Processo nº 862/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 21 de Fevereiro de 2019
ASSUNTO:
- Separação de bens
- Suspensão da instância do processo de separação
SUMÁRIO:
- O processo de separação de bens visa partilhar os bens comuns e se inexistindo esses bens, não há razão para prosseguir os autos.
- O cônjuge do executado pode, no prazo de 10 dias a contar da notificação da realização da penhora (cfr. nº 2 do artº 754º do CPCM), deduzir oposição à penhora com fundamento na incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência, bem como, ao abrigo do artº 292º do CPCM, deduzir embargos de terceiros.
- O processo de separação de bens nunca é meio idóneo para defender que o bem penhorado é própria e daí que não deve ser penhorado.
- Se aceitasse esta forma de actuação, significa aceitar a fuga do controlo dos prazos legalmente previstos para os embargos de terceiro e oposição à penhora, já que no momento em que pede a suspensão da instância do processo de separação de bens e a concessão de prazo para instaurar acção autónoma para que seja reconhecida a propriedade exclusiva dos bens, tanto o prazo para dedução de embargos de terceiros como o para oposição à penhora, já se encontram caducados.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 862/2018
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 21 de Fevereiro de 2019
Recorrente: A (Requerente)
Objecto do recurso: Despacho que declarou extinta a instância
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por despacho de 17/04/2018, declarou-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Dessa decisão vem recorrer o Recorrente A, alegando, em sede de conclusão, os seguintes:
1. O presente recurso vem interposto da sentença que ditou o termo do inventário para separação de bens.
2. O recorrente imputa à decisão recorrida os vícios de: (i) nulidade de sentença por omissão de pronúncia sobre questões essenciais; (ii) erro de julgamento; (iii) violação do princípio do contraditório; e, ainda, (iv) violação dos princípios do dispositivo e da iniciativa das partes.
3. Os cônjuges casaram a 12/6/1995 na República Popular da China, pelo que o regime de bens aplicável ao seu património, nos termos da Lei do Casamento da RPC de 1981, era o regime da comunhão de adquiridos.
4. O objectivo do presente inventário era o de terminar com a comunhão patrimonial vigente entre os cônjuges para que a execução pudesse prosseguir apenas contra o património da executada.
5. Não se tratando de uma comunhão geral de bens, o primeiro passo desta missão passa por identificar os bens que devem integrar o património comum de ambos os cônjuges.
6. Foi neste âmbito que o recorrente indicou que dois saldos bancários e as fracções autónomas penhoradas na execução deveriam ser considerados bens próprios seus.
7. A exequente entendeu que tais Contas Bancárias e Bens Imóveis deveriam ser considerados bens comuns do casal.
8. Face à oposição da exequente, o recorrente dispôs-se a comprovar que os bens em causa eram propriedade exclusivamente sua.
9. O meritíssimo juiz-relator proferiu na sequência o despacho recorrido, determinando a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
10. A sentença recorrida padece da nulidade de sentença prevista no art. 571.°, n.º 1, al. d) do CPC, visto que o juiz se absteve de pronunciar-se sobre a questão essencialíssima que devia apreciar no momento em que a proferiu, qual seja a da titularidade dos bens imóveis penhorados.
11. Devem ser efectivamente resolvidas em sede do inventário todas as questões neste suscitadas, designadamente as questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo e a definição dos direitos dos interessados directos na partilha.
12. Por maioria de razão, a definição do património comum a partilhar pelos cônjuges é de importância incontornável no âmbito do inventário para separação de bens; antes da partilha, é preciso irremediavelmente iniciar-se por relacionar o conjunto de bens que se vai distribuir entre os cônjuges.
13. Os arts. 970.° e 971.° do CPC determinam que apenas nos casos em que a natureza ou a complexidade da matéria de facto subjacente o justifique deve o juiz remeter as partes para os meios comuns, devendo nesse caso determinar a suspensão do inventário até que as questões fiquem definitivamente decididas.
14. Ora, a questão que desavinha as partes interessadas era se os bens não relacionados deveriam ser considerados bens próprios do recorrente ou se deveriam integrar o património comum a partilhar.
15. Não só a desavença impunha uma tomada de decisão por parte do Tribunal a quo; para que o inventário pudesse prosseguir, teria de se decidir se os Saldos Bancários e os Bens Imóveis deveriam integrar o património comum do casal.
16. A dar guarida à pretensão do recorrente de extinguir a instância por não haver bens a partilhar, aparentemente o meritíssimo juiz do Tribunal a quo teria aceitado a alegação de que os bens não relacionados eram exclusivamente seus.
17. Porém, não o terá feito, como resulta do subsequente despacho de aclaração, onde esclarece que o presente inventário não é o meio processual indicado para se discutir a titularidade dos bens.
18. Ora, essa é pelo contrário a questão essencial que se impunha ao juiz decidir, pois dessa decisão depende a relacionação ou não dos bens penhorados, por um lado, e a possibilidade de subsistir a penhora que sobre eles incide, por outro.
19. Esta era a única questão que se impunha ao Tribunal resolver neste momento, antes de proceder (ou não) à fase da partilha dos bens, designadamente convocando a conferência de interessados.
20. Ao Tribunal estava vedado ignorar a discussão acerca da titularidade dos bens, atalhando por uma solução que vira as costas ao problema principal.
21. Ou o Tribunal considerava ter elementos bastantes para decidir a quem pertenciam os bens e depois concluiria pela subsistência ou não do inventário; ou o Tribunal não o poderia fazer e remetia os interessados para os meios comuns, nos termos do art. 970.° do CPC.
22. Nessa medida, acabou por ser violada a obrigação de julgar plasmada no art. 7.° do Código Civil. O juiz omitiu pronúncia sobre questão que se lhe impunha decidir - o que configura nulidade de sentença.
23. A arguição desta nulidade é oportuna, nos termos do art. 571.°, n.º 3, 2.ª parte do Código de Processo Civil.
24. O despacho recorrido padece ainda de um erro de julgamento, na medida em que fez uma errónea interpretação dos pressupostos que a determinaram.
25. O recorrente no seu requerimento de fls. 34 e ss. terminou pedindo que fosse julgada extinta a instância no pressuposto de que os bens aí identificados eram bens próprios seus e que portanto não deveriam compor o património comum do casal.
26. Parece claro que o recorrente alegou que não havia bens a partilhar porque os bens identificados eram exclusivamente seus.
27. Nessa medida, o meritíssimo juiz do Tribunal a quo não podia ler a pronúncia do recorrente pela metade, cingindo-se à alegação de que não havia bens a partilhar e ignorar a premissa maior dessa afirmação: o facto de que os bens eram exclusivamente seus.
28. O recorrente, como se depreende facilmente da sua pronúncia, nunca disse que não pretendia proceder à demarcação do seu património - muito pelo contrário!
29. O meritíssimo juiz do Tribunal a quo aceita a conclusão do recorrente de não haver bens a partilhar mas não se pronuncia sobre o seu pressuposto, redundando numa situação inconcebível.
30. É óbvio que o juiz não podia determinar a extinção da instância requerida se não aceitasse os fundamentos invocados para o efeito pelo recorrente.
31. Ou o Tribunal a quo aceitava que os bens indicados eram bens próprios do recorrente ou então rejeitava o pedido do recorrente e determinava a continuação do inventário tendo em vista a separação dos bens comuns.
32. Se o meritíssimo juiz do Tribunal a quo entendesse que este não seria o meio apropriado para discutir a titularidade dos bens, então deveria rejeitar os argumentos do recorrente e também o pedido efectuado com base neles, ou eventualmente suspender o inventário e remetê-lo para os meios comuns.
33. Ler uma pronúncia pela metade não é, ressalvado o devido respeito, a forma correcta de julgar.
34. Estava absolutamente vedado ao Tribunal extinguir a instância entendendo que (i) os bens são comuns, que (ii) não serão divididos e (iii) que responderão na íntegra pela dívida que é da responsabilidade exclusiva da cônjuge requerida!
35. Nessa medida, terá incorrido a decisão recorrida em erro de julgamento, devendo nessa medida ser corrigida.
36. A decisão recorrida foi totalmente inesperada e surgiu na sequência duma disputa entre o recorrente e a exequente, no âmbito da qual aquele pugnou para que os Bens Imóveis e Saldos Bancários fossem considerados bens próprios e esta pugnou para que fossem considerados bens comuns.
37. O Tribunal a quo acabou por adoptar uma solução que não foi propugnada (nem sequer configurada) por qualquer das partes, consubstanciando, nessa medida, uma decisão-surpresa.
38. Reza o art. 3.º, n.º 3 do CPC que não é lícito ao juiz decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
39. Ora, nunca as partes configuraram a possibilidade de o Tribunal vir a decidir que os bens fossem considerados comuns e simultaneamente que não seriam distribuídos entre o casal.
40. O entendimento do recorrente propugnado a fls. 34 e 34v para que fosse declarada a extinção a instância baseou-se no pressuposto de que os Bens Imóveis e Saldos Bancários eram bens exclusivamente seus.
41. Se o Tribunal a quo entendesse que os bens eram comuns, também parece resultar do senso comum que o inventário prosseguiria para que os mesmos fossem partilhados.
42. Nenhuma das partes configurou a possibilidade de o meritíssimo juiz do Tribunal a quo optar pela extinção da instância e pela prossecução da execução tendo em conta a venda dos bens.
43. Nessa medida, a decisão recorrida acabou por ser uma autêntica decisão-surpresa.
44. Obviamente que se fosse preciso esclarecer, o recorrente teria esclarecido que a entender-se que os bens seriam comuns, sempre optaria pela divisão dos mesmos.
45. Na medida em que foi violado o princípio do contraditório e proferida uma autêntica decisão-surpresa, deve esta ser anulada.
46. Um dos factores que contribuiu para a configuração de uma decisão surpresa foi o facto de que a solução adoptada pelo juiz não foi propugnada por qualquer das partes.
47. Nessa medida, a decisão do juiz ultrapassou irremediavelmente a vontade das partes, violando nessa medida o princípio do dispositivo e, ainda, da iniciativa das partes.
48. A decisão do juiz surgiu num momento em que o recorrente propugnava pela qualificação dos Bens Imóveis e das Contas Bancárias como bens próprios, ao passo que a Exequente propugnava pela sua qualificação com Bens Comuns.
49. O Tribunal a quo acabou por adoptar um tertium genus, inovadora no sentido de ter trazido uma solução ao processo que não havia sido pretendida por qualquer das partes.
50. Nestes termos, foi violado o princípio da iniciativa das partes e do dispositivo, previstos, especificamente, nos arts. 3.° e 5.° do CPC.
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A Exequente B Sociedade Unipessoal Limitada respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 88 a 95 dos autos, cujo teores aqui se dão por integralmente reproduzidos, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Com base nos documentos juntos aos autos, é considerada provada a seguinte factualidade:
- Em 29/06/2017, o ora Recorrente requereu o processo de separação de bens, com vista a partilhar os bens imóveis penhorados no processo de execução (fls. 2 dos autos).
- Em 21/12/2017, o Recorrente veio informar ao Tribunal a quo que os bens imóveis penhorados são bens próprios dele, pelo que inexistem bens comuns a partilhar, requerendo que seja declarada a extinção da instância (fls. 34 dos autos).
- Devidamente notificada, a Exequente vem dizer que os bens imóveis penhorados devem ser considerados como bens comuns, uma vez que o regime matrimonial do casal é o de comunhão adquiridos e os bens imóveis em causa foram adquiridos na constância do matrimónio, tudo conforme o respectivo registo predial (fls. 44 a 47 dos autos).
- Face à posição da Exequente, o ora Recorrente vem requerer ao Tribunal a quo o seguinte (fls. 52 e 53 dos autos):
* que seja ordenada a suspensão da instância nos termos do nº 1 do artº 970º do CPCM; e
* que seja concedido o prazo de 30 dias para que apresente acção autónoma com fim de provar que os bens imóveis penhorados são bens próprios dele.
* Subsidiariamente, que seja admitida a produção de prova nos próprios autos de separação para o efeito supra indicado.
- Em 17/04/2018, o juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
“…
No presente apenso de separação de bens vem o requerente pedir a separação de bens nos termos do artigo 709.° do CPC.
Depois de o requerente ser ouvido em declarações foi concedido ao mesmo (cabeça de casal) o prazo de 30 dias para relacionar os bens a partilhar.
Entretanto, vem o cabeça de casal dizer que afinal não há bens para proceder à separação inicialmente requerida.
Ora, face à circunstância de o próprio requerente vir dizer que não há bens destinados à separação de bens, entende este Tribunal se configura como uma desistência do pedido por inutilidade superveniente.
Nestes termos, julgo extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 229.° e) do Código de Processo Civil.
Uma vez que a instância é extinta por inutilidade superveniente também não se não verifica a litigância de má fé assacada pelo exequente.
Custas pelo requerente nos termos do artigo 377.° n.º 1 do CPC.
Levanta-se a suspensão da execução, prosseguindo os seus precisos termos nos autos principais.
Notifique e DN…”.
- Mais tarde e em cumprimento do disposto no nº 2 do artigo 617º do CPC, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho de sustentação:
“…
O recorrente vem interpor o recurso do despacho que declarou extinta a instância do processo de separação de bens, apenso aos presentes autos.
O presente processo de separação de bens foi instaurado a pedido pelo próprio requerente, ora recorrente, nos termos do artigo 709.° do CPC porque as fracções autónomas, melhor id nos autos e penhoradas nos autos principais de execução, são de património comum (cfr. requerimento de fls. 2).
Foi também o próprio recorrente que, com o requerimento de fls. 33 a 34, vem pedir a declaração de extinção do processo de separação de bens, porquanto entende que não há bens a separar, pois, na sua óptica o bem penhorado nos autos principais é um bem próprio do recorrente.
A finalidade da separação de bens no âmbito da execução tem por finalidade pôr termo a comunhão patrimonial, para que a execução prossiga apenas contra o património que couber ao cônjuge executado, salvaguardando a garantia patrimonial dos credores (cfr. artigo 1030.° do CPC).
Se o recorrente entender que o bem penhorado nos autos principais é bem não comum mas próprio do recorrente, deve ele lançar mão de outros meios adequados para opor-se à penhora (embargos de 3.° ou oposição à penhora). Porém não foi isso que o recorrente fez, o que ele veio aos presentes autos é requer a separação de bens.
Relembra-se que no acto da diligência para prestação de compromisso de honra da cabeça de casal (fls. 32), até o próprio recorrente, ora cabeça de casal, declarou que “…與被聲請人之間存有動產及其他財產需要進行分割,聲請隨後呈交財產目錄。”. Como se vê, foi o próprio recorrente que no acto solene declarou perante o Tribunal que efectivamente há bens comuns que merecem de ser separados.
Se a montante o requerente vem requerer a separação de bens e a jusante chegado ao momento para a entrega de relação de bens, vir afirmar que não há bens a separar, está o requerente a actuar de venire contra factum proprium, o que de alguma forma revela a má-fé da sua parte.
Se inicialmente o recorrente requereu uma diligência e depois vir dizer que não pretende prosseguir a mesma diligência, rogando pela extinção do processado, o que se configura é uma situação de desistência do pedido.
Por outro lado, o requerente, ora recorrente, diz que é dono do bem penhorado, mas não juntou prova aos autos. Por contrário, a informação constante no registo, constata-se que a fracção “D5” (cfr. fls. 48 dos autos de execução) e a fracção “P17” (cfr. 62 dos autos de execução) estão registados em nome do recorrente casado no regime da comunhão de adquiridos com a executada dos autos principais, bens adquiridos na constância do regime de comunhão adquiridos, o que é considerado como bens comuns nos termos do n.º 1 do artigo 1603.° do CC.
A determinada altura veio o recorrente dizer que o dinheiro que levou para aquisição das fracções autónomas penhoradas é dinheiro próprio do recorrente e por isso entende que são bens próprios. Para além de não trazer quaisquer provas para os autos, a verdade é que nos termos do artigo 1606.° n.º 1 do CC, presume-se, quer para efeitos entre os cônjuges, quer para efeitos perante terceiros, que são comuns o dinheiro ou valores utilizados por qualquer dos cônjuges na aquisição de bens ou em benfeitorias.
Presunção essa que, no entendimento de Pires de Lima e Antunes Varela, “...ser a que melhor corresponde ao interesse da segurança das relações jurídicas e a que mais eficazmente acautela os legítimos interesses de terceiros contra as surpresas e uma prova incontrolável...”
Não logrando provar que as fracções penhoradas nos autos de execução sejam bens próprios do recorrente, e tendo em consideração que a pretensão do próprio recorrente é extinguir com o processo de separação de bens, afigura-se-nos que o recorrente também deixou de ter interesse no prosseguimento dos presentes autos de apenso de separação de bens.
Seja por desistência seja por inutilidade ou mesmo por falta de interesse no prosseguimento da lide por parte do recorrente, a solução não deixa senão de declarar extinta a instância dos autos de apenso de separação de bens.
Assim, e com os fundamentos aduzidos, sustento o despacho recorrido exarado a fls. 60.
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Remeta os presentes autos ao Venerando Tribunal da Segunda Instância.”.
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III – Fundamentação
O Requerente imputa à decisão recorrida os seguinte vícios:
(i) nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre questões essenciais;
(ii) erro de julgamento;
(iii) violação do princípio do contraditório, e;
(iv) violação dos princípios do dispositivo e da iniciativa das partes.
Quid juris?
Como é sabido, o processo de separação de bens visa partilhar os bens comuns e se inexistindo esses bens, não há razão para prosseguir os autos.
É certo que o nº 1 do artº 970º do CPCM permite o juiz determinar a suspensão da instância do inventário, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes os meios comuns se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devem ser incidentalmente decididas.
No entanto, entendemos que tal regra não pode aplicar-se ao caso sub justice.
Foi o próprio Recorrente que requereu o processo de separação de bens com vista a partilhar os bens imóveis penhorados nos autos de execução em consequência da citação prevista na al. a) do nº 1 do artº 755º do CPCM, daí que não pode, em momento posterior, vir dizer que tais bens são próprios e requerer consequentemente a suspensão da instância do processo de separação.
Pois, bem referiu o juiz a quo que “Se o recorrente entender que o bem penhorado nos autos principais é bem não comum mas próprio do recorrente, deve ele lançar mão de outros meios adequados para opor-se à penhora (embargos de 3.° ou oposição à penhora). Porém não foi isso que o recorrente fez, o que ele veio aos presentes autos é requer a separação de bens.”
Prevê o nº 1 do artº 292º do CPCM que “Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiros”.
Por sua vez, o nº 2 do artº 294º do mesmo Código estabelece que os embargos de terceiro têm de ser deduzidos no prazo de 30 dias subsequentes àquele em que a diligência realizada ou em que teve conhecimento da ofensa.
Além disso, o artº 757º do mesmo Código prevê ainda que “O cônjuge do executado, citado nos termos da primeira parte da alínea a) do nº 1 do artº 755º, é admitido a deduzir oposição à penhora, gozando de um estatuto processual idêntico ao do executado nas fases da execução posteriores à sua citação”.
Ou seja, o cônjuge do executado pode, no prazo de 10 dias a contar da notificação da realização da penhora (cfr. nº 2 do artº 754º do CPCM), deduzir oposição à penhora com fundamento na incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.
Estes são meios processuais adequados e idóneos para assegurar a pretensão do Recorrente ao considerar-se que os bens penhorados são bens próprios dele.
O ora Recorrente, em vez de recorrer aos meios processuais supra referidos, optou pelo processo de separação de bens, cuja finalidade consiste na partilha dos bens em comum do casal, pressupondo portanto a existência de bens comuns a partilhar.
Salvo o devido respeito, entendemos o nº 1 do artº 970º do CPCM só se aplica aos casos em que o requerente do inventário relacionou determinados bens comuns a partilhar, mas há interessado directo na partilha que entende que os bens relacionados não são comuns, mas sim próprios, e nunca à situação dos autos em que o próprio requerente do processo da separação, no decurso dele, vir alegar que os bens são próprios e não comuns.
Se assim fosse, já não deveria requerer o processo da separação de bens desde no início.
Um dos argumentos a favor da nossa interpretação é justamente o próprio texto do nº 1 do artº 970º consagra que o juíz só determina a suspensão ou não da instância “logo que os bens se mostrem relacionados”.
Ou seja, após as declarações da cabeça de casal, esta apresenta a relação de bens comuns para efeitos de partilha, a qual fica sujeita à examinação do outro cônjuge. Se este último, ou o próprio juiz, suscitar alguma questão prejudicial de que depende a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos, é que se determina a suspensão ou não da instância, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente.
Se aceitasse os últimos pedidos formulados pelo ora Recorrente, significa permitir a actuação de venire contra factum proprium, bem como aceitar a fuga do controlo dos prazos legalmente previstos para os embargos de terceiro e oposição à penhora, já que no momento em que pede a suspensão da instância do processo de separação de bens e a concessão de prazo para instaurar acção autónoma para que seja reconhecida a propriedade exclusiva dos bens, tanto o prazo para dedução de embargos de terceiros como o para oposição à penhora, já se encontram caducados.
Face ao exposto, se conclui que a decisão recorrida não padece dos vícios de nulidade da sentença por omissão da pronúncia nem erro de julgamento.
Também não se verifica qualquer violação do princípio contraditório do ora Recorrente, uma vez que ele próprio até chegou a pedir a declaração da extinção da instância, só que mudou da posição em momento posterior.
Assim, não se pode dizer que a decisão recorrida constitui uma autêntica decisão-surpresa.
Aliás, ainda que houvesse a violação do princípio contraditório, só se determinaria a nulidade processual, cuja arguição deve ser feita perante o próprio juiz a quo no prazo de 10 dias, e nunca em sede do recurso jurisdicional.
No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do TUI, de 30/04/2007, 11/11/2008 e 26/09/2012, proferidos nos Procs. nºs 10/2007, 337/2008 e 59/2012 respectivamente, e os acórdãos do TSI, de 28/09/2017 e 08/11/2018, proferidos nos Procs. nºs 504/2017 e 561/2018 respectivamente.
Por fim, no que respeita à alegada violação dos princípios do dispositivo e da iniciativa das partes, cumpre-nos dizer que nos termos do artº 567º do CPCM, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
No caso sub justice, o juiz limita-se a aplicar o direito em conformidade com a situação dos autos, não se verificando portanto qualquer violação dos princípios do dispositivo e da iniciativa das partes.
Tudo visto, resta decidir.
*
III – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando o despacho recorrido.
*
Custas do recurso pelo Recorrente.
Notifique e registe.
*
RAEM, aos 21 de Fevereiro de 2019.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
10
862/2018