima referenciado, que considerou procedente a acção ordinária instaurada contra o ora Recorrente, mais concretamente:
a. Declarar a fracção autónoma, para habitação, designada por C9, sita na XXX, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n° XXX, a fls. XXX do Livro B192M, é bem próprio da Autora B, não integrando o acervo de bens comuns do ex-casal;
b. Condenar o Réu A a reconhecer o direito da Autora sobre a fracção Autónoma referida;
c. Ordenar-se a proceder à rectificação da inscrição n° XXX, passando a mesma a constar que apenas a Autora é seu titular com a menção de que o bem é adquirido com dinheiro exclusivamente da Autora.
- Salvo o devido e enorme respeito pelo Distinto Colectivo a quo, afigura-se que a decisão recorrida encerra erros notórios na apreciação da prova e, consequentemente, efectua uma incorrecta interpretação das normas legais aplicáveis.
- O presente recurso tem, por isso, por objecto o julgamento da matéria de facto efectuado pelo Douto Tribunal a quo quanto à resposta positiva aos quesitos 1°, 2°, 3°, 4° e 5° da douta Base Instrutória.
- No entender do Recorrente tal julgamento é erróneo, uma vez que uma análise criteriosa e crítica da prova, documental e/ou testemunhal, impõe respostas diferentes àquelas que o Distinto Tribunal a quo decidiu dar.
- Os depoimentos testemunhais prestados em audiência de julgamento encontram-se gravados, o que permite a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto nos artigos 599°/3 e 629°/1/al. a) do CPC.
- Por outro lado, considerando que o Recurso tem por objecto, como referido, a reapreciação da prova gravada, dispõe o Recorrente do prazo normal de 30 dias acrescido de mais 10 dias para a apresentação das suas Alegações de Recurso, pelo que são as presentes tempestivas (nºs 2 e 6 do artigo 613° do CPC)
Impugnação do julgamento de matéria de facto constante da douta Base instrutória
- O Distinto Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, correspondentes aos quesitos da BI com a mesma numeração:
1. No ano de 1995, a Autora pagou MOP51,450.00 (MOP171,500.00x30%) a título de sinal, aquando da assinatura do contrato promessa de compra e venda da fracção autónoma identificada em A, celebrado ao abrigo do regime jurídico dos contratos de desenvolvimento para a habitação (CDH), plasmado no decreto-lei n° 13/93/M, de 12 de Abril.
2. No ano de 1998, pagou o remanescente MOP120,050.00 (MOP171,500.00x70%), aquando da assinatura da escritura pública de compra e venda da mesma fracção, em 19 de Junho de 1998.
3. A fracção foi comprada pelo preço que foi exclusivamente pago pela Autora com dinheiro que lhe foi dado pela sua irmã mais velha, C,
4. A Autora ocupava, usava e administrava a fracção à vista de todos, incluindo à 'vista do Réu como se de um bem próprio se tratasse.
5. O Réu nunca se considerou como dono da fracção.
- Na presente acção, em relação à questão de facto essencial para a boa resolução da causa atendendo ao pedido principal da Autora, está em crise determinar se a fracção foi ou não adquirida com dinheiro exclusivamente da Autora que lhe havia sido doado pela irmã mais velha; por um lado,
- e se a alegada doação foi ou não feita a favor do casalou em exclusivo a favor da irmã, por outro.
- Inexiste nos autos, além da certidão da CRP relativa à fracção em causa, qualquer prova documental sobre a propriedade do imóvel.
- Logo, e como bem fundamenta o referido acórdão sobre a matéria de facto, a convicção do tribunal formou-se única e exclusivamente no depoimento das testemunhas, nomeadamente as arroladas pela Autora.
- Sendo que o ora Recorrente não concorda, em absoluto, com as conclusões a que o douto Tribunal a quo chegou em relação a cada um dos factos controvertidos,
- Faz-se, então, a transcrição das declarações das testemunhas nas partes relevantes e atinentes a cada um dos factos, e em relação aos quais acredita o ora Recorrente que o Tribunal a que deveria ter chegado à conclusão oposta - não provados.
- Por facilidade de exposição e compreensão das alegações do ora Recorrente, torna-se mais pragmático analisar criticamente quesito a quesito a prova produzida, com as devidas transcrições.
  a. I.I Quesitos 1º e 2º
- Sumariamente, pretendia-se averiguar se foi a Autora quem pagou o sinal, no ano de 1995, e o preço remanescente, em 1998, para a aquisição da casa onde o casal viria a viver.
- Importa ter sempre presente que em causa está o acto de pagar e não a origem do dinheiro usado, sendo esse o quesito 3º.
- Assim, sobre se foi a Autora quem pagou sozinha o sinal de 30 por cento em 1995 e o preço em 1998 - não estando aqui em causa a origem do dinheiro, sendo isso o quesito 3º, o Tribunal a quo deu como provado que sim, que foi a Autora que pagou, com base em dois depoimentos de familiares da Autora que dissram (ver referências às passagens nas alegações),
- "ouvi ela dizer", e
- À questão "o então marido, não pagou nem ajudou a pagar o preço?" a resposta foi "ouvi dizer que não, ouvi dizer que não" disse a primeira testemunha, depois de dizer que não conhecia sequer o Réu;
- e
- "Sei que foi a irmã mais velha que deu dinheiro a ela para pagar aquele montante, ouvi a B a dizer isto", disse a segunda testemunha.
- Ou seja, é importante analisar estas declarações como pertinentes para o facto controvertido em causa: quem pagou directamente o sinal e o preço?
- Nenhuma das testemunhas tem conhecimento directo do facto, por um lado,
- e a sua razão de ciência quanto ao mesmo provém daquilo que ouviram a Autora dizer-lhes a elas.
- Ou seja, além de não ter conhecimento directo do acto de pagamento do sinal, e de saber apenas o que a sua familiar Autora interessada lhe disse, a testemunha afirma que o marido vivia na casa durante alguns anos depois de a família para lá se mudar, nomeadamente vivia em família e com a família no momento da outorga da promessa de compra e venda e pagamento do sinal e da outorga da escritura.
- Assim sendo,
a. tendo em conta o desconhecimento directo assumido dos factos pelas testemunhas,
b. de o que afirmam em tribunal ter-lhes sido dito pela Autora interessada
c. e de dos depoimentos resultar que ambos Autora e Réu vi viam em família na altura da decisão de comprar a casai assinar a promessa e pagar o sinal e ainda no momento da outorga da escritura,
- a conclusão lógica do tribunal deveria ter sido a de não provados os quesitos na medida em que tudo indica que o sinal e o preço foram pagos pelos dois A. e R. por decisão de ambos e em nome de ambos.
- A ausência de conhecimento dos factos senão através da A. e o desconhecimento directo que tinham sobre a vida do casal é patente e confessado por ambas as testemunhas.
- Ora, como referido, ficou consignado no Acórdão sobre a matéria de facto que a convicção do tribunal se baseou sobretudo nos depoimentos das testemunhas da Autora "Em especial se o preço para aquisição do imóvel em discussão foi pago exclusivamente pela Autora com dinheiro próprio, as testemunhas da Autora deram conta de que o preço para aquisição do referido imóvel foi, totalmente, pago pela Autora com dinheiro emprestado pela irmã (...)".
- Ora, da transcrição supra realizada resulta claro que estas duas testemunhas depuseram sobre este quesito apenas com base no que a A. lhes teria alegadamente contado, isto é, trata-se da chamada prova por depoimento indirecto, inadmissível em processo penal e admissível em processo civil apenas desde que a fonte de ciência de tais depoimentos resulte detalhadamente explicada pelas testemunhas.
- Assim o diz Lebre de Freitas: "Nestes termos, não basta o simples relato, com a indicação das circunstâncias em que os factos ocorreram; é também necessária à valoração do depoimento a indicação da razão de ciência da testemunha, isto é, como os factos relatados vieram ao· seu conhecimento, também ela devendo ser feita com precisão e pormenor" (Cód. Proc. Civ. Anotado, anotação ao artigo 638°do CPC Português, p. 609).
- Auscultando a gravação do depoimento destas duas testemunhas em relação à estes quesitos 1° e 2°, o que se verifica é que as testemunhas não indicam a fonte de ciência das suas respostas nos termos legalmente exigidos, limitando-se a dizer que lhes foi contado pela Aa, sem explicitarem de nenhuma forma como e em que circunstâncias o ouviram, se estavam sozinhos ou acompanhados ou como é que a conversa versou sobre este tema.
- Pelo que, salvo melhor opinião, os depoimentos destas duas testemunhas não poderiam ter sido valorados pelo Distinto Tribunal a quo enquanto susceptíveis de fazer prova plena de tão importantes factos.
- Consequentemente, também por esta via, quanto ao depoimento destas duas testemunhas impunha-se a sua desvalorização absoluta enquanto meio de prova.
- Como tal, uma vez que estes dois depoimentos são o único meio de prova sobre o qual foi edificada a resposta aos quesito 1° e 2°, já que nenhum documento faz dos mesmos prova, tal resposta deve ser modificada no sentido de os quesitos serem simplesmente dados por não provados, na sua totalidade.
- E exactamente o mesmo raciocínio se deve fazer em relação ao quesito 3°, chegando às mesmas conclusões.
- Vejamos,
- Quesito 3°: "A fracção foi comprada pelo preço que foi exclusivamente pago pela Autora com dinheiro que lhe foi dado pela sua irmã mais velha, C.".
- O que dizem as testemunhas sobre a alegada origem do dinheiro:
- Testemunha D, sobrinha da Autora, com sublinhados nossos:
Recorded in 07-Nov-2017 at 15.19.20 aos 29:45
P - A senhora sabe se a Autora, no ano de 1995, pagou o sinal quando assinou o contrato promessa desta fracção 9°C do edifício em questão.
R - Sinal, ouvi ela dizer que, parece que foi a tia que deu dinheiro a ela para comprar a fracção. (...)
Recorded in 07-Nov-2017 at 15.19.20 aos 31:50
P - A senhora diz que pagou tudo em 1995, sabe se ela pagou o resto do preço em 1998 quando assinou a escritura? Em 1995 pagou o sinal, depois em 1998 pagou o resto quando assinou a escritura?
R - Sim, foi assim, ela disse que a irmã mais velha tinha dado o dinheiro a ela, estou a falar de 1995.
Recorded in 07-Nov-2017 at 15.19.20 aos 32:49
P - De quem?
Irmã mais velha da prima do meu marido, da B (...) ela é que me contou isso, que o dinheiro da fracção foi dado pela sua irmã mais velha.
Recorded in 07-Nov-2017 at 15.19.20 aos 33:11
E
P - O então marido, não pagou nem ajudou a pagar o preço?
Ouvi dizer que não, ouvi dizer que não.
Recorded in 07-Nov-2017 at 15.19.20 aos 39:08
P - Há pouco disse também que ouviu dizer que o Sr. A não pagou absolutamente nada pelo preço da casa. Ouviu dizer de quem?
A sra. B. dizer.
- A 2ª testemunha da Autora, sobrinha da mesma, sobrinha mesmo quesito 3º, afirmou:
Recorded in 07-Nov-2017 at 15.19.20 aos 45:00
P - sabe dizer-nos se foi a Autora que pagou o sinal quando assinou o contrato promessa?
R - Sei que foi a irmã mais velha que deu dinheiro a ela para pagar aquele montante, ouvi a B a dizer isto.
Recorded in 07-Nov-2017 at 15.19.20 aos 46:49
P - Mas em 1995 já tinha pago a totalidade do preço com o dinheiro que lhe tinha sido dado pela irmã?
R - Do meu conhecimento, quando começou a viver no local, em . 1995, pagou o sinal. Agora, quando pagou todo o montante eu não tenho a certeza. Só sei que a irmã mais velha lhe tinha emprestado 150 mil a ela.
Recorded in 07-Nov-2017 at 15.19.20 aos 47:12
P - Sabe se o marido pagou ou contribuiu para pagar o preço da casa?
R - Não sei.
Recorded in 07-Nov-2017 at 15.19.20 aos 51:48
P - Mas como é que sabe que a tia lhe emprestou cento e tal mil?
R - Disse-me.
- Concluindo, sobre se foi a Autora quem pagou sozinha o preço do imóvel com dinheiro que lhe havia sido doado apenas a si pela irmã mais velha, o douto Tribunal a quo deu como provado que sim, que foi a Autora que pagou, com base em dois depoimentos de familiares da Autora que disseram a propósito ai seguintes frases,
a. "ouvi ela dizer que, parece que foi a tia que deu dinheiro a ela";
b. "ela disse que a irmã mais velha tinha dado o dinheiro a ela";
c. " (...) ela é que me contou isso, que o dinheiro da fracção foi dado pela sua irmã mais velha.";
d. "P - O então marido, não pagou nem ajudou a pagar o preço?
i. R - Ouvi dizer que não, ouvi dizer que não. "
e. P - Ouviu dizer de quem?
i. R. - A sra. B dizer.
- E a segunda testemunha:
a. "Sei que foi a irmã mais velha que deu dinheiro a ela para pagar aquele montante, ouvi a B a dizer isto;
b. P - Sabe se o marido pagou ou contribuiu para pagar o preço da casa?
c. R - Não sei."
- Mais uma vez, nenhuma das testemunhas tem conhecimento directo do facto, por um lado,
- e a sua razão de ciência quanto ao mesmo provém daquilo que ouviram a Autora dizer-lhes a elas.
- Por outro lado, a segunda testemunha confessa mesmo não saber se o ex-marido da Autora, actual Réu, contribuiu ou não para o referido pagamento.
- As testemunhas não assistiram à doação, não ouviram falar da doação pela boca de quem alegadamente doou e, pelo menos uma, confessa não saber se o Réu contribuiu ou não para o preço.
- Ou seja, além de não terem conhecimento directo do facto doação, a segunda testemunha coloca mesmo dúvidas sobre se a A. pagou o preço sozinha ou não.
- O próprio acórdão diz o mesmo na sua fundamentação: "(…) e desde o abandono da casa em 1999 (...) ; (…) O comportamento posterior do Réu deu conta de que ele se absteve completamente do seu dever de marido como do pai, pouco de um ano após a aquisição, o Réu abandonou completamente a família (...)."
- Ou seja, por muito má que fosse a relação entre ambos, a verdade é que só em 1999 o Réu abandonou o lar, a nova casa, não havendo qualquer indício, nos autos, de que em 1998 não contribuía para a vida familiar,
- Nomeadamente para o pagamento do preço da casa.
- Por outro lado, não há nos autos nem nos depoimentos das testemunhas uma referência temporal quanto ao momento da alegada doação.
- Não se sabe, não foi feita, prova e incumbia à Autora prová-lo.
- A ausência de conhecimento dos factos senão através da A. e o desconhecimento directo que tinham sobre a vida do casal é patente e confessado por ambas as testemunhas.
- Deste modo, repete-se aqui o raciocínio, ressalvada diversa opinião, uma correcta valoração destes depoimentos como meio de prova teria que haver dado por não provado que a Autora pagou o preço do imóvel exclusivamente com dinheiro que lhe havia sido doado pela irmã mais velha.
- A fragilidade dos depoimentos, a contextualização e raciocínio lógico apontam para o inverso: casa comprada por ambos para ambos com dinheiro de ambos.
- Como tal, uma vez que estes dois depoimentos são o único meio de prova sobre o qual foi edificada a resposta ao quesito 3°, e a sentença do divórcio reporta-se à situação em 1994, muito antes dos factos, tal resposta deve ser modificada no sentido de os quesitos serem simplesmente dados por não provados, na sua totalidade.
- Significa isto que fica dado por não provado
"3° - A fracção foi comprada pelo preço que foi exclusivamente pago pela Autora com dinheiro que lhe foi dado pela sua irmã mais velha F?"
- Consequentemente, deve ser alterada a decisão do Tribunal de la Instância sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artº 629°, nº 1, a) e nº 2,
- e ser declarado que a fracção em causa é bem comum da Autora e Réu, que integra o património de bens comuns do casal, revogando consequentemente as decisões que atribui à Autora a propriedade do imóvel, condena o Réu a reconhecer esse direito da Autora sobre a fracção autónoma e que ordena a rectificação do registo.
- Quanto aos Quesitos 4° e 5°
- Com o devido respeito, que é muito e nunca é demais lembrar, não se encontra no acórdão com a decisão sobre a matéria de facto qualquer fundamentação para sustentar as conclusões a que se chegou quanto aos quesitos quatro e cinco.
- Em relação ao quesito 4°, diz única e exclusivamente o douto acórdão: "(...) e que desde o abandono da casa pelo Réu, em 1999, a Autora vivia no imóvel, considerando a sai própria como dona da fracção".
- A afirmação é, de facto, conclusiva, mas não é precedida pela necessária obrigação de fundamentação, análise crítica da prova que conduziu à mesma conclusão.
- Em relação ao quesito 5°, "O Réu nunca se considerou como dono da fracção", e novamente com o devido respeito, não encontra o Réu, no acórdão citado, qualquer fundamento de facto ou de direito para que o tribunal o haja considerado provado.
- Ou seja, também não é fundamentada com a análise crítica da prova que a ela conduziu.
- Pelo que o mesmo acórdão deve ser considerado nulo quanto a estes dois quesitos, por violação do disposto no artº 556, nº 2 do C.P.C.
II - Da incorrecta aplicação e interpretação dos Artigos 1722° e 1729 do Código Civil de 1966, 1605° do Código Civil actual.
- Mesmo não procedendo as alegações acima do R., continuando o Venerando TSI a dar como provados os quesitos 1 a 3°, hipótese que se admite como mera cautela de patrocínio, sempre deverá a douta sentença ser revogada pela, com o devido respeito, incorrecta interpretação e aplicação das normas legais.
a. Vejamos,
- À data da celebração da escritura pública de compra e venda referida no facto assente A, vigorava em Macau o anterior Código Civil aprovado pelo DL. nº 47344, de 25 de Novembro de 1966, extensivo a Macau como indicado pela Autora com as disposições que o modificaram.
- No entanto, não pode o Réu concordar com tal fundamentação jurídica de considerar a alegada doação a favor apenas da Autora e a casa bem próprio na medida em que,
- está em vigor o Código Civil aprovado pelo DL. nº 39/99/M, que no seu artº 31, nº 2 é muito claro ao dispor que "os casamentos anteriores submetidos por lei anterior a determinado tipo legal de regime de bens, seja a título imperativo, seja a título supletivo, continuam sujeitos a esse tipo de regime de bens, mas com o conteúdo de que ele é provido pelo novo Código, nos termos do número anterior" (sublinhado nosso) .
- E diz o nº 1 do mesmo artigo 31 ° que "Os efeitos jurídicos dos casamentos contraídos antes da entrada em vigor do novo Código Civil, quer quanto às pessoas quer quanto aos bens dos cônjuges, são os nele previstos, e não os estabelecidos em lei anterior, salvo na medida em que tal envolva a produção de efeitos retroactivos" (sublinhado nosso).
- Assim, o regime de bens a aplicar ao caso em concreto é o da comunhão de adquiridos com o conteúdo e regulação do Código Civil actualmente em vigor, por força do Artº 31, nº 1 do DL 39/99/M.
- No seu Artº 1606, nº 1 presume o novo Código Civil que, "quer para efeitos entre os cônjuges, quer para efeitos perante terceiros, que são comuns o dinheiro ou valores utilizados por qualquer dos cônjuges na aquisição de bens ou benfeitorias".
- Nâo havendo, no presente Código, qualquer artigo análogo ou com o mesmo fim do Artº 1723°, C) do Código anterior (sublinhado nosso).
- Logo, mesmo tendo ficado provado a tese da Autora de que adquiriu a fracção com dinheiro próprio que lhe havia sido doado pela irmã, que se admite por mera hipótese, a fracção, ao abrigo do disposto no já citado Artº 1606, n° 1 do actual Código Civil, entrou para o património comum, logo é e sempre foi propriedade de ambos os cônjuges.
- Mesmo que assim não se entenda, sempre se deve interpretar o disposto no artº 1605, n° 1 do CC actual de forma diferente da interpretada pelo douto Tribunal a quo.
- O Artº. 1605, n° 1, última parte do actual Código Civil dispõe que a doação é feita para entrar na comunhão por vontade do doador se a liberalidade for feita em favor dos dois cônjuges conjuntamente.
- Ora, tal doação teria sido feita em momento anterior à aquisição da fracção, ou seja, terá ocorrido ou em 1995, nomeadamente no ano de 1993, quando A. e R. ainda partilhavam casa de família, faziam vida de casal e se viram na necessidade de ter de mudar de casa e pagar o sinal,
- Ou em 1998 quando, vivendo juntos, em família, teriam de fazer face ao pagamento do remanescente do preço.
- Assim, a verdade é que a referida doação foi feita em favor dos dois cônjuges conjuntamente, pois nada em contrário resultou provado no julgamento.
- Assim, a doação entrou no património comum por força tanto do já citado Artº 1605, n° 1, ou, mesmo que assim não se entendesse, a lei assim o presume por força do artº 1606, n° 1 e 2.
- Não podendo tal bem ser excluído da comunhão, por força do Artº 1603, n° 1 do Código Civil, o Réu sempre foi e é titular em comunhão com a Autora do bem desde o momento da sua aquisição, com participação nos termos do Artº 1607°, nº 1.
- Para que tal fosse possível, teria que ter ficado explícito na escritura de compra e venda que o bem fora adquirido com dinheiro próprio da Autora, algo que não aconteceu como demonstra o facto Assente B.
- Pelo que, mesmo considerando provada a doação, deve ser a douta sentença revogada e declarado improcedente o pedido da Autora de ver ser reconhecido como seu bem próprio a fracção, a condenação do Autor a reconhecer esse direito e a rectificação do registo.
- Assim, ressalvada diversa opinião, deve a douta sentença recorrida ser revogada quanto a esta parte, e ser o Réu absolvido dos pedidos.
III - Da improcedência dos pedidos subsidiários da Autora
- Também por mera cautela de patrocínio, e para o caso de ser declarada pelo Venerando TSI a improcedência do primeiro pedido, seja por alteração da matéria de facto seja por aplicação do direito conforme o entendimento do Réu ou outros termos considerados adequados, devem também ser declarados improcedentes os pedidos subsidiários da Autora pelos motivos de facto e direito que a seguir se expõem:
III.I Da improcedência da prescrição aquisitiva:
- A aquisição da quota-parte da fracção em causa propriedade do R. por usucapião também deve naufragar, pelos fundamentos de facto, e de direito que a seguir se exporão.
- Antes do mais, por impedimento absoluto legal, fruto do disposto no art.º 311°, n° 1 do Código Civil de Macau.
- Ou seja, mesmo admitindo, o que não se concede mas aqui se coloca como hipótese para meros efeitos do exercício da defesa, que é possível considerar a A. possuidora e por conseguinte a aquisição por usucapião do direito de propriedade do R. sobre a dita fracção,
- Não pode a A. invocar a posse como fundamento para essa aquisição nos termos do Artº 1212 do Código Civil, ignorando o comando do Artº 1217 do mesmo código, que manda aplicar as regras da prescrição.
- E prescreve o Artº 311º do Código Civil que só decorridos dois anos após o termo da relação de casamento pode um cônjuge invocar contra o outro a prescrição aquisitiva.
- Ou seja, antes de decorridos dois anos sobre a data em que foi decretado o negócio, o que só aconteceu em Dezembro de 2017, não se completou o prazo de prescrição,
- Encontrando-se o mesmo suspenso por força da existência da presente acção e contestação.
- Tal como, aliás, muito claramente dispõe o ilustre Professor Gonçalves Marques nas suas "Lições de Direitos Reais", Faculdade de Direito da Universidade de Macau, p.376 e ss.,:
a. "À usucapião são aplicáveis as regras relativas à suspensão e inter:cupção da prescrição (CCM, art.s 311.° e ss. e 315.º e ss; CCP, art.s 318.°. e ss. e 323. ° e ss.). (...)
b. A regra, portanto, é de que a usucapião não começa, não corre nem se completa nos casos em que também a prescrição não começa, não corre nem se completa (ex vi CCM, art. 1217.°; CCP, art. 1292.°).
c. Pode haver suspensão e pode haver interrupção dos prazos de usucapião.
  a) Suspensão
d. A suspensão não inutiliza o tempo que já decorreu para a usucapião. O que acontece é que o tempo não anda enquanto se mantiver a causa de suspensão.
e. A suspensão pode ser:
- - de termo: o prazo "não se completa" (suspensão de termo) enquanto se mantiver a causa de suspensão (CCM, art.s 311.°, 312.°, 314.°; CCP, art.s 320.°, 1-2.ª parte, e 322.°); (...)" (sublinhado nosso)
- Logo não pode ser invocada a usucapião entre a A. e o R. para os efeitos pretendidos com a douta P.I., na medida em que o prazo legal não se completa durante o período de suspensão.
- E, por muito que a A. queira levar o tribunal a considerar o contrário, o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva, salvo se tiver havido inversão do título (algo que não sucedeu, pelo contrário), tal como prevê literalmente o n° 2 do Artº 1302 do Código Civil.
- Como se disse, o Réu sempre soube que era proprietário de metade da casa,
- E o facto de não ter atendido às necessidades da casa, de não ter lá vivido, de não ter pagado contas e outras actividades típicas do exercício do direito de propriedade deveu-se a não se querer imiscuir, por um lado, na vida da sua esposa que já não era companheira, dadas as dificuldades de relacionamento,
- e por saber, por outro, que aquela era a casa de morada de família e deveria ser gerida por quem lá vivia, com o apoio que sempre que pôde o R. foi dando.
- O R. nunca reclamou o seu direito de propriedade sobre metade da casa porque, primeiro, não precisava pois nunca o sentiu em risco, e, depois,
- Porque aquela era a casa de morada de família, era lá que vivia a sua ainda esposa com os dois filhos e jamais ele poria essa estabilidade em risco.
- Mais, a sentença do divórcio de 14/12/2015 foi clara ao não só confirmar que a fracção era património comum como, e tal tendo acontecido há menos de um ano, confirmou que o R. é proprietário de metade da mesma desde 1999.
- Só por dificuldades económicas é que o R. não contribuiu mais para o sustento da vida dos filhos e da agora ex-mulher,
- pelo que não pode a A. também alegar ter sempre tido o ânimus possidendi apenas porque o R. nunca lhe pediu que liquidasse o valor de metade da fracção ou o deixasse lá viver por também ser proprietário.
- O R. sempre respeitou a distância devida entre um ex-casal, separado de facto e que não se dava bem, não podendo só por isso ser privado do seu direito de propriedade sobre metade da casa de morada de família,
- Sobretudo havendo i) um título formal de aquisição a favor de ambos registado (a escritura de compra e venda e o correspondente registo tal como referido na P.I.) e ii) uma sentença de tribunal datada de 14/12/2015 e junta pela própria A. que mandou reportar a 1999 os efeitos do fim da comunhão e a constituição dos respectivos direi tos individuais dos divorciados sobre a fracção.
- A procedência do quesito 4° como provado não deve ser entendida como conferindo à A. qualidade de possuidora da metade da fracção propriedade do R., na medida em que a A. exerceu os seus direitos e deveres de comproprietária da fracção - alguém teria que lá viver de qualquer das formas e comportar as despesas - ou, antes, lá vivia com os filhos de ambos servindo a fracção de casa de morada de família.
- Deverá, assim, pelo exposto, ser também considerado improcedente o pedido de aquisição prescritiva por invocação da usucapião por não estarem reunidos os pressupostos de facto e de direito para que esta se verifique.
III.II Da improcedência do pedido de condenação por enriquecimento sem causa
- Como ficou provado, o Réu era casado em regime de comunhão de adquiridos com a Autora ao momento da aquisição da fracção, a fracção era património comum do cônjuges até 1999 e, por sentença judicial de 14 de Dezembro de 2015, o Réu passou a ser o legal proprietário de metade da fracção desde então, em regime de compropriedade.
- A própria Autora sabia que estava casada, em que regime estava casada, logo o Réu não só não enriqueceu sem causa justificativa, como muito menos o fez à custa da Autora, não estando, por isso, preenchidos os requisitos legais para que surja a obrigação de indemnização prevista no Art°. 467º, n° 1 do Código Civil.
- É que o dever de contribuir para os encargos da vida familiar - mesmo estando separados de facto, concede-se - incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia das possibilidades de cada um (artº 1537°, n° 1 do Código Civil).
- E diz a lei, no 1537°, n° 2 do Código Civil, que, se as prestações forem desequilibradas, então presume-se que aquele que contribui mais renuncia ao direito de exigir ao outro a correspondente compensação.
- Nunca foi ao R. pedida a compensação, tendo aliás, pela sentença de divórcio junta com a P.I., sido declarado improcedente qualquer pedido de pagamento de quantia pecuniária pedido a qualquer título de danos pela A. na acção de divórcio.
- Logo, nos termos da lei, a Autora renunciou a esse direito já que nunca o exigiu.
- Se achava· que tinha tal direito, então devê-lo-ia ter exigido nos termos do n° 3 do mesmo Artº 1537° e não agora, já depois de decretado o divórcio, apenas para se poder afirmar credora de forma a poder ver-lhe reconhecido direi to de retenção, de possuidora e de assim poder adq0irir a totalidade da fracção por usucapião.
- Diga-se, também, que tal pretensão da Autora deverá naufragar pelo facto de as despesas elencadas despesas naturais de administração e benfeitorias imóvel.
III.III Da inexistência do Direito de Retenção
- Pede ainda a Autora, também a título subsidiário, que lhe seja reconhecido o direito de retenção como garantia para o pagamento das quantias a que acha ter direito por enriquecimento sem causa.
- Ora, a Autora invoca que deverá ser sempre considerada possuidora por força de ser titular de um direi to de retenção e ser essa posse computada para efeitos de prescrição aquisitiva.
- O direito de retenção - independentemente de conceder ao devedor o estatuto de possuidor - só existe a favor de um devedor que disponha de um crédito contra o seu credor e esteja obrigado à entrega da coisa, tal como prescrito no Artº 744°· do Código Civil (sublinhado nosso).
- E não ficou provado qualquer facto que coloque a Autora na qualidade de devedora do Réu, o Réu não é seu credor e, acima de tudo, não está a Autora obrigada à entrega da fracção.
- Por outro lado, a lei é específica quanto ao exercício do direito de retenção sobre coisas imóveis, no Artº 749 do Código Civil.
- Caso existisse direito de retenção da Autora sobre a metade da fracção, algo que pelo exposto não se concede em absoluto, à Autora cabia a faculdade de a executar para se fazer pagar do seu crédito, nos termos do Artº 749°, n° 1 do Código Civil (sublinhado nosso).
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A Autora respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 366 a 372 dos autos, cujo teores aqui se dão por integralmente reproduzidos, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
- A fracção autónoma objecto da presente acção, para habitação, designada por “C9”, sita na XXX, encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.ºXXX, a fls. XXX do Livro B192M. (alínea A) dos factos assentes)
- A Autora e o Réu escolheram formalizar o seu casamento na Conservatória do Registo Civil de Macau no dia 30 de Outubro de 1993 sem convenção antenupcial. (alínea 1-A) dos factos assentes)
- Conforme resulta da sentença de divórcio proferida em 14/12/2015 no processo n.º FM1-14-0113-CDL, que correu termos pelo Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base, foi decretado o divórcio entre a Autora e o Réu e que o último foi declarado como único culpado e se julgou que a coabitação entre os cônjuges cessou em 1999 – cfr. doc. de fls. 38 a 44, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (alínea 1-B) dos factos assentes)
- Não ficou a constar da escritura pública de compra e venda – cfr. fls. 16 a 20 nos autos – a declaração de que a fracção foi adquirida com dinheiro próprio da Autora. (alínea B) dos factos assentes)
- Desde que pagou o preço da fracção a Autora passou a considerá-la como exclusivamente sua. (alínea C) dos factos assentes)
- Foi a Autora que, desde que a fracção lhe foi entregue em 19/06/1998, suportou sozinha as despesas da fracção. (alínea D) dos factos assentes)
- Em 04 de Abril de 1999, o Réu anunciou que ia viver com a sua amante, tendo, no mesmo dia, entregue as chaves da casa à Autora, dizendo-lhe que não precisava da casa dela para nada e que nunca mais lá voltava. (alínea E) dos factos assentes)
- Tendo a Autora nela continuado a viver com os filhos. (alínea F) dos factos assentes)
- Foi a Autora quem continuou a pagar tudo quanto foi necessário à sua habitabilidade e boa conservação ao longo dos anos. (alínea G) dos factos assentes)
- Não só com a aquisição, instalação e/ou substituição da canalização, trabalhos de encastração das prateleiras e armários dos quartos e na sala de estar, do equipamento e mobiliário necessário, por exemplo, máquina de lavar, frigorífico, sistema de exaustão de fumos da cozinha. (alínea H) dos factos assentes)
- Mas também com a aquisição, instalação e manutenção do gradeamento das janelas e varanda, do ar condicionado e da calafetagem e impermeabilização das janelas, a substituição das torneiras da cozinha e casas de banho, reboco da rachas e/ou zonas estragadas e pintura dos tetos e paredes, afagamento dos soalhos, substituição de interruptores, tomadas e da cablagem eléctrica, bem como a instalação de fibra óptica e substituição pontual de envidraçados e ladrilhos. (alínea I) dos factos assentes)
- O Réu em nada contribuiu para conservação da fracção, nunca tendo pago quaisquer taxas, impostos, condomínio ou quaisquer outras despesas com ela relacionadas. (alínea J) dos factos assentes)
- A Autora declarou a morada da fracção no The Venetian Macao, na Direcção Serviços da Identificação, no Plano de Comparticipação Pecuniária no Desenvolvimento Económico, no Banco Tai Fung e na Hutchison Telephone (Macau) Company Limited. (alínea K) dos factos assentes)
- Usando essa morada para efeitos de correspondência postal. (alínea L) dos factos assentes)
- No ano de 1995, a Autora pagou MOP$51,450.00 (MOP$171,500.00 x 30%) a título de sinal, aquando da assinatura do contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma identificada em A), celebrado ao abrigo do regime jurídico dos contractos de desenvolvimento para a habitação (CDH) plasmado no Decreto-Lei n.º 13/93/M, de 12 de Abril. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- No ano de 1998, pagou o remanescente MOP$120,050.00 (MOP$171,500.00 x 70%), aquando da assinatura da escritura pública de compra e venda da mesma fracção em 19 de Junho de 1998. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- A fracção foi comprada pelo preço que foi exclusivamente pago pela Autora com dinheiro que lhe foi dado pela sua irmã mais velha C. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- A Autora ocupava, usava e administrava a fracção à vista de todos, incluindo à vista do Réu, como se de um bem próprio se tratasse. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- O Réu nunca se considerou como dono da fracção. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
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III – Fundamentação
1. Da impugnação da decisão da matéria de facto:
Vem o Réu impugnar a decisão da matéria de facto quanto aos quesitos 1º a 5º da Base Instrutória, a saber:
1
   No ano de 1995, a Autora pagou MOP$51,450.00 (MOP$171,500.00 x 30%) a título de sinal, aquando da assinatura do contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma identificada em A), celebrado ao abrigo do regime jurídico dos contractos de desenvolvimento para a habitação (CDH) plasmado no Decreto-Lei n.º 13/93/M, de 12 de Abril?
   Resposta ao quesito: Provado.
2
No ano de 1998, pagou o remanescente MOP$120,050.00 (MOP$171,500.00 x 70%), aquando da assinatura da escritura pública de compra e venda da mesma fracção em 19 de Junho de 1998?
Resposta ao quesito: Provado.
3
   A fracção foi comprada pelo preço que foi exclusivamente pago pela Autora com dinheiro que lhe foi dado pela sua irmã mais velha C?
   Resposta ao quesito: Provado.
4
   A Autora ocupava, usava e administrava a fracção à vista de todos, incluindo à vista do Réu, como se de um bem próprio se tratasse?
Resposta ao quesito: Provado
5
   O Réu nunca se considerou como dono da fracção?
Resposta ao quesito: Provado.
Para o Réu, os referidos quesitos deveriam ser provados pela forma seguinte:
Quesito 1º: “NÃO PROVADO”
Quesito 2º: “NÃO PROVADO”
Quesito 3º: “NÃO PROVADO”
Quesito 4º: “NÃO PROVADO”
Quesito 5º: “NÃO PROVADO”
Como é sabido, segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.° do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
Sobre o princípio da imediação ensina o Ilustre Professor Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil, I, 175), que “é consequencial dos princípios da verdade material e da livre apreciação da prova, na medida em que uma e outra necessariamente requerem a imediação, ou seja, o contacto directo do tribunal com os intervenientes no processo, a fim de assegurar ao julgador de modo mais perfeito o juízo sobre a veracidade ou falsidade de uma alegação”.
Já Eurico Lopes Cardoso escreve que “os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe.” (in BMJ n.º 80, a fls. 220 e 221)
Por sua vez Alberto dos Reis dizia, que “Prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador seguindo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei. Daí até à afirmação de que o juiz pode decidir como lhe apetecer, passando arbitrariamente por cima das provas produzidas, vai uma distância infinita. (...) A interpretação correcta do texto é, portanto, esta: para resolver a questão posta em cada questão, para proferir decisão sobre cada facto, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, forma sua convicção como resultado de tal apreciação e exprime-a na resposta. Em face deste entendimento, é evidente que, se nenhuma prova se produziu sobre determinado facto, cumpre ao tribunal responder que não está provado, pouco importando que esse facto seja essencial para a procedência da acção” (in Código de Processo Civil anotado, Coimbra Editora IV, pago 570-571.)
É assim que “(...) nem mesmo as amarras processuais concernentes à prova são constritoras de um campo de acção que é característico de todo o acto de julgar o comportamento alheio: a livre convicção. A convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Nesse sentido, princípios como os da imediação, da aquisição processual (artº 436º do CPC), do ónus da prova (artº 335º do CC), da dúvida sobre a realidade de um facto (artº 437º do CPC), da plenitude da assistência dos juízes (artº 557º do CPC), da livre apreciação das provas (artº 558º do CPC), conferem lógica e legitimação à convicção. Isto é, se a prova só é "livre" até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho no tocante à matéria de facto só nos casos restritos no âmbito do artºs. 599º e 629º do CPC pode ser levada a cabo. Só assim se compreende a tarefa do julgador, que, se não pode soltar os demónios da prova livre na acepção estudada, também não pode hipotecar o santuário da sua consciência perante os dados que desfilam à sua frente. Trata-se de fazer um tratamento de dados segundo a sua experiência, o seu sentido de justiça, a sua sensatez, a sua ideia de lógica, etc. É por isso que dois cidadãos que vestem a beca, necessariamente diferentes no seu percurso de vida, perante o mesmo quadro de facto, podem alcançar diferentes convicções acerca do modo como se passaram as coisas. Não há muito afazer quanto a isso.” (Ac. do TSI de 20/09/2012, proferido no Processo n° 551/2012)
Deste modo, “A reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação” (Ac. do STJ de 21/01/2003, in www.dgsi.pt)
Com efeito, “não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respectivas instâncias, não bastando que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos.(...).” (Ac. do RL de 10/08/2009, in www.dgsi.pt.)
Ou seja,
Uma coisa é não agradar o resultado da avaliação que se faz da prova, e outra bem diferente é detectarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.
Vamos agora analisar se o Tribunal a quo cometeu erros claros de julgamento na decisão da matéria de facto.
O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção pela forma seguinte:
   “… A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, nos documentos de fls. 12 a 162 dos autos, cujo teor se dá reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permite formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.
   Em especial, se o preço para aquisição do imóvel em discussão foi pago exclusivamente pela Autora com o dinheiro próprio, as testemunhas da Autora deram conta de que o preço para aquisição do referido imóvel foi, totalmente, pago pela Autora com o dinheiro emprestado pela sua irmã, e que desde o abandono da casa pelo Réu em 1999, a Autora vivia no imóvel, considerando a si própria como dona da fracção. As testemunhas do Réu nada souberam sobre os factos, visto que nenhum deles conhecia a família do Réus menos sabia a relação entre a Autora e o Réu. Pese temos como suporte somente o depoimento das testemunhas, não havendo outras provas mais substanciais do pagamento do preço, considerando que os factos foram ocorridos há cerca de vinte anos, sendo difícil agora apresentar provas de pagamentos, por um lado, e por outro lado, tomando em conta os factos provados na sentença do divórcio de ambos, no ano 1994, o casal vivia numa casa de madeira mas na altura, o Réu apenas dormia duas ou três vezes por mês na casa, no resto do tempo, a Autora não sabia onde o Réu vivia nem o que fazia ao certo, implica que nessa altura, o Réu já não ligava muito com a Autora nem com os filhos de ambos, não sendo provável que ele contribuía para os encargos da família menos para a aquisição de imóvel. O comportamento posterior do Réu deu conta de que ele se absteve completamente do seu dever do marido como do pai, pouco de um ano após a aquisição, o Réu abandonou completamente a família e foi viver com a sua amante, deixando a Autora a suportar todos os encargos da família. O desinteresse demonstrado pelo Réu para com a família, em articulação com a prova testemunhal faz o Tribunal a acreditar que ele nada tinha contribuído para a aquisição do imóvel. O facto de, antes de compra do imóvel, toda a família vivia numa casa de madeira e de o Réu raramente voltar para a casa aponta que a Autora não tinha meios económicos, sendo mais consistente que ela pediu aos seus familiares ajuda económica para aquisição da casa. Ponderando essas razões, levou o Tribunal a convencer positivamente os factos alegados pela Autora, particularmente, o preço da fracção foi pago exclusivamente por ela com o dinheiro que lhe foi emprestado pela sua irmã.
   Nestes termos, deram-se por provados todos os factos quesitados…”.
Da sua análise não resulta qualquer erro claro de julgamento nem eventuais violações de regras e princípios de direito probatório, pelo que não assiste razão ao Réu ao colocar em causa a apreciação e julgamento da matéria de facto realizada pelo Tribunal a quo.
Na verdade, segundo os factos provados na sentença do processo de divórcio, a Autora e o Réu viviam, no ano de 1994, numa casa de madeira, o que indicia que as condições económicas das mesmas não eram boas.
Assim sendo, não se afigura que a Autora, sem ajuda de terceiro, conseguiria adquirir o imóvel em causa.
Por outro lado, o Réu já não ligava muito com a família naquele momento, não obstante a cessação da coabitação só se concretizou em 1999.
Nesta conformidade, nada a censurar a convicção formada pelo Tribunal a quo no sentido de que a Autora adquiriu o imóvel com o dinheiro doado pela sua tia.
2. Do mérito da causa:
A sentença recorrida tem o seguinte teor:
   “…
   Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
   Nos presentes autos, alega a Autora que a fracção autónoma “C9”, sita na XXX, apesar de ter sido adquirida na constância do casamento celebrado com o Réu, no entanto, na altura, o Réu não tinha emprego nem contribuído para as despesas da família, tendo, definitivamente, abandonado a casa para ir viver com a sua amante em 1999, tendo entregue as chaves da casa à Autora, o preço para a compra da fracção foi exclusivamente pago pela Autora com dinheiro que lhe foi dado pela sua irmã mais velha C, pretendendo, a título principal, que a fracção seja considerada como bem própria da Autora e subsidiariamente, que seja considerada como proprietária da fracção por usucapião e, ainda subsidiariamente, a condenação do Réu no pagamento da quantia a apurar na liquidação por enriquecimento sem causa com o reconhecimento do direito de retenção sobre a fracção à Autora.
   Na contestação, defende o Réu que o regime de bens aplicado ao casal está sujeito às regras previstas no Código Civil actual, por força do art°31° do D.L. 39/99M, e não às normas reguladas no Código Civil de 1966, assim sendo, ao presente caso não é aplicável o disposto do art°1723°, c) do Código anterior e nos termos do art°1606°, n°1 do Código Civil actual, o bem é considerado comum mesmo que o preço da fracção autónoma fosse paga pelo dinheiro doado pela irmã da Autora. Argumenta ainda o Réu que não há lugar a usucapião da quota-parte da fracção pertencente ao Réu pela Autor por aplicação da regra suspensiva prevista no art°311° do C.C. actual. Por último, entende o Réu que a Autora não tem crédito sobre ele, nem goze direito de retenção sobre a fracção autónoma.
Aplicação da lei no tempo
   Fundamenta a Autora a sua pretensão nos termos do art° 1723°, c) do Código Civil anterior, mas defende o Réu que não são aplicáveis as normas do Código anterior mas as normas do Código Civil actual por força da norma transitória prevista no n°2 do art°31° do Decreto-Lei n°39/99/M.
   Para a resolução da primeira questão jurídica colocada pelas partes, urge saber qual é a lei do regime de bens aplicável ao presente caso, as normas previstas no Código Civil actual ou no Código Civil de 1966.
   Dispõe-se o art° 31° do Decreto-Lei n°39/99/M:
   “1. Os efeitos jurídicos dos casamentos contraídos antes da entrada em vigor do novo Código Civil, quer quanto às pessoas, quer quanto aos bens dos cônjuges, são os nele previstos, e não os estabelecidos em lei anterior, salvo na medida em que tal envolva a produção de efeitos retroactivos.
   2. Os casamentos anteriores submetidos por lei anterior a determinado tipo legal de regime de bens, seja a título imperativo, seja a título supletivo, continuam sujeitos a esse tipo de regime de bens, mas com o conteúdo de que ele é provido pelo novo Código, nos termos do número anterior.”
   De acordo com essa norma transitória, ao casamento celebrado anterior à entrada em vigor do Código Civil actual, o regime de bens de casamento é determinado conforme ao Código Civil anterior mas com o conteúdo previsto no Código actual.
   Porém, não podemos esquecer que essa disposição tem sempre de conjugar com a disposição do n°1 do mesmo artigo, pois, na sua última parte fazer remeter ao número 1 do mesmo artigo. Ou seja, para o casamento celebrado antes da entrada de vigor do Código Civil actual, o conteúdo do regime de bens de casamento é, em regra, determinado pelo Código actual, com excepção da produção dos efeitos retroactivos, sob as normas do Código anterior.
   Ora, o casamento entre a Autora e o Réu foi celebrado sem convenção antenupcial em 1993, à luz do Código Civil anterior. Ao casamento deles é aplicável o regime supletivo de comunhão de adquiridos, nos termos do art°1721° desse Código.
   No entanto, no que diz respeito ao conteúdo do regime de comunhão de adquiridos, é aplicáveis as normas do Código Civil actual se com a sua aplicação não implica a produção de efeitos retroactivos.
   No caso em discussão, coloca-se a questão da qualificação como bem comum ou próprio do cônjuge dum bem imóvel adquirido já em 1995, para responder a essa questão, incumbe indagar se esse bem foi adquirido por património próprio da Autora ou por esforço comum do casal na altura.
   Como se trata de factos ocorridos na vigência do Código anterior, só à luz desse Código é que permite saber se na altura, o bem em causa é considerado, na sua substância, como bem próprio dos cônjuges ou como bem comum. Portanto, ao presente caso, é aplicáveis as normas do Código Civil de 1966 e não do Código Civil actual.
   Caracterização do bem em causa- bem próprio ou bem comum
   Diz a Autora que a fracção autónoma discutida em causa tem a natureza de bem próprio por o preço para sua aquisição foi feito com dinheiro exclusivamente delas, o qual lhe foi doado pela sua irmã.
Dispõe-se o art°1722° do C.C. de 1966:
“1. São considerados próprios dos cônjuges:
a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento;
b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação;
c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.”
Conforme os factos tidos por assentes, o preço para a aquisição da fracção autónoma “C9”, sita na XXX foi pago pela Autora em 1995 e 1998. Fica provado ainda que a Autora pagou o preço com dinheiro que lhe foi dado pela sua irmã mais velha C.
De acordo com essa matéria fáctica apurada, o dinheiro com que a Autora pagou o preço da fracção autónoma foi doado a ela pela sua irmã. Assim, nos termos da alínea b) do n°1 do art°1722°, esse dinheiro é considerado bem próprio da Autora.
Pretende o Réu dizer que mesmo houvesse doação, o bem doado é considerado como bem comum por força do art°1605°, n° 1 do C.C. actual, correspondente ao art°1729°, n°1 do C.Ç. anterior.
Não partilhamos com a posição defendida pelo Réu.
Preceitua-se o n°1 do art°1729° que “Os bens havidos por um dos cônjuges por meio de doação ou deixa testamentária de terceiro entram na comunhão, se o doador ou testador assim o tiver determinado; entende-se que essa é a vontade do doador ou testador, quando a liberalidade for feita em favor dos dois cônjuges conjuntamente.”
Ao contrário do que se entende o Réu, a doação feita a um dos cônjuges é, em regra, considerada em favor do próprio cônjuge, apenas no caso de se demonstrar que a vontade do doador é no sentido de em favor dos dois cônjuges, assim, o bem doador entra no património comum.
No caso em apreço, só fica demonstrado que o dinheiro foi doado à Autora pela sua irmã, não havendo prova de que a vontade do doador foi a favor dos dois cônjuges. Portanto, o dinheiro doado à Autora não entrou no património comum do casal, ao abrigo desse normativo.
Coloca-se a questão a saber se o outro bem a adquirir com o emprego desses meios mantém-se a caracterização de bem próprio, ou o mesmo passa a entrar no património comum.
Encontramos a resposta na alínea c) do art°1723° do C.C. de 1966 em que se diz que os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.
Discute-se, quer na doutrina quer na jurisprudência, se a falta da indicação da proveniência dos meios no título aquisitivo ou da intervenção de ambos os cônjuges, os bens adquiridos com emprego dos meios exclusivamente de um dos cônjuges conservam a qualidade de bem próprio ou passam a entrar no património comum.
Defendem os Professores Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito de Família”, Vol I, na pág. 519,
“Para que o bem adquirido a título oneroso não entre para o património comum, é necessário que os terceiros tenham um meio fidedigno de afastar a sua expectativa normal; este meio é a declaração inequívoca dos dois cônjuges, no momento de acto, acerca da proveniência dos valores mobilizados para a aquisição.
Sendo uma ideia de protecção de terceiros que justifica a especial exigência do art°1723°, alínea c), cremos que tal só deverá aceitar-se onde o interesse de terceiros o exigir. Não estando em causa o interesse de terceiro mas única e simplesmente o dos cônjuges, nada parece impedir que a conexão entre os valores próprios e o bem adquirido seja provada por quaisquer meios.”
A jurisprudência maioritária tem acolhido a posição de que quando estiveram em jogo interesses de terceiros, carece da prova por documento da conexão entre os valores próprios e o bem adquirido, mas nas relação internas entre os cônjuges, não se exige tal prova documental, basta prova por quaisquer meios.
É essa posição sufragada pelo Acórdão de uniformização de jurisprudência do S.T.J. citado pela Autora e também consentido pelo Réu, “Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art°1723°, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens… e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal.”
No caso em apreço, está em causa a caracterização do bem como próprio ou comum entre a Autora e o Réu, não envolvendo os interesses de terceiros, obstáculo não deverá haver a qualificação da fracção autónoma como bem próprio da Autora, visto que se mostra que o dinheiro com que pagou o preço da fracção autónoma pertencia exclusivamente à Autora.
Assim, a fracção autónoma deverá ser caracterizada como bem próprio da Autora, não integrando no património comum do casal.
Rectificação da inscrição predial
Pede ainda a Autora a rectificação do respectivo registo.
Conforme o registo predial constante de fls. 22 a 37, a fracção autónoma está registada, sob a inscrição n°6096F, a favor da Autora e do Réu, casado, em regime de comunhão de adquiridos.
De acordo com o que se refere acima, a fracção autónoma em jogo é considerada como bem próprio da Autora e não património comum. O que consta do registo não se permite reflectir essa realidade jurídica do prédio, nomeadamente o sujeito da relação jurídica.
Dispõe-se o art°19° do C.R.P. que o registo é inexacto quando se mostre lavrado em desconformidade com o título que lhe serviu de base ou enferme de deficiências provenientes desse título que não sejam causa de nulidade.
Não está em causa a desconformidade entre o registo e o título. A desconformidade provém da inexactidão do título onde consta o prédio é adquirido pela Autora e Réu, casados entre si, em regime de comunhão de adquiridos, mas na realidade o bem é apenas adquirido pela Autora, com dinheiro exclusivamente dela.
Essa desconformidade entre o registo e a realidade acima reconhecida não são causas de nulidades a que se refere o art°17° do Código de Registo Predial.
Nesse caso, será, então, admitida a sua rectificação em conformidade com a realidade jurídica, independentemente da rectificação do título?
Sobre a questão da rectificação, escreve Monteiro Guerreiro, “O actual Código englobou estes dois conceitos – erro e irregularidade- num único, que designou por inexactidão. A alteração teve o efeito prático de determinar a aplicabilidade do mesmo processo de rectificação às duas hipóteses. Nomeadamente, as que respeitam às deficiências dos títulos que não obrigam à prévia emenda destes. Neste caso, não há agora, portanto, no registo predial, motivo para obrigar os interessados a proceder à rectificação dos títulos. Para só depois de rectificar o registo. Esse é um procedimento injustificado à face do actual CRP. O registo pode (deve) ser rectificado independentemente do título. Isto é, mesmo que este o não tenha sido.” (citado pelo Vicente João Monteiro, in Código do Registo Predial de Macau, Anotado e comentado, pág.222)
O que existe nesse caso é deficiência do próprio título ou inexactidão das declarações do título (escritura) relativamente aos sujeitos da relação jurídica, por completa omissão da menção dos meios empregues para a aquisição do imóvel, o que determina a caracterização do bem como comum ou próprio do casal.
Portanto, o registo, pese em conformidade com o título, é irregular, quando confrontado com a realidade factual ou jurídica que lhes subjaz.
Nestes termos, para adaptar com a realidade factual reconhecida no presente processo, impõe-se a proceder à rectificação do respectivo registo em conformidade.
Assim, deverá julgar-se procedente esse pedido.
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Julgados procedentes os pedidos principais, fica prejudicado o conhecimento dos pedidos subsidiários.
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I) DECISÃO
   Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga procedente a acção, em consequência, decide:
   - Declarar a fracção autónoma, para habitação, designada por “C9”, sita na XXX, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.ºXXX, a fls. 256 do Livro B192M, é bem próprio da Autora B, não integrando o acervo de bens comuns do ex-casal;
   - Condenar o Réu A a reconhecer o direito da Autora sobre a fracção autónoma referida;
   - Ordenar-se a proceder à rectificação da inscrição n°6069F, passando a mesma a constar que apenas a Autora é seu titular com a menção de que o bem é adquirido com dinheiro exclusivamente da Autora.
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   Custas da acção pelo Réu.
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   Registe e Notifique…”.
Trata-se duma decisão que aponta para a boa solução do caso, com a qual concordamos na sua íntegra, pelo que ao abrigo do nº 5 do artº 631º do CPCM, é de negar o recurso nesta parte com os fundamentos invocados na decisão recorrida.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
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Custas pelo Réu, sem prejuízo do apoio judiciário concedido á mesma.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 31 de Janeiro de 2019.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong



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847/2018