Proc. nº 707/2018
Recurso contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 14 de Fevereiro de 2019
Descritores:
- Erro na forma de processo
- Convolação para a espécie própria
- Tribunal incompetente
- Absolvição da instância
- Art. 15º do Estatuto do Advogado
- Art. 108º do CPAC
SUMÁRIO:
I - O erro na forma de processo é, em contencioso processual administrativo, excepção dilatória que conduz à rejeição liminar da petição, quando detectada nessa fase processual (art. 12º, nº1, do CPAC).
II - Decorrido o prazo de 30 dias sobre o trânsito do respectivo despacho de rejeição, haverá que convolar para a espécie adequada, ao abrigo do art. 12º, nº1 do CPAC e de princípios processuais como os favorecimento do processo ou “pro-actione”, da tutela jurisdicional efectiva (art. 2º, do CPAC), da adequação formal (art. 7º, do CPC) ou da cooperação (art. 8º, do CPC).
III - Ultrapassada a fase liminar dos autos sem aquele despacho de rejeição liminar ter sido proferido, por aproximação ao que dispõe o CPC e também por razões de economia e celeridade, haverá que averiguar se o processo pode ser convolado para a espécie própria. Proceder-se-á logo à convolação para a espécie adequada, se houver actos processuais que sejam aproveitáveis e anular-se-ão os que o não sejam. Na hipótese contrária, isto é, se não houver actos aproveitáveis, não haverá lugar à convolação e decidir-se-á logo pela simples rejeição ou, então, pela absolvição da instância.
IV - Se, após a convolação para a espécie adequada, for de concluir que o conhecimento da pretensão pertence à competência de outro tribunal, deverá o tribunal incompetente, após trânsito da respectiva decisão, remeter os autos ao tribunal competente, por aplicação do disposto nos arts. 12º, nº2, do CPAC e 33º, 145º, 412º, nº2 e 413º, al. a), do CPC , “ex vi” art. 1º, do CPAC, e ainda o art. 23º, nº1, da LBOJ.
Proc. nº 707/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
A, advogada, com domicílio profissional da XXX, Macau, -----
Vem recorrer contenciosamente para este TSI---
Do despacho da Ex.ma Juíza Presidente do Tribunal de Primeira Instância, ----
Que lhe indeferiu o pedido de passagem de certidão sobre a existência, ou não, de algum processo judicial de falência ou de dissolução, em que seja autora, ou ré, a “B, Ltd”.
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Na petição inicial, formulou as seguintes conclusões:
“A. O Despacho não acolhe a aquiescência da Recorrente porquanto incorre em erro na interpretação e aplicação da lei.
B. A Recorrente requereu uma passagem de certidão em termos idênticos a tantos outros requerimentos pedidos ao longo do exercício da sua profissão de advogada.
C. O Tribunal a quo exige à Recorrente a indicação dos processos concretos ou a apresentação de procuração, sem qualquer fundamento legal.
D. O Requerimento foi devidamente fundamentado ao indicar a finalidade de instrução de processo judicial, mas, ainda que não o fosse, o interesse atendível do advogado, enquanto age no exercício da sua profissão, presume-se.
E. A indicação dos processos concretos é precisamente o objecto do Requerimento, pelo que a Recorrente nunca poderia atender à exigência de indicação de processos concretos.
F. O advogado está dispensado da apresentação de procuração quando requer o exame de quaisquer processos ou passagem de certidões, o que faz sentido no caso em apreço, dada a situação de pré-contencioso entre a constituinte da Recorrente e a sociedade visada.
G. Ficam apenas salvaguardados processos de carácter reservado ou secreto, ou que cuja publicidade possa pôr em causa a eficácia de decisão a proferir, os quais não foram invocados pela Tribunal a quo, nem se aplica ao caso em apreço, dado que a certidão solicitada nada revela sobre o conteúdo dos processos.
H. Tendo em conta o princípio geral de publicidade, o direito especial de acesso do advogado e as condições de legitimidade para o tratamento de dados pessoais, a recusa de passagem de certidão tem necessariamente que ser fundamentada e baseada em preceitos legais expressos que permitam, ou mesmo exigam, tal recusa.
I. A recusa viola ainda o princípio da boa-fé e da confiança, porquanto contraria a actuação anterior do Tribunal, sem que tenha havido uma correspondente alteração legal.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, determinada a revogação do Despacho recorrido, por violação dos artigos 108.º, 117.º n.º 1 e n.º 2 e 124.º, n.º 1 do CPC, bem como do artigo 15.º n.º 1 do Estatuto dos Advogados, bem como do princípio da boa-fé, e ordenada a passagem de certidão nos termos requeridos pela Recorrente, só assim se fazendo JUSTIÇA!”
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A Presidente do TJB, C, apresentou contestação pugnando pela improcedência do recurso.
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No visto inicial, o digno Magistrado do MP opinou no sentido de que ocorre nos autos uma excepção que obsta ao conhecimento de mérito do recurso, concretamente o erro na forma do processo.
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Foram as partes notificadas do teor da posição do MP, na sequência do que apenas a entidade recorrida se pronunciou, aceitando o erro na forma de processo, mas defendendo a convolação e a posterior remessa dos autos ao Tribunal Administrativo, tudo nos termos do art. 145º, 413º, al. a) e 412º, nº2, do CPC “ex vi” art. 1º do CPAC.
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Cumpre apreciar.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é competente para conhecer do recurso contencioso.
Mas será o meio escolhido o próprio?
Não cremos.
Tal como resulta dos autos, A, advogada, requereu a emissão de certidão relativamente a uma sociedade. Tal pedido foi indeferido por despacho de 15/06/2018, contra o qual foi apresentada reclamação e de cuja decisão tomada em 5/07/2018 vem interposto o presente recurso contencioso.
O despacho em crise tem a seguinte redacção:
“DESPACHO
Alegando para o fim de redigir o parecer jurídico, veio a advogada Dr.ª A, junto deste Tribunal, procurar saber se corre termos neste Tribunal qualquer processo de acção declarativa ou executiva civil relativa à falência ou à dissolução em que seja a autora ou ré B, Lda., bem como pedir, em caso afirmativo, a emissão de certidão.
Nos termos do art.º 117.º, n.º2 do Código de Processo Civil, o princípio da publicação do processo civil visa proporcionar às partes e a qualquer pessoa capaz de exercer o mandato judicial ou quem revela interesse atendível, o direito de exame dos autos na secretária nos termos da lei e o direito de obtenção de cópias ou certidões de quaisquer peças nele incorporadas. Contudo, o exercício de tal direito deve ter por pressuposto que o interessante, para além de formular o requerimento, tem que indicar minuciosamente ainda qual o processo em concreto que queria consultar ou obter sua cópia ou certidão. Em suma, tem que indicar quais os “autos” em concreto.
Uma vez que a advogada A não indica concretamente no requerimento qual o processo que pretende consultar, para obter um equilíbrio entre o exercício do direito de exame dos autos e a protecção de dados pessoais, mando que deva a advogada A, no prazo de 10 dias, apresentar a procuração emitida pela supracitada companhia e indicar concretamente qual a finalidade do exame a realizar.
Proceda à notificação”.
A Dra. A, como advogada, pretendia, simplesmente, obter a informação sobre a eventual pendência de algum processo no TJB, em que a sociedade acima identificada nele fosse autora ou ré. Trata-se de uma informação que só poderia ser obtida através de uma certidão, positiva (afirmativa, caso fosse verdade que ali pendessem os aludidos autos) ou negativa (declarativa e negatória, se fosse informado que em nenhum juízo ali pendia qualquer processo instaurado pela referida empresa ou contra ela). Era tudo o que à digna recorrida cumpria fazer.
Constata-se, no entanto, que o indeferimento se fundamenta unicamente na circunstância de o princípio da publicidade do processo, tal como desenhado no art. 117º, nº2, do CPC, não permitir a satisfação do pedido da recorrente, por não se verificarem os respectivos pressupostos ali previstos. E isto, porque a recorrente não indicou quais os “autos” em concreto que a interessada quereria consultar ou de que queria obter cópia ou certidão.
Ora bem. Independentemente do acerto ou desacerto desta fundamentação, não se crê que este seja o meio próprio para a ora recorrente satisfazer o seu eventual direito à informação reclamado, enquanto profissional forense.
Com efeito, embora a Presidente do Tribunal, no exercício do seu munus de magistrada judicial, possa praticar actos em matéria administrativa (e essa será a situação dos presentes autos), certo é que de alguns desses actos pode haver recurso contencioso, consoante a matéria, a natureza do acto praticado (v.g., uma classificação de um funcionário judicial) e a pretensão concreta do interessado.
Mas, a situação que aqui está relatada escapa a essa espécie processual. E isto, por uma razão simples: é que está em causa a negação de um exercício de direito à informação (tb. art. 15º do Estatuto do Advogado).
Ora, a Ex.ma Juíza Presidente não agiu, “in casu”, como magistrado no exercício o seu “munus” no âmbito de um processo judicial, mas sim no de uma actividade em matéria puramente administrativa.
E o meio processual de reagir contenciosamente contra um tal acto é, segundo bem cremos, a “acção para a prestação de informação, consulta de processo ou passagem de certidão” prevista nos arts. 108º e sgs. do CPAC. Trata-se, hoje em dia, de um meio contencioso principal e autónomo, perdendo a feição acessória que já teve por ocasião da LPTA e por isso é, agora, o único de que o interessado pode lançar mão para realização do seu direito à informação1
A anomalia processual detectada é, pois, de erro na forma de processo.
Como é evidente, na senda, aliás, do espírito que promana do art. 145º, do CPC, o tribunal deve procurar convolar para a espécie processual apropriada, no quadro de princípios processuais variados, tais como o do favorecimento do processo ou pro-actione, da tutela jurisdicional efectiva (art. 2º, do CPAC), da adequação formal (art. 7º, do CPC) ou da cooperação (art. 8º, do CPC).
Todavia, o quadro adjectivo que envolve uma situação deste género pode resumir-se ao seguinte:
O erro na forma de processo em contencioso processual administrativo é excepção dilatória que conduz à rejeição liminar da petição (art. 12º, nº1, do CPAC).
Decorrido o prazo de 30 dias sobre o trânsito do respectivo despacho de rejeição, haverá que convolar para a espécie adequada, ao abrigo do art. 12º, nº1 do CPAC e de princípios processuais como os favorecimento do processo ou “pro-actione”, da tutela jurisdicional efectiva (art. 2º, do CPAC), da adequação formal (art. 7º, do CPC) ou da cooperação (art. 8º, do CPC).
Ultrapassada a fase liminar dos autos sem aquele despacho de rejeição liminar ter sido proferido, por aproximação ao que dispõe o CPC e também por razões de economia e celeridade, haverá que averiguar se o processo pode ser convolado para a espécie própria. Proceder-se-á logo à convolação para a espécie adequada, se houver actos processuais que sejam aproveitáveis e anular-se-ão os que o não sejam. Na hipótese contrária, isto é, se não houver actos aproveitáveis, não haverá lugar à convolação e decidir-se-á, logo, pela simples rejeição ou, então, pela absolvição da instância.
Se, após a convolação para a espécie adequada, for de concluir que o conhecimento da pretensão pertence à competência de outro tribunal, deverá o tribunal incompetente, após trânsito da respectiva decisão, remeter os autos ao tribunal competente, por aplicação do disposto nos arts. 12º, nº2, do CPAC e 33º, 145º, 412º, nº2 e 413º, al. a), do CPC , “ex vi” art. 1º, do CPAC, e ainda o art. 23º, nº1, da LBOJ.
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No caso concreto, somos a entender que todos os actos processuais praticados se aproveitam: a petição (entendendo-se agora, porém, a pretensão anulatória como reportada a uma pretensão intimatória “de facere”, qual seja a emissão da certidão em causa) e a contestação, já que são articulados que também a acção prevê. Aproveita-se igualmente o parecer do MP. Ou seja, os autos podem ser aproveitados na sua íntegra.
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III – Decidindo
Face ao que se acaba de concluir, acordam em determinar se proceda à convolação do recurso contencioso em “acção para a prestação de informação, consulta de processo e passagem de certidão”.
Como, porém, para o conhecimento do pedido nesse meio processual é competente o Tribunal Administrativo, determina-se que, após trânsito, se remetam os autos para esse tribunal para posterior tramitação e decisão, se outra qualquer causa a tanto não obstar.
Custas pela parte vencida a final.
T.S.I., 14 de Fevereiro de 2019
José Cândido de Pinho
Fui presente Tong Hio Fong
Joaquim Teixeira de Sousa
Vencido por entender que a acção sobre prestação de informação, consulta de processo ou passagem de certidão, a que se referem os artºs108º e s.s. do CPAC visa assegurar o exercício do direito à informação no âmbito de procedimento administrativo, conferido aos cidadãos administrados pelos artºs 63º e s.s. do CPA, e portanto não se destina à tutela do cumprimento do princípio da publicidade e acesso ao processo judicial, consagrado nos artºs 117º e s.s. do CPC.
Pois, ao contrário do que sucede com uma decisão administrativa, expressa ou tácita, impeditiva do exercício do direito à informação no âmbito de procedimento administrativo, o objecto da impugnação no caso sub judice não foi emanado por um órgão da Administração Pública no uso dos seus poderes/deveres atribuídos pelo direito administrativo, mas sim por um despacho judicial proferido na matéria judicial por um juiz no âmbito do exercício de poderes judiciais.
Face ao silêncio da lei sobre o mecanismo ao dispor dos interessados para reagir contra uma tal decisão proferida por um juiz, tida por eles como denegatória do seu direito tutelado pelo princípio da publicidade e acesso ao processo judicial, consagrado nos artºs 117º e s.s. do CPC, é defensável a criação, nos termos autorizados pelo artº 9º/3 do CC, de um meio de impugnação, devolutivo ou não, não sendo todavia solução adequada remeter para seguir os termos de uma acção sobre prestação de informação, consulta de processo ou passagem de certidão, a que se referem os artºs108º e s.s. do CPAC.
Lai Kin Hong
1 Neste sentido, J. Cândido de Pinho, in Notas e Comentários ao Código de Processo Administrativo Contencioso, CJJM, 2018,II, págs. 69 e 71, anotações 2ª e 5ª.
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