Processo n.º 73/2016
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrentes: A, B, C, D, E, F e G
Recorrido: Chefe do Executivo da RAEM
Data da conferência: 20 de Março de 2019
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Assuntos: - Rejeição liminar
- Ilegitimidade plural
- Intervenção principal provocada
SUMÁRIO
1. Nos termos da al. d) do n.º 2 do art.º 46.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, a ilegitimidade do recorrente é uma das causas de rejeição liminar do recurso contencioso.
2. No entanto, não é possível a rejeição da petição de recurso contencioso, por preterição de litisconsórcio necessário, sendo que só a ilegitimidade singular, sempre insuprível, e não a ilegitimidade plural (preterição do litisconsórcio necessário), suprível com a intervenção das pessoas em falta, conduz à rejeição liminar.
3. No caso de litisconsórcio necessário, a ilegitimidade activa e passiva é sanável mediante a intervenção principal provocada da parte em falta (art.ºs 267.º e 213.º do Código de Processo Civil), podendo o autor da acção fazer o chamamento nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes.
4. Não obstante o já trânsito em julgado do despacho que rejeitou o recurso por ilegitimidade plural activa, isto não obsta a que se lança mão do n.º 2 do art.º 213.º do CPC, que permite a modificação subjectiva da instância após o trânsito em julgado da decisão sobre a ilegitimidade activa.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A, B, C, F, H, D, I, E, G e herdeiros de J, todos melhor identificados nos autos, interpuseram recurso contencioso do despacho do Chefe do Executivo, de 14 de Abril de 2015, que declarou a caducidade da concessão por arrendamento do terreno com a área de 930m2 situado em Macau, entre a Travessa do Laboratório e a Rua Marginal do Canal dos Patos, designado por lote B.
Por despacho de 9 de Outubro de 2015, o Juiz Titular do processo decidiu, ao abrigo do disposto na al. d) do n.º 2 do art.º 46.º do CPAC, rejeitar liminarmente o recurso, por ilegitimidade plural activa.
Tal despacho transitou em julgado em 26 de Outubro de 2015.
Em 3 de Novembro de 2015, A, B, C, D, E, F e G vieram depois requerer a intervenção principal provocada de H, I e K, esta na qualidade de única herdeira habilitada de J, apresentando a nova petição inicial.
Por despacho de 20 de Janeiro de 2016 do Juiz Titular do processo, foi determinada a rejeição do novo recurso, por extemporaneidade da interposição do mesmo.
Inconformados com a decisão, A e outros apresentaram a reclamação para a Conferência, que foi indeferida por acórdão preferido em 19 de Maio de 2016.
Vêm agora A, B, C, D, E, F e G recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
a) Os princípios processuais, em especial os que têm consagração normativa, sobrepõem-se às concretas normas do processo e devem ser respeitados e interpretados tendo sempre em vista uma necessidade essencial e estruturante das sociedades modernas: a de que os tribunais façam justiça e que resolvam os litígios apreciando o mérito e não se “escondam” em formalismos processuais que evitem a resolução efectiva dos dissensos.
b) Nesse sentido, um dos princípios fundamentais a que o Tribunal está obrigado é o princípio do inquisitório, constante do art. 6º do CPCM.
c) O Acórdão recolhido acolheu, sem outra fundamentação, a decisão do Meritíssimo Juiz Relator, que interpretou a lei processual de forma restritiva e violadora do princípio do inquisitório.
d) Nunca o Meritíssimo Juiz Relator poderia ter determinado a rejeição liminar do recurso, estando obrigado a emitir, antes, despacho convidando as partes, em prazo por si fixado, a regularizar a falta do pressuposto processual que, em seu entender, considerou existir, uma vez que esse suprimento era possível.
e) Do mesmo modo, nunca os Juízes da Conferência deveriam ter proferido Acórdão acolhendo a fundamentação do Meritíssimo Juiz Relator e decidindo no mesmo sentido.
f) Ao fazê-lo, violaram, um e outros, o disposto no art. 6º do CPCM, pelo que a decisão recorrida deve ser revogada.
Por outro lado,
g) O Princípio do Inquisitório está interrelacionado com o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva.
h) Aceite que tudo deve ser feito para que a forma não se sobreponha à substância, então o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva vem significar a “garantia da realização judicial, pelos tribunais administrativos, dos direitos subjectivos, dos interesses legalmente protegidos ou de quaisquer outras posições juridicamente tuteladas pelo Direito Administrativo, sobre as quais haja um litígio”.
i) O Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva tem o sentido de “assegurar que os processos obtenham uma decisão de mérito, evitando, até ao limite do suportável, decisões formais injustificadas” (ob. cit., Prof Vieira de Andrade).
j) No presente caso, e pelas razões expostas, o Meritíssimo Juiz Relator, como também os Meritíssimos Juízes da Conferência, privilegiaram uma “decisão abrigada em defeitos processuais”, bastante aquém “do suportável”, tendo em vista não decidir do mérito, e violando assim, o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva previsto no art. 2º do CPAC.
k) Ao fazê-lo, o douto Acórdão recorrido viola o disposto no art. 2º do CPAC, pelo que, também por este motivo, deve ser revogado.
Finalmente,
l) O CPAC não tem norma expressa que resolva o problema da rejeição de recurso contencioso por ilegitimidade do recorrente, em situação de litisconsórcio necessário.
m) O CPAC não previu qualquer situação de litisconsórcio para o contencioso administrativo e isto porque era entendimento, e ainda o é, em certa doutrina, que o recurso contencioso não implica, necessariamente, uma situação de litisconsórcio activo.
n) Em face dessa “lacuna” do CPAC (ou deliberada ausência normativa), e estabelecendo o artigo 1º do CPAC que ao processo do contencioso administrativo se aplica, subsidiariamente, e com as necessárias adaptações, a lei do processo civil, os Recorrentes procuraram suprir a falta dos três litisconsortes ausentes através do seu chamamento ao processo, nos termos da Intervenção Principal Provocada estatuída no artigo 267º e segts., e 213º, nº 2, todos do CPC.
o) Ao caso concreto não são aplicáveis as disposições do CPC relativas ao despacho de rejeição liminar e, designadamente, o prazo de 10 dias para a apresentação de novo recurso, nos termos do nº 1 do artigo 396º do CPC, por várias razões.
p) Primeiro, porque não foram invocadas, no despacho de rejeição do recurso, as normas do CPC como fundamento da referida rejeição, mas antes a norma da alínea d), do nº 2, do artigo 46º, do CPAC.
q) Depois, porque a ilegitimidade declarada no despacho de rejeição é decorrente do entendimento do Meritíssimo Juiz Relator que considerou existir uma situação de litisconsórcio necessário.
r) Perante o referido despacho de rejeição, e do seu fundamento de facto e de direito, o único meio processual para fazer intervir no processo os litisconsortes em falta, e assim suprir a ilegitimidade declarada, era (e é) o de provocar o seu chamamento aos Autos.
s) Essa faculdade está prevista no artigo 213º do CPC, que manda aplicar os termos do artigo 267º do mesmo CPC.
t) Segundo o nº 2 do artigo 213º do CPC, é de 30 dias, subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima uma das partes, o prazo para se poder chamar ao processo a parte em falta.
u) Esse prazo é consentâneo e coerente com as normas equivalentes do CPAC.
v) Vejam-se os artigos 48º, 49º e 50º do CPAC que estabelecem um prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do despacho de rejeição, para se usar o meio administrativo necessário à recorribilidade contenciosa.
w) Atente-se, na redacção do artigo 48º do CPAC que estabelece um prazo de 30 dias contado do trânsito em julgado do despacho de rejeição para o recorrente usar o meio administrativo necessário à recorribilidade do acto ( ... ).
x) Atente-se na redacção do artigo 49º do CPAC que estabelece o prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do despacho, para os recorrentes da coligação ilegal poderem apresentar novo recurso.
y) E atente-se na redacção do no nº 2 do artigo 50º do CPAC que estabelece que o recorrente pode usar da faculdade prevista no artigo anterior, (o prazo de 30 dias para apresentar novo recurso) quando for rejeitado o recurso ou ele prossiga em caso de ilegalidade da cumulação de impugnações.
z) Da conjugação da norma do artigo 213º do CPC com as normas dos artigos 48º, 49º e 50º do CPAC, e em obediência ao disposto no artigo 1º do CPAC que manda aplicar, subsidiariamente, com as devidas adaptações, o CPC, e, em obediência, ainda, às regras de interpretação das normas de direito consagradas no artigo 8º do Código Civil que manda atender, entre outras regras, à da unidade do sistema jurídico, parece resultar inequívoco que o legislador do CPAC teria consagrado o prazo de 30 dias para suprir a ilegitimidade, em caso de litisconsórcio necessário activo, caso tivesse admitido a possibilidade de tal situação, no processo contencioso administrativo.
aa) Por outro lado, a decisão que julgue ilegítima alguma das partes prevista no artigo 213º do CPC, não tem, nem pode ser identificada literal e necessariamente com a decisão de absolvição da instância.
bb) O artigo 1º do CPAC manda aplicar o Código de Processo Civil ao Procedimento Administrativo Contencioso, mas com as devidas adaptações, imposição que o Acórdão recorrido ignora.
cc) O artigo 213º vem permitir que nos 30 dias posteriores à decisão que julgue ilegítima alguma das partes, se pode efectuar o chamamento das partes ilegítimas para que o processo prossiga os seus termos.
dd) A lei não distingue qual a forma que venha a tomar essa decisão: se inserida (i) num despacho que indefere liminarmente a petição, se (ii) numa sentença de absolvição da instância.
ee) Invocando-se o citado Princípio do Inquisitório o julgador está obrigado a interpretar as normas processuais com latitude, sempre tendo em vista que as normas de processo não podem obstar a que a forma se sobreponha ao mérito da decisão, e (adoptando as palavras do Prof. Vieira de Andrade, que são igualmente válidas no âmbito do processo civil) tendo sempre presente que é fundamental assegurar que os processos obtenham uma decisão de mérito, evitando, até ao limite do suportável, decisões formais injustificadas.
ff) Pelo exposto, também por estas razões merece censura o Acórdão recorrido, que acolheu a posição e a fundamentação do meritíssimo Juiz Relator, o qual deve ser revogado.
Contra-alegando a entidade recorrida, pugnando pelo não provimento do recurso.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, entendendo que merece provimento o recurso, devendo determinar-se o prosseguimento do recurso contencioso, com a apreciação do requerimento de intervenção principal provocada e demais termos, se a isso nenhuma outra circunstância obstar.
Foram corridos os vistos.
2. Factos
Resulta dos autos a seguinte factualidade:
- A, B, C, F, H, D, I, E, G e herdeiros de J interpuseram recurso contencioso do referido despacho do Chefe do Executivo, de 14 de Abril de 2015.
- Por despacho de 9 de Outubro de 2015, o Juiz Titular decidiu, ao abrigo do disposto na al. d) do n.º 2 do art.º 46.º do CPAC, rejeitar liminarmente o recurso, por ilegitimidade plural activa, por entender que, estando perante uma situação de litisconsórcio necessário, é indispensável a intervenção de todos os concessionários do terreno em causa e a falta de um deles implica a ilegitimidade nos termos do art.º 61.º do CPC, ex vi do art.º 1.º do CPAC.
- O despacho transitou em julgado em 26 de Outubro de 2015.
- Em 3 de Novembro de 2015, A, B, C, D, E, F e G vieram requerer a intervenção principal provocada de H, I e K, esta última na qualidade de única herdeira habilitada de J, apresentando a nova petição inicial.
- Por despacho de 20 de Janeiro de 2016 do Juiz Titular, foi determinada a rejeição do novo recurso, por extemporaneidade da interposição do mesmo.
- Desse despacho reclamaram A e outros para a conferência.
- A reclamação foi indeferida por acórdão objecto do presente recurso.
3. Direito
Foi posto em causa o acórdão proferido pelo TSI sobre a reclamação apresentada pelos ora recorrentes para a conferência, que decidiu manter o despacho reclamado de 20 de Janeiro de 2016 do Juiz Relator.
Constata-se nos autos que, após o trânsito em julgado, em 26 de Outubro de 2015, do despacho proferido pelo Juiz Titular que determinou, ao abrigo do disposto na al. d) do n.º 2 do art.º 46.º do CPAC, a rejeição liminar do recurso, os ora recorrentes requereram, em 3 de Novembro de 2015 e ao abrigo dos art.ºs 267.º e 213.º do CPC, a intervenção principal provocada de H, I e K, apresentando a nova petição inicial. E o Juiz Titular determinou a rejeição do novo recurso, por extemporaneidade da sua interposição, decisão esta que foi confirmada pelo acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo em conferência.
Entende o Tribunal recorrido que o preceito do art.º 213.º do CPC só tem aplicação no caso de absolvição da instância, não sendo aplicável ao caso de indeferimento liminar, e o prazo para apresentar nova petição com benefício de se considerar a nova acção interposta na data em que a primeira petição foi apresentada só pode ser o prazo previsto no art.º 396.º do CPC, por ser específico para a situação de indeferimento liminar.
Na tese dos recorrentes, o acórdão recorrido viola os princípios do inquisitório e da tutela jurisdicional efectiva e padece do vício de incorrecta aplicação da lei, nomeadamente das disposições conjugadas dos art.ºs 213.º e 267.º do CPC.
Vejamos se assiste razão aos recorrentes.
Nos termos da al. d) do n.º 2 do art.º 46.º do CPAC, o recurso é liminarmente rejeitado quando seja manifesta a ilegitimidade do recorrente.
E as normas em causa do CPC estabelecem o seguinte:
Artigo 6.º
(Poder de direcção do processo e princípio do inquisitório)
1. Incumbe ao juiz, sem prejuízo do ónus da iniciativa das partes, providenciar pelo andamento regular e célere do processo, ordenando as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusando o que for impertinente ou meramente dilatório.
2. O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, sempre que essa falta seja susceptível de suprimento, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, se estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los.
3. Incumbe ao juiz realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Artigo 213.º
(Modificação subjectiva pela intervenção de novas partes)
1. Até ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa, pode o autor ou reconvinte chamar essa pessoa a intervir, nos termos dos artigos 267.º e seguintes.
2. Depois do trânsito em julgado da decisão referida no número anterior, o chamamento pode ainda ter lugar nos 30 dias subsequentes; admitido o chamamento, a instância extinta considera-se renovada, recaindo sobre o autor ou reconvinte o encargo do pagamento das custas em que tiver sido condenado.
Artigo 267.º
(Âmbito)
1. Qualquer das partes pode chamar a juízo os interessados com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2. Nos casos previstos no artigo 67.º, pode ainda o autor chamar a intervir como réu o terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido.
3. O autor do chamamento alega a causa do chamamento e justifica o interesse que, através dele, pretende acautelar.
Artigo 394.º
(Indeferimento liminar)
1. A petição é liminarmente indeferida:
a) Quando for inepta, nos termos do artigo 139.º;
b) Quando seja manifesto que a acção não pode ser proposta nos tribunais de Macau, nos termos dos artigos 15.º e seguintes;
c) Quando seja manifesta a falta de personalidade judiciária do autor ou do réu, a sua ilegitimidade ou a falta de interesse processual;
d) Quando a acção for proposta fora de tempo, sendo a caducidade de conhecimento oficioso, ou quando, por outro motivo, for evidente que a pretensão do autor não pode proceder.
2. Não é admissível o indeferimento liminar parcial da petição, a não ser que dele resulte exclusão de algum dos réus.
3. Se a forma de processo escolhida pelo autor não corresponder à natureza ou ao valor da acção, manda-se seguir a forma adequada; mas quando não possa ser utilizada para essa forma, a petição é indeferida.
Artigo 396.º
(Benefício concedido ao autor no caso de indeferimento)
1. O autor pode apresentar outra petição dentro do prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho de indeferimento ou, se tiver recorrido deste despacho, da notificação ordenada na parte final do n.º 4 do artigo anterior.
2. Em qualquer dos casos, a acção considera-se proposta na data em que a primeira petição tenha dado entrada na secretaria e, se o réu já tiver sido citado, é notificado para contestar.
Defendem os recorrentes que nunca o Juiz Relator poderia ter determinado a rejeição liminar do recurso, estando obrigado a emitir, antes, despacho convidando as partes, em prazo por si fixado, a regularizar a falta do pressuposto processual que, em seu entender, considerou existir, uma vez que esse suprimento era possível e, com a rejeição liminar do recurso, foi violado o disposto no art.º 6.º do CPC.
Ao abrigo do n.º 2 do art.º 6.º do CPC, o juiz deve providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, sempre que essa falta seja susceptível de suprimento, determinando a realização dos actos necessários à regularização ou, se estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los.
Afigura-se-nos que, no Direito Processual Civil e Processual Administrativo Contencioso, que se regem pelos mesmos princípios, não é possível o indeferimento liminar da petição ou a rejeição da petição de recurso contencioso, que corresponde à figura anterior, por preterição de litisconsórcio necessário, face ao disposto nos art.ºs 394.º n.º 1, al. c) do CPC e 46.º n.º 2, al. d) do CPAC, que abrangem apenas a ilegitimidade singular, sempre insuprível, e não a ilegitimidade plural, suprível com a intervenção das pessoas em falta (com excepção da falta de identificação dos contra-interessados, quando a falta seja manifestamente indesculpável, nos termos da al. f) do n.º 2 do art.º 46.º do CPAC).
É verdade que, nos termos dos art.ºs 394.º n.º 1, al. c) do CPC e 46.º n.º 2, al. d) do CPAC, se a falta de legitimidade das partes for manifesta, a petição será liminarmente indeferida, enquanto a ilegitimidade manifesta do recorrente implica a rejeição liminar do recurso.
E a ilegitimidade é, em regra, insanável.
Exceptua-se, no entanto, a legitimidade plural (preterição do litisconsórcio necessário), a qual é sanável.
No caso de litisconsórcio necessário, a ilegitimidade activa e passiva é sanável mediante a intervenção principal provocada da parte em falta (art.ºs 267.º e 213.º do CPC), podendo o autor da acção fazer o chamamento nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes.1
É o que sucedeu no caso vertido nos autos.
E é de acolher a tese da admissibilidade da sanação da ilegalidade decorrente do litisconsórcio necessário activo através do incidente de intervenção principal, até mesmo em virtude do disposto do art.º 6.º n.º 2 do CPC.2
Na verdade, se a falta do pressuposto processual é sanável, como é que a lei permitiria o indeferimento liminar com fundamento na sua falta?
Isto sem prejuízo de se poder entender que, em contencioso administrativo, não há litisconsórcio necessário activo, face ao disposto no art.º 77.º do CPAC, questão que não cumpre agora examinar.
Assim sendo, o despacho de 9 de Outubro de 2015, que rejeitou o recurso por ilegitimidade plural activa, violou o disposto no n.º 2 do art.º 6.º do CPC, aplicável subsidiariamente por força do art.º 1.º do CPAC, bem como o art.º 46.º n.º 2, al. d) do CPAC.
Simplesmente, tal despacho, não impugnado, transitou em julgado.
Nos 30 dias seguintes a tal trânsito em julgado vieram os recorrentes pedir a intervenção principal provocada como seus associados das pessoas que o despacho considerava em falta, ao abrigo dos art.ºs 267.º e 213.º do CPC.
O despacho de 20 de Janeiro de 2016 não admitiu com o argumento de que a rejeição corresponde ao indeferimento liminar e a norma do art.º 213.º do CPC só se aplica à absolvição de instância.
Trata-se do argumento formal e literal.
Na realidade, a lei não prevê a aplicação do art.º 213.º do CPC ao indeferimento liminar, simplesmente porque não é possível o indeferimento liminar por preterição de litisconsórcio necessário activo, ao contrário do que decidiu o despacho de 9 de Outubro de 2015. Mas tendo este despacho transitado em julgado, que rejeitou o recurso contencioso por ilegitimidade plural, deve admitir-se a modificação subjectiva da instância nos termos do n.º 2 do art.º 213.º do CPC.
Trata-se da única solução que permite que se conheça de um recurso contencioso que foi rejeitado judicialmente por interpretação e aplicação incorrecta de normas e princípios processuais, sendo certo que a ratio deste art.º 213.º foi respeitada pelos recorrentes ao pretender trazer novas partes ao recurso nos 30 dias seguintes ao trânsito do despacho que julgou parte ilegítima por estar desacompanhada de outros interessados na anulação do acto recorrido.
Não obstante o já trânsito em julgado do despacho de 9 de Outubro de 2015 que rejeitou o recurso por ilegitimidade plural activa, isto não obsta a que se lança mão do n.º 2 do art.º 213.º, que permite a modificação subjectiva da instância após o trânsito em julgado da decisão sobre a ilegitimidade activa.
Tal como refere o Magistrado do Ministério Público no seu parecer, nem a letra do art.º 213.º nem a sua inserção sistemática no CPC aponta para a inviabilidade de recurso ao chamamento nos casos de indeferimento ou de rejeição liminar, nada habilitando ou sugerindo a conclusão de que se trata de normativo privativo das situações de absolvição da instância.
E não é de aplicar o disposto no art.º 396.º do CPC, que prevê expressamente a situação de indeferimento liminar, concedendo ao autor o prazo de 10 dias, a contar da notificação do despacho de indeferimento, para apresentar nova petição, se deste despacho não tiver sido interposto recurso, uma vez que não é possível o indeferimento liminar por preterição de litisconsórcio necessário activo, repetindo-se.
Acrescentando, encontra-se no art.º 49.º do CPAC uma solução bastante similar à ora adoptada nos termos do n.º 2 do art.º 213.º do CPC, segundo o qual no caso de rejeição liminar do recurso por ilegal coligação dos recorrentes – al. e) do n.º 2.º do art.º 46.º do CPAC, podem estes interpor novo ou novos recursos, no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do despacho de rejeição, considerando-se as respectivas petições apresentadas na data da entrega da primeira. Permite-se assim o suprimento da ilegalidade da coligação dos recorrentes.
É de acolher também a afirmação do Magistrado do Ministério público no sentido de que a preterição do litisconsórcio necessário activo configura uma situação que, processualmente, representa como que o reverso do coligação ilegal, justificando-se, mutatis mutandis, um regime processual similar para suprir as respectivas irregularidades.
Concluindo, afigura-se-nos dever ser revogado o acórdão recorrido, que deve ser substituído por outro que admita o chamamento nos termos do n.º 2 do art.º 213.º do CPC.
Procede o recurso jurisdicional.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando o acórdão recorrido, que deve ser substituído por outro que admita o chamamento nos termos do n.º 2 do art.º 213.º do CPC, se a isso nenhuma outra circunstância obstar.
Sem custas nas duas instâncias.
Macau, 20 de Março de 2019
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, 3.ª edição, p. 221 e 232.
2 José Cândido de Pinho, Notas de Comentários ao Código de Processo Administrativo Contencioso, V. I, 2018, p. 547 e 548.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
1
Processo n.º 73/2016