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Processo nº 1127/2018 Data: 21.02.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “introdução em lugar vedado ao público”.
Absolvição.
Contradição insanável.
Erro notório.



SUMÁRIO

1. O vício de “contradição insanável da fundamentação” tem sido definido como aquele que ocorre quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

2. O “erro notório na apreciação da prova” apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 1127/2018
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. “A LDA.”, (A有限公司), assistente com os sinais dos autos, vem recorrer da sentença proferida pelo T.J.B. que absolveu B e C, (1° e 2°) arguidos, da imputada prática de 1 crime de “introdução em lugar vedado ao público”, p. e p. pelo art. 185° do C.P.M., assacando ao decidido os vícios de “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 259 a 266-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Respondendo, pugnam o Ministério Público e os arguidos que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 272 a 274, 289 a 290 e 275 a 288).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

““A, Ld.a”, assistente nos autos de processo comum singular CR5-18-0198-PCS, recorre da sentença de 11 de Outubro de 2018, que absolveu os arguidos B e C do crime de introdução em lugar vedado ao público por que estavam pronunciados.
Na motivação e respectivas conclusões imputa à decisão os vícios de contradição insanável na fundamentação e de erro notório da apreciação da prova.
Na sua minuta de resposta, o Ministério Público na primeira instância pronuncia-se pela improcedência do recurso, rebatendo os argumentos avançados pela recorrente, o que igualmente sucede com o arguido que também respondeu à motivação.
Vejamos.
Não cremos que ocorra qualquer contradição na fundamentação.
A recorrente surpreende a alegada contradição na circunstância de se haver dado como provado que ela colocara avisos no lote TN 14, a publicitar que era a proprietária do lote, e que, durante a audiência, tendo-se apurado que esses avisos foram rasgados, o que contribuiu para fundamentar a falta de consciência, por parte de um dos arguidos, de que entrava no lote sem consentimento e autorização do dono, o tribunal não curou de indagar quando foram rasgados os avisos.
Nenhuma contradição se divisa, não havendo incompatibilidade entre o que se deu como provado (colocação de avisos) e a circunstância de se haver jogado com a apurada inutilização dos mesmos. E também não é de censurar o tribunal pela falta de apuramento do momento em que os avisos foram destruídos, além do mais porque isso não integrava o objecto do processo, como salienta o Ministério Público na sua resposta.
Improcede este fundamento do recurso.
Quanto ao erro notório, a recorrente coloca o enfoque na circunstância de a decisão não ter dado como provado que o arguido C entrou com o veículo MI-93-XX para o interior do lote, como resultava da pronúncia, mas que estava a efectuar manobras com o veículo no interior do lote. Diz que se impunha dar como provada a imputação tal como ela constava da pronúncia, pois isso foi confirmado por duas testemunhas credíveis, contra a versão do arguido C.
Não é exacta esta alegação da recorrente. O que se passa é que só a testemunha D, empregada da recorrente, sustenta a versão de que o arguido estava a entrar com o carro no lote. A testemunha 3, agente policial, quanto a esta matéria limitou-se a reproduzir o que ouviu de D. Por seu turno, o arguido C asseverou que estava a tirar o carro. Assim, tendo o arguido dado uma versão que apontava no sentido de estar a retirar o carro para o exterior do lote, e tendo a testemunha D apresentado a versão de que o mesmo arguido estava a entrar com o carro no lote, o tribunal, adentro da sua liberdade de convicção, deu como provado que, após ter aberto o portão, o arguido C estava a manobrar o veículo.
Não se vê, nem, em bom rigor, a recorrente explica, por que motivo devia ter sido atribuído crédito superior à versão dada pela testemunha, em detrimento da versão do arguido, do mesmo passo que não se divisa o aventado erro, muito menos o erro notório previsto no artigo 400.°, n.° 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
Improcede também este fundamento do recurso.
Ante o sucintamente exposto, o nosso parecer vai no sentido de ser negado provimento ao recurso”; (cfr., fls. 385 a 386).

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Nada obstando, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 247 a 247-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Insurge-se a assistente contra o decidido na sentença do T.J.B. que absolveu os arguidos da imputada prática de 1 crime de “introdução em lugar vedado ao público”, p. e p. pelo art. 185° do C.P.M..

É de opinião que incorreu o Tribunal a quo nos vícios de “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova”.

Vejamos.

O vício de “contradição insanável da fundamentação” tem sido definido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 28.06.2018, Proc. n.° 459/2018, de 25.10.2018, Proc. n.° 570/2018 e de 10.01.2019, Proc. n.° 951/2018).

Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

E como se tem também considerado:

“Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”; (cfr., o Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16).

Por sua vez, o “erro notório na apreciação da prova” apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.07.2018, Proc. n.° 538/2018, de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 04.04.2018, Proc. n.° 151/2018, de 07.06.2018, Proc. n.° 376/2018 e de 11.10.2018, Proc. n.° 772/2018).

Aqui chegados, e sendo de se manter o que se expôs sobre o sentido e alcance dos “vícios” pela ora recorrente imputados à decisão recorrida, afigura-se-nos de considerar – como bem se nota no douto Parecer do Ministério Público que aqui dá também como reproduzido para efeitos de fundamentação da decisão que, a final, se irá adoptar – que os mesmos não existem, pois que não se vislumbra qualquer “contradição”, (muito menos, insanável), por se ter dado como provada a “colocação, e, posterior, destruição dos avisos” afixados no lote de terreno da ora recorrente sem que tivesse o Tribunal apurado “quando ocorreu a referida destruição”, até mesmo dado que a eventual “falta de investigação” não constitui o assacado vício, mostrando-se de consignar também, e desde já, que da decisão recorrida resulta que não foi possível apurar tal matéria.

A mesma se nos apresenta dever ser a solução em relação ao imputado “erro notório”, pois que o Tribunal a quo apreciou a prova em conformidade com o “princípio da livre apreciação”, consagrado no art. 114° do C.P.P.M., não se vislumbrando onde, como, ou em que termos tenha violado qualquer regra sobre o valor das provas legais ou tarifadas, regra de experiência ou legis artis, cabendo notar ainda que, como temos vindo a afirmar, óbvio é que não está o Tribunal vinculado a decidir em conformidade com o sentido ou teor do depoimento ou declarações de qualquer interveniente processual.

E, dest’arte, visto estando que nenhuma “contradição” ou “erro” existe, impõe-se pois decidir pela confirmação da sentença absolutória do Mmo Juiz do T.J.B., consignando-se, igualmente, que, em nossa opinião, inevitável se apresenta a absolvição dos (1° e 2°) arguidos, pois que, em relação ao (1°) arguido B, os factos que lhe eram imputados são cronológicamente anteriores à “intervenção” da assistente ora recorrente, não podendo assim integrar o ilícito que lhe era assacado, colhendo-se, também, da sentença recorrida que na “data” em que o (2°) arguido C foi encontrado no terreno da assistente, no mesmo não havia nenhum “aviso” como o referido dos autos.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará a assistente ora recorrente a taxa de justiça de 6 UCs.

Honorários aos Exmos. Defensores dos (1° e 2°) arguidos no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 21 de Fevereiro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 1127/2018 Pág. 16

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