Proc. nº 942/2017
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 21 de Fevereiro de 2019
Descritores:
- Embargos
- Ónus probatório
SUMÁRIO:
É sobre o embargante que recai o ónus de provar o pagamento da quantia mutuada pelo exequente/embargado.
Proc. nº 942/2017
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
A, de sexo masculino, titular do BIRM n.º ..., residente em Coloane, …, executado nos autos de execução (Proc. nº CV3-16-0021-CEO) contra si instaurada no TJB por----
B, do sexo masculino, titular do BIRM n.º …, residente em Macau, …---
Deduziu embargos de executado (Proc. nº CV3-16-0021-CEO-A).
Nesses autos de embargo, o embargante alegava ter já reembolsado o embargado do empréstimo que junto deste contraíra, efectuando o depósito da quantia no banco, invocando desse modo a extinção da sua obrigação, pedindo ainda a condenação do exequente como litigante de má fé na quantia de MOP$40.000,00.
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Foi na oportunidade proferida sentença, que julgou os embargos procedentes e condenou o exequente/embargado a pagar ao executado/embargante a indemnização no valor de MOP$ 40.000,00.
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É contra esta sentença que ora vem interposto pelo exequente/embargado B o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
«1. O erro no reconhecimento de facto reside na análise errada do documento constante das fls. 57 dos autos, que achou por erro que foi depositada a quantia de HKD$150.000,00 na conta do recorrente, mas na verdade, não houve depósito de qualquer dinheiro, e a quantia de HKD$150.000,00 foi apenas transferida do depósito a prazo do recorrente para uma outra conta deste e depois transferida para outrem.
2. Por isso, o reconhecimento do facto o recorrido já tinha reembolsado o empréstimo ao recorrente assentou-se no erro notório na apreciação da prova.
3. Nestes termos, e com base no documento constante das fls. 57 dos autos, constata-se claramente que o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova. Nos termos do art.º 629.º, n.º 1, al. b) do CPCM, a matéria de facto pode ser alterada se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
4. Os depósitos à conta bancária alheia são necessariamente registados. Desde que não há registo de qualquer depósito efectuado à conta do recorrente, deve-se reconhecer que não decorreu o facto de que “o recorrido depositou o dinheiro à conta do recorrente”.
5. Assim, deve o TSI decidir directamente que não foi provado o reembolso de empréstimo, passar a julgar improcedentes os embargos, e anular a decisão relativa à litigância de má fé e à indemnização.
6. A decisão foi feita porque o tribunal a quo acreditou as testemunhas e considerou provável o reembolso, o que é manifestamente insuficiente para a verificação da litigância de má fé, senão, está a dizer que a parte vencida é necessariamente litigante de má fé.
7. Também não parece razoável retirar simplesmente dos factos assentes a ilação de que o recorrente tinha conhecimento do reembolso e condenar o recorrente, como litigante de má fé, no pagamento de indemnização, custas processuais e honorários, o que violou o art.º 385.º, n.º 2 do CPCM, pelo que deve ser anulado o acórdão recorrido.
Pedido
Pede-se ao tribunal colectivo para, nos termos legais, julgar procedente o recurso do recorrente, anular o acórdão recorrido e passar a julgar improcedentes os embargos. Por o registo bancário ter provado a inexistência do depósito indicado pelo recorrido, este devia ter conhecimento da falta de reembolso, e deve ser condenado como litigante de má fé no pagamento de indemnização.».
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O executado/embargante (ora recorrido, A) respondeu ao recurso, formulando nas contra-alegações as seguintes conclusões:
«1. O tribunal a quo já provou que em 2006, o recorrido, através da intermediária “C”, pediu ao recorrente um empréstimo de HKD$140.000,00.
2. O recorrido nunca encontrou com o recorrente e não o conheceu.
3. O recorrido discutiu sempre com a “intermediária” C sobre o empréstimo e o reembolso, e tinha devolvido, por várias vezes, dinheiro a C.
4. O “recibo de empréstimo” que o recorrido assinou na altura também foi elaborado por C.
5. Após o vencimento da obrigação, o recorrido não conseguiu reembolsar o empréstimo, pelo que C telefonou, por várias vezes, ao recorrido para a recuperação da dívida.
6. No dia 24 de Outubro de 2007, o recorrido depositou HKD$160.000,00 (incluindo o capital de HKD$140.000,00 e os juros acordados de modo verbal de HKD$20.000,00) na conta bancária fornecida por C.
7. O recorrido não podia saber se a quantia de HKD$160.000,00 foi depositada na conta bancária de C, ou de B, da filha de B ou até de um indivíduo desconhecido.
8. Após o depósito da supracitada quantia, o recorrido telefonou a C, pedindo-lhe para verificar o reembolso e rasgar o respectivo “recibo de empréstimo”.
9. O recorrido não sabia quem era o titular da conta bancária fornecida por C, e não ia perguntar sobre as transacções entre C e o recorrente.
10. O recorrente alegou que no dia 24 de Outubro de 2007, ele transferiu, da sua conta no Banco da X n.º …, um montante de HKD$150.000,00 para a outra conta no Banco da X n.º … dele, e que o recorrido ainda não reembolsou o empréstimo. O recorrido entende que tal alegação não é razoável.
11. O recorrido entende que o facto de serem as duas testemunhas parentes do recorrido não os impedem de dizer o facto verdadeiro ao tribunal. Por outro lado, “pedir empréstimo a outrem” é assunto de privacidade, e é claro que o recorrido só mencionou tal assunto a pessoas íntimas.
12. A relação obrigacional entre o recorrido e o recorrente já se extinguiu com o depósito feito pelo recorrido.
13. Posteriormente, o recorrido deixou de receber qualquer chamada ameaçador para a recuperação da dívida.
14. Desde o depósito da quantia acima referida até à propositura da presente acção (ou seja 28 de Janeiro de 2016), por um período de 9 anos, o recorrido nunca recebeu qualquer chamada, mensagem ou carta enviada por advogado do recorrente ou de outra pessoa relacionada para a recuperação da dívida.
15. Todos os factos acima expostos foram dados como provados pelo tribunal a quo.
V. Pedido:
Pelo exposto, deve-se julgar improcedentes as pretensões do recorrente por serem insubsistentes. E de acordo com os supracitados factos e as respectivas disposições jurídicas, pede-se ao MM.º Juiz do TSI para:
(1) Admitir a presente resposta; e
(2) Julgar improcedente o recurso do recorrente;
(3) Julgar que o recorrente é litigante de má fé; e
(4) Manter a decisão do tribunal recorrido.»
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença impugnada dá por provada a seguinte factualidade:
«Da Matéria de Facto Assente:
- O exequente/embargado, tendo como título executivo o documento constante das fls. 8 dos autos, propôs a execução, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos jurídicos. (alínea A) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- O executado, através de uma intermediária chamada “C”, pediu ao exequente um empréstimo de HKD$140.000,00 referido no documento na alínea A) dos factos assentes. (resposta ao quesito 1.º da base instrutória)
- Depois do dia 20 de Janeiro de 2007, no período compreendido entre 20 de Janeiro e Outubro de 2007, C e a filha do exequente telefonaram ao executado exigindo a devolução de dinheiro e o pagamento de juros derivados. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- O executado, em 24 de Outubro de 2007, através do balcão do Banco da X (Hotel X SB), depositou o valor de HKD$160.000,00 até à conta do exequente B, providenciada pela X (sic.), no sentido de pagar a quantia em dívida e dos juros no valor de HKD$20.000,00 mencionado no 1º quesito. (resposta ao quesito 3.º da base instrutória)».
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III – O Direito
1 – O caso
A execução tinha como motivo fundamentante a dívida de um empréstimo, no valor de MOP$ 140.000,00, que B (exequente/embargado), através de uma intermediária, de nome C, teria concedido a A (executado/embargante).
O embargante, porém, contrariou esta tese, dizendo ter depositado - após interpelação do exequente e de sua filha nesse sentido - a importância emprestada no Banco da X (agência do Hotel X) ou do Banco X (agência do Hotel X) acrescida dos juros (20.000,00), tudo no total de MOP$160.000,00.
Esta tese foi acolhida pelo Tribunal de 1ª instância, após a respectiva produção de prova. E, consequentemente, a sentença julgou procedentes os embargos e extinta a execução, condenando ainda o exequente na indemnização a favor do executado no valor de MOP$ 40.000,00.
É esta tese que o exequente/embargado/recorrente vem tentar destruir no presente recurso.
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2 – O recurso tem como fundamento essencial a alegada inexistência de prova de que o embargante depositou qualquer importância em conta bancária em seu nome e que só um erro de análise dos documentos existentes nos autos podem ter levado o tribunal “a quo” a dar por provado o pagamento.
E tem razão, salvo melhor opinião.
Com efeito, se bem reparamos no acórdão de fls. 70 - a respeito do julgamento sobre a matéria de facto, o alegado depósito da importância de HK$ 150.000,00 (quantia mutuada) e de HK$ 10.000,00, a título de juros – a prova do facto teria assentado no depoimento das duas testemunhas e dos registos bancários de fls. 56 a 65.
Ora, no que se refere às duas testemunhas ouvidas, é preciso começar por dizer que ambas são familiares do embargante, a primeira, filho, e a segunda, cunhada. O peso dos respectivos depoimentos tem que ser ponderado dentro deste circunstancialismo.
E quanto aos registos bancários, eles não demonstram qualquer depósito bancário por parte do embargante A na conta do exequente B.
Tais documentos, conforme deles resulta, apenas registam uma transferência de 150.000,00 de uma conta do exequente para outra do mesmo titular, para logo voltar a registar a saída no mesmo montante e no mesmo dia. Isto, por si só, nada absolutamente esclarece quanto ao depósito efectuado, fosse por quem fosse, naquele valor e na conta do exequente.
Por tal motivo, aos documentos em causa, em si mesmos, não pode ser atribuído categoricamente o valor probatório que a 1ª instância lhe conferiu, salvo melhor opinião.
E esta conclusão vem confirmada pelo Banco da X e X, na sequência de esclarecimentos solicitados pelo relator (sobre os quais as partes se pronunciaram), já que deles resulta que na conta do exequente do Banco da X não foi efectuado qualquer depósito por terceiros no período entre 20 e 27 de Outubro de 2007 (fls. 151-153 dos autos e fls. 68-69 do apenso “traduções”). E recordemos que o embargante disse ter feito o depósito no dia 24/10/2007! Da mesma maneira, foi o TSI informado que no mesmo período não foi efectuado qualquer movimento bancário por C nas contas de A (embargante) e de B (exequente).
Esclarecido está, também, que nas contas de C (alegada intermediária do negócio) não foram feitos depósitos/transferências, durante o mesmo período, das importâncias de HK$ 140.000,00, 150.000,00 ou 160.000,00 por A, tanto no que se refere ao Banco da X (fls. 161, 172 dos autos e 72-73 e 76-77 do apenso “traduções”, respectivamente), como no que se refere ao Banco X(fls. 164 e 173 dos autos e 74-75 e 78-79, do apenso “traduções”, respectivamente).
Quer isto dizer que o embargante não conseguiu, lamentavelmente, apesar de ser seu o respectivo ónus probatório, provar aquilo que lhe competia. Não está demonstrado que efectuou algum depósito ou transferência dos valores que indicou na petição para a conta do exequente ou para a intermediária C.
Algo se terá passado, porventura. Mas, à falta de esclarecedores elementos, o que se não pode é concluir, como o fez a 1ª instância, que o montante do mútuo foi pago através de balcão do Banco da X na conta do exequente. A dúvida acerca de tudo o que se passou tem que resolver-se necessariamente contra o embargante, nos termos do art. 335º, nº3, do Código Civil.
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3 – No recurso, o embargado (exequente) pediu a condenação de má fé do embargante.
Contudo, e tal como referimos, a situação material não revela, de maneira clara, que o embargante esteja necessariamente a mentir e a fazer uso reprovável do processo. Repetimos: algo terá ocorrido, porventura. Simplesmente, não há dados seguros reveladores de como as coisas se terão passado.
Portanto, não vemos motivo para a condenação por litigância de má fé.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordem em conceder provimento ao recurso, e em consequência:
1. Damos por não provada a matéria do art. 3º da BI;
2. Revogamos a sentença recorrida, incluindo a parte em que condenou o embargado como litigante de má fé;
3. Julgamos improcedentes os embargos.
Custas pelo embargante em ambas as instâncias.
T.S.I., 21 de Fevereiro de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
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