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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 6 de Abril de 2006, que, em recurso hierárquico, confirmou decisão do Comandante Substituto do Corpo de Polícia Segurança Pública, que indeferiu pedido de autorização de permanência em Macau do seu filho menor B.
Por acórdão de 14 de Dezembro de 2006, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformado, interpõe o recorrente recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a alegação com a formulação das seguintes conclusões:
I. O objecto do recurso é o acórdão do TSI que negou pretensão ao recurso contencioso interposto de uma decisão do Senhor Secretário para a Segurança;
II. O referido acórdão ao confirmar a decisão então recorrida padece dos vícios de violação da lei, designadamente da violação da norma do n.º 5 do artigo 8.º da Lei 4/2003, da insuficiência ou deficit da instrução e indirectamente e indirectamente do direito de constituição de família.
III. O recorrente é trabalhador não residente especializado sendo que a sua contratação foi e é de interesse da RAEM, em função da importância da D, na actual conjuntura económica da Região.
IV. Nos termos do n.º 5 do artigo 8.º da Lei n.º 4/2003, trabalhador não residente especializado é aquele que possui determinadas habilidades ou conhecimentos especiais em determinada prática, actividade, ramo do saber, ocupação ou profissão.
V. O acto recorrido padece na verdade do vício de violação da lei, mormente da norma do n.º 5 do artigo 8.º da Lei n.º 4/2003, sendo que a sindicância que foi pedida ao Tribunal a quo é de mera legalidade.
VI. Estando no âmbito da chamada discricionariedade vinculada, a Administração terá de adoptar aquela solução que se mostre mais consentânea com a posição defendida pela legislação em vigor, in casu a norma do n.º 5 do artigo 8.º da Lei n.º 4/2003.
VII. Não cabe, pois, a Administração decidir da forma que entender ser mais conveniente atendendo ao seu livre arbítrio, mas sim, escolher a solução que se mostre mais adequado a prossecução do interesse público em causa.
VIII. O parecer que sustentou o despacho de indeferimento contem dados desactualizados em relação à remuneração do recorrente.
IX. A mãe do menor é titular de autorização de permanência nesta RAEM, sendo portadora do TITNR n.º XXXXXX/XXXX, emitido em 6 de Dezembro de 2005 e se encontra autorizada a trabalhar, como trabalhadora não residente não especializada, a favor do Senhor C até 6 de Dezembro de 2007, auferindo mensalmente um salário de Mop $2,500.00.
X. A omissão de tal factualidade poderá ter estado na origem do indeferimento da pretensão do recorrente, embora se admita que o recorrente possa ter a sua quota-parte de responsabilidade nessa omissão.
XI. As insuficiências na instrução estão na origem de um deficit de instrução, que redunda em erro invalidante da decisão, não só da omissão ou preterição das diligências legais, mas também por não se tomar em conta na instrução, factos que fossem necessários para a decisão do procedimento, vício e insuficiência que assacamos a decisão ora recorrida.
XII. Cabia ao Tribunal a quo, e à Entidade Recorrida, decidir em conformidade com o direito aplicável a Macau e, em particular, dos interesses em causa nos presentes autos.
XIII. Os presentes autos destinam-se, sobretudo, a deferir ou indeferir o direito de a Criança ficar com os seus pais, sabendo-se, e estando demonstrado que os seus pais vivem em Macau legalmente.
XIV. Ambos os pais da Criança em causa nos presentes autos encontram-se a residir na RAEM com autorização especial para o efeito.
XV. O Governo Central da República Popular da China, no âmbito da sua autoridade, tornou aplicável À RAEM os principais instrumentos internacionais de protecção dos direitos da família e da Criança.
XVI. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança adoptada em Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, e tornada aplicável à RAEM ex. vi do Aviso do Chefe do Executivo n.º 5/2001. Da mesma forma,
XVII. Aviso do Chefe do Executivo n.º 15/2001, Promulgado em 5 de Fevereiro de 2001, tornou aplicável à RAEM o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais.
XVIII. Estes dois diplomas internacionais representam um compêndio de princípios e regras fundamentais que, pela sua importância, e pelos interesses que protegem, não podem ser derrogados pela RAEM por qualquer dos seus poderes Regionais: Político, Administrativo e Judicial.
XIX. Em especial, e no que respeitam aos direitos das Crianças, e que foram directamente violadas pela decisão em crise, mencionamos as seguintes disposições:
a) o princípio do melhor interesse da criança, consagrado no artigo 3.° da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança;
b) o princípio da Não discriminação, consagrado no artigo 2.° Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança;
c) o artigo 10.° do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais; e
d) o artigo 9.° da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
XX. O artigo 3.°, n.º 1, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança estabelece, muito claramente, que «[...] Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança. [...].
XXI. Independentemente de o Tribunal a quo ter entendido que a decisão da Administração é insindicável pelos tribunais da RAEM, sob pena de «flagrante violação do princípio da separação de poderes», violou o artigo 3.°, n.º 1, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança em dois momentos essenciais.
XXII. O primeiro porque, ao atribuir total discricionariedade à Administração para deferir ou indeferir tal pedido, não cuidou de sindicar do cumprimento ou incumprimento do referido princípio do melhor interesse da Criança, sabendo-se que se trata de uma decisão que tem um alvo imediato: a Criança (de dois anos).
XXIII. O segundo, porque ponderou o princípio da separação de poderes como um princípio inultrapassável, como se o próprio Tribunal não estivesse, desde logo, legitimado e obrigado pelo referido diploma, a zelar pela protecção dos direitos do menor.
XXIV. No âmbito desde princípio fundamental, cumpre aos Tribunais aferir, em concreto, se os interesses do menor ficaram ou não salvaguardados, sabendo-se que esses interesses devem ser valorados de forma superior aos demais que se encontrem por valorar.
XXV. Ao atribuir total discricionariedade, e decidir pela insindicabilidade da decisão da Administração, o Tribunal não cuidou de, como era sua obrigação, de saber se os interesses da criança foram ou não salvaguardados.
XXVI. Violou a atribuição específica de competência no sentido de saber se, ao decidir da forma como o fez, estaria ou não a ponderar positivamente os superiores interesses da Criança.
XXVII. Da mesma forma, o artigo 2.°, nos 1 e 2, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança consagram o princípio da não discriminação da Criança.
XXVIII. No âmbito da legislação em vigor na RAEM, um pai titular de um título de residente não permanente pode estender esse direito ao seu agregado familiar, nele se incluindo, necessariamente, os seus filhos.
XXIX. Ao contrário, e nos termos em que as instituições recorridas decidiram, numa situação em que ambos os pais da Criança em causa nos autos são portadores, não de um BIRM, mas de um "blue card", como é vulgarmente referenciado, esta, apesar de os mesmos pais estarem a viver e trabalhar legalmente na RAEM, é recambiada para a sua terra, para longe dos seus progenitores que aqui lutam pela sua vida, e pelo futuro do seu filho.
XXX. Esta situação constitui uma manifesta discriminação da Criança, cujo direito a estar com os seus progenitores é avaliado unicamente no papel ou título de que os pais sejam portadores.
XXXI. Cabia, pois, à Administração e ao próprio Tribunal a quo o dever de verificar se a decisão a aplicar, ainda que, o que não se concede, que a lei vigente não pudesse ser aplicada de outra forma, se o resultado da mesma se traduziria numa situação de discriminação.
XXXII. Isto porque, como é sabido, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança não pode ser afastada pela lei interna da RAEM.
XXXIII. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança faz parte .da categoria dos princípios de Direito Internacional Geral ou Comum, que não poderia ser afastada pelos Órgãos da RAEM.
XXXIV. Estabelece, por sua vez, a primeira parte do número 3, do artigo 10.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais que: «Devem adoptar-se medidas especiais de protecção e assistência a favor de todas as crianças e adolescentes, sem qualquer discriminação por razões de filiação ou qualquer outra condição[...]»
XXXV. Este preceito, a que a RAEM também se encontra obrigada a cumprir e defender, proíbe situações de discriminação por razões de filiação, como a dos autos, como melhor se descreveu supra.
XXXVI. Ainda que dúvidas houvessem, desde já se chama a V. Exas. particular atenção à flagrante violação directa do artigo 9.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. Na verdade,
XXXVII. Estabelece o referido preceito que: «Os Estados Partes garantem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança tiver de ser tomada.»
XXXVIII. Na situação como a dos autos, e em sentido contrário à própria convenção, é a Administração da RAEM quem promove a separação de uma Criança de dois anos de seus pais.
XXXIX. É pois, manifesta a violação, por parte da decisão em crise das normas supra referidas cujo valor é hierarquicamente superior à Lei interna da RAEM e que esta deve obediência.
O Ex. mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no qual considera que deve ser negado provimento ao recurso, já que a Administração não se pode obrigar a suportar os efeitos de certos direitos, como os que interferem ou contrariam as políticas essenciais de controle dos fluxos migratórios que lhe cabe conceber e gerir.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
  - em 17 de Outubro de 2005, A pediu a autorização especial de permanência do seu filho menor B, à luz do art.º 8.°, n.º 5, da Lei n.º 4/2003, de 17 de Março;
  - em 15 de Novembro de 2005, foi emitido pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais ao Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP), parecer negativo à solicitada autorização de permanência do menor, atendendo nomeadamente ao nível de rendimentos do requerente, que auferia MOP$5.560,00 por mês como trabalhador não residente pela D, embora o mesmo requerente fosse tido como um trabalhador não residente especializado;
  - em 6 de Dezembro de 2005, o requerente foi notificado do teor da Informação n.º XXX/XXXX/XXX, de 2 de Dezembro de 2005, do Serviço de Migração do CPSP, para se pronunciar no prazo de dez dias sobre a opinião daí constante, no sentido provável de o seu pedido não ser autorizado;
  - em 14 de Dezembro de 2005, foi apresentada ao Serviço de Migração do CPSP uma carta subscrita pelo requerente, pedindo que o seu requerimento sobre o menor fosse considerado pelas autoridades competentes;
  - em 17 de Janeiro de 2006, o Senhor Comandante Substituto do CPSP indeferiu o pedido de autorização especial de permanência em questão, tendo por referência o parecer desfavorável daquela Direcção de Serviços;
  - dessa decisão, interpôs o requerente recurso hierárquico para o Senhor Secretário para a Segurança, o qual lho indeferiu por despacho de 6 de Abril de 2006.
Este é o acto recorrido.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
1.1 Nas conclusões XIII a XXXIX os recorrentes suscitaram questão nova, nunca antes abordada por eles, designadamente no recurso contencioso.
Entende o recorrente que o Acórdão recorrido violou:
a) o princípio do melhor interesse da criança, consagrado no artigo 3.° da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança;
b) o princípio da não discriminação, consagrado no artigo 2.° Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança;
c) o artigo 10.° do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais; e
d) o artigo 9.° da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
Ora, os recursos jurisdicionais destinam-se a apreciar a bondade de uma decisão de que se recorre e não questões novas, a não ser em matéria de conhecimento oficioso.
Simplesmente, a questão suscitada prende-se com a violação do princípio da hierarquia das normas, que é de conhecimento oficioso do Tribunal.
Conhecer-se-á, pois, de tal matéria.1

1.2 A outra questão a apreciar é a de saber se, ainda que o interessado – trabalhador não-residente - deva ser considerado trabalhador especializado e a sua contratação tenha sido do interesse da RAEM, nos termos e para os efeitos do art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003, se a Administração tem o poder discricionário de aceitar ou não o pedido de permanência em Macau do filho menor do trabalhador.
É certo que o Acórdão recorrido não conheceu de outra questão suscitada pelo recorrente no recurso contencioso (erro sobre pressupostos de facto, por déficit de instrução). Simplesmente, o recorrente não arguiu, como lhe competia, a nulidade da sentença – por omissão de pronúncia – e a mesma não é de conhecimento oficioso deste Tribunal.
Limitar-nos-emos, pois, a conhecer da questão abordada no Acórdão recorrido, para além da outra, atrás referida, de conhecimento oficioso.

  2. Autorização especial de permanência na RAEM. Poder vinculado e poder discricionário. Conceitos indeterminados
O recorrente requereu que, ao abrigo do art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003, fosse autorizada a permanência em Macau, de seu filho menor B.
A autorização foi indeferida.
O Acórdão recorrido entende estar-se perante decisão proferida no uso de poder discricionário.
  A Lei n.º 4/2003 estabelece os princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
  O art. 8.º trata da autorização especial de permanência na RAEM.
  Dispõe este artigo:
“Artigo 8.º
Autorização especial de permanência
1. A permanência na RAEM pode ser especialmente autorizada para fins de estudo em estabelecimento de ensino superior, de reagrupamento familiar ou outros similares julgados atendíveis.
2. O pedido de autorização de permanência para fins de estudo é instruído com documento comprovativo de inscrição ou matrícula em estabelecimento de ensino superior da RAEM, e documento que ateste a duração total do curso respectivo.
3. A autorização de permanência para fins de estudo é concedida pelo período normal de duração do curso pretendido frequentar, sendo renovável pelo período máximo de 1 ano.
4. Tratando-se de curso com duração superior a 1 ano, a autorização é obrigatoriamente confirmada pelo menos uma vez por ano, sendo para tal tidos em conta a efectiva frequência do curso e o aproveitamento escolar.
5. A autorização de permanência do agregado familiar de trabalhador não-residente especializado, cuja contratação tenha sido do interesse da RAEM, é concedida pelo período pelo qual o referido trabalhador estiver vinculado, sob parecer da entidade competente para a autorização da contratação de mão-de-obra não-residente.
6. Na pendência de pedido de fixação de residência pode o Serviço de Migração prorrogar a autorização de permanência do interessado a seu requerimento, uma ou mais vezes, até 30 dias após a decisão final sobre aquele pedido”.
  Trata-se de saber, se a decisão proferida, ao abrigo dos n. os 1 e 5 do art. 8.º, integra poder discricionário ou vinculado da Administração.
No Acórdão de 3 de Maio de 2000, no Processo n.º 9/2000, este Tribunal teve oportunidade de reflectir sobre estes conceitos, distinguindo, ainda, a discricionariedade dos conceitos indeterminados. Disse-se o seguinte:
“10. É clássica a explicação que MARCELLO CAETANO2 dá para distinguir os poderes vinculados e discricionários dos órgão administrativos: «umas vezes a lei ou os estatutos regulam as circunstâncias em que o órgão deve exercer o poder que lhe está confiado, impondo-lhe que actue sempre que concorram essas circunstâncias, e determinam o modo de actuar e o conteúdo do acto.
Outras vezes a norma deixa ao órgão certa liberdade de apreciação acerca da conveniência e da oportunidade de exercer o poder, e até sobre o modo desse exercício e o conteúdo do acto, permitindo-lhe que escolha uma das várias atitudes ou soluções que os termos da lei admitam».
No primeiro caso trata-se de poder vinculado. No segundo, o poder é discricionário.
Cabe aqui referir que, como tem sido assinalado, não há, em regra actos totalmente vinculados, nem actos totalmente discricionários. Em qualquer acto administrativo se projectam poderes vinculados a par do exercício, em maior ou menor grau, de discricionaridade, resultando sempre da lei a competência e o fim, isto é o interesse público fixado ao exercício da competência no caso concreto, ao menos implicitamente3.
No que respeita às finalidades da lei na concessão do poder discricionário, explica aquele Professor4 que «a discricionaridade de certos poderes conferidos por lei aos órgãos da Administração traduz o reconhecimento pelo legislador da impossibilidade de prever na norma toda a riqueza e variedade das circunstâncias em que o órgão pode ser chamado a intervir e das soluções mais convenientes consoantes os casos» 5.
Enfim, como refere DAVID DUARTE6 «a existência de uma margem de acção permite a valorização das circunstâncias na sua imprevisibilidade, dá espaço e tempo de manobra e, para além de se lhe reconhecer uma função relevante de legitimação administrativa, realiza a vantagem que resulta da proximidade existente entre o decisor e a situação».

11. Uma matéria importante no âmbito da discricionariedade, relativamente ao caso em apreciação, é a que se refere aos limites do poder discricionário, por razões que estão ligadas à sindicabilidade judicial do exercício destes poderes.
As limitações do poder discricionário podem classificar-se com utilização de vários critérios.
Quanto ao critério da origem dos limites, costuma distinguir-se entre os limites legais, os que resultam da própria lei, e a auto-vinculação, isto é, de normas elaboradas pela própria Administração para disciplinar o uso de determinado poder discricionário.
Outra classificação distingue entre limites internos e limites externos.
De acordo com J. M. SÉRVULO CORREIA7, «por limites internos da discricionariedade, entendem-se os factores que condicionam a própria escolha entre as várias atitudes possíveis, fazendo com que algumas deixem de o ser nas circunstâncias concretas».
Os limites externos serão os restantes, os que se referem à orientação dos poderes de livre decisão a priori e ao seu controlo a posteriori8.
Entre estes limites externos, costuma referir-se a densidade normativa mínima.
A lei fundamental, por vezes, determina que certas matérias estejam reservadas à lei. Nestes casos, a atribuição de poderes discricionários à Administração deve conter uma exigência de densidade normativa mínima9.
Mas não só nos casos de reserva de lei se deve exigir tal densidade normativa mínima à norma que concede o poder discricionário. «O princípio da legalidade, na mesma vertente em que materializa a exigência de um título de decisão, não se limita, no entanto, a uma mera permissão decisória. Simultaneamente, por razões de densidade substantiva, a legalidade exige que o suporte da decisão contenha uma intensidade razoável de pré-determinações, sob pena de frustração da própria ratio do princípio10».
No que respeita aos limites internos, o primeiro será o da vinculação ao fim, «a necessidade de conformar o exercício da discricionariedade com o interesse público visado pela norma que a concede11».
O desvio de poder é o vício típico do exercício de poderes discricionários.
Dispunha o art. 19.º da Lei Orgânica do STA que «o exercício de poderes discricionários só pode ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder», existindo este sempre «que o motivo principalmente determinante da prática do acto recorrido não condizia com o fim visado pela lei na concessão do poder discricionário» (§ único do referido art. 19.º).
Dispondo a lei (art. 6.º do ETAF) que os recursos contenciosos são de mera legalidade e que o exercício de poderes discricionários só pode ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder, daqui resulta que os tribunais não controlam o mérito da decisão discricionária da Administração.

12. No que toca aos restantes limites internos do poder discricionário, interessa-nos destacar a consagração dos princípios jurídicos por que a Administração deve nortear a sua actividade.
De acordo com os arts. 5.º e 6.º do CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 35/94/M, e vigente à data da prática do acto impugnado, no exercício da sua actividade, a Administração deve observar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.
Estes são, pois, limites internos do poder discricionário, factores que condicionam a própria escolha do decisor entre as várias atitudes possíveis12.
Entre tais princípios, os que, à partida, podem estar em causa no nosso caso serão os da proporcionalidade e da justiça. O nosso exame limitar-se-á a estes.
O CPA prevê o princípio da proporcionalidade no seu art. 5.º, n.º 2, estabelecendo que «as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar».
Não cabe aqui fazer a história da génese do princípio ou a sua fundamentação filosófica.
Como refere VITALINO CANAS13 o princípio da proporcionalidade só poderá aplicar-se na apreciação de comportamentos em que o autor goze de uma certa margem de escolha.
A doutrina tem dissecado o princípio em três subprincípios, da idoneidade, necessidade e proporcionalidade, em sentido estrito, ou de equilíbrio.
A avaliação da idoneidade de uma medida é meramente empírica, podendo sintetizar-se na seguinte pergunta: a medida em causa é capaz de conduzir ao objectivo que se visa?
Aceitando-se que uma medida é idónea, passa a verificar-se se é necessária.
O centro das preocupações desloca-se para a ideia de comparação. Enquanto na máxima da idoneidade se procurava a certificação de uma relação causal entre um acto de um certo tipo e um resultado que se pretende atingir, na máxima da necessidade a operação central é a comparação entre uma medida idónea e outras medidas também idóneas. O objectivo da comparação será a escolha da medida menos lesiva.
«A aferição da proporcionalidade, em sentido estrito, põe em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto restritivo ou limitativo, e os bens, interesses ou valores sacrificados por esse acto. Pretende-se saber, à luz de parâmetros materiais ou axiológicos, se o sacrifício é aceitável, tolerável. Para alguns, esta operação assemelha-se externamente à análise económica dos custos/benefícios de uma decisão. Se o custo (leia-se o sacrifício de certos bens, interesses ou valores) está numa proporção aceitável com o benefício (leia-se a satisfação de certos bens, interesses ou valores) então a medida é proporcional em sentido estrito»14 15.
O CPA determina no art. 6.º que«no exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação».

13. Não se têm suscitado dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência, que os tribunais podem fiscalizar o respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. A dúvida está em saber em que medida deverão os tribunais intervir nesta matéria.
DAVID DUARTE16, referindo-se à proporcionalidade em sentido estrito, «que engloba a técnica do erro manifesto de apreciação, técnica jurisdicional francesa que compreende, em termos avaliativos, para além do erro na qualificação dos factos, a utilização de um critério decisório proporcional que se revela numa decisão desequilibrada entre o contexto e a finalidade. O erro manifesto de apreciação, na vertente de controlo da adequação da decisão aos factos…é, como meio de controlo do conteúdo da decisão, um dos degraus mais elevados da intervenção do juiz na discricionariedade administrativa. E, por isso, só é utilizável na medida da evidência comum da desproporção17» (o sublinhado é nosso).
Nas mesmas águas navega MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA18 defendendo que«em face da fluidez dos princípios (da proporcionalidade, da igualdade, da justiça), só são justiciáveis as decisões que, de um modo intolerável, os violem19» (o sublinhado é nosso).
O novo CPAC, no seu art. 21.º, n.º 1, alínea d), embora não aplicável à situação dos autos, a respeito dos fundamentos do recurso contencioso refere-se ao «erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários».

14. Importa, agora, distinguir a discricionariedade dos conceitos indeterminados.
Para tal, afigura-se conveniente partir da natureza do poder discricionário.
Sobre esta questão, existem, fundamentalmente três teses20.
Para uma, a discricionariedade consiste na liberdade da Administração na interpretação de conceitos vagos e indeterminados.
Para outra, a discricionariedade é, basicamente, vinculação da Administração a normas extrajurídicas que podem ser técnicas, científicas ou normas de boa administração.
Outra tese, que é a adoptada pela generalidade da doutrina, vê na discricionariedade uma liberdade de decisão reconhecida por lei à Administração, a fim de que esta escolha entre vários comportamentos possíveis o que lhe aparecer mais adequado à prossecução do interesse público.
Apreciemos a figura dos conceitos indeterminados.
Como refere ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA21 a expressão conceito indeterminado pretende referir aqueles conceitos que se caracterizam por um elevado grau de indeterminação. A estes opõem-se os conceitos determinados, sendo os relativos a medidas (metro, litro, hora) ou a valores monetários (pataca, dólar norte-americano) os conceitos mais determinados.
Quase todos os conceitos jurídicos contêm algum grau de indeterminação, de tal sorte que PHILLIP HECK22 sublinhou que os conceitos absolutamente determinados seriam muito raros no direito.
A utilização pelo legislador de conceitos indeterminados constitui expediente de que aquele se serve por motivos vários, como para «permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, ou para facultar uma espécie de osmose entre as máximas ético-sociais e o Direito, ou para permitir levar em conta os usos do tráfico, ou, enfim, para permitir uma “individualização” da solução23».
ROGÉRIO SOARES24 acentua que o legislador utiliza prodigamente os conceitos indeterminados perante as complexidades da sociedade moderna.
Pois bem, a distinção fundamental entre discricionariedade e conceitos indeterminados está em que, enquanto no primeiro caso, o órgão tem uma liberdade actuação quanto a determinado aspecto, no segundo caso estamos perante uma actividade vinculada, de mera interpretação da lei, com base nos instrumentos da ciência jurídica.
Aqui, nos conceitos indeterminados, não há liberdade. Logo que se apure qual a interpretação correcta da norma - e em direito só há uma interpretação correcta em cada caso – o aplicador da lei tem de a seguir necessariamente.
Por isso, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA25referiu que «a discricionariedade começa onde acaba a interpretação».
Deste modo, quando se conclua que a tarefa a efectuar é apenas a de interpretar a lei, o tribunal pode fiscalizar a aplicação do direito feita pela Administração.
No entanto, a doutrina cedo detectou que ao lado dos conceitos indeterminados que se traduzem na mera interpretação da lei, há um outro grupo de situações em que se mostra que a intenção da lei é a de pretender «deixar ao órgão administrativo a escolha dos pressupostos quando os define através de noções vagas ou indeterminadas26».
Este segundo grupo é que J. M. SÉRVULO CORREIA27 considera que são os verdadeiros conceitos indeterminados, ou conceitos indeterminados puros.
A doutrina alemã, a partir dos anos cinquenta avançou com a construção de doutrinas com vista a delimitar os casos em que a aplicação de conceitos indeterminados envolve o exercício de capacidade de apreciação própria da Administração, não sindicável pelos tribunais.
Foi assim que BACHOF lançou a célebre teoria da margem de livre apreciação, definindo-a como o âmbito dentro do qual se reserva à Administração uma margem para a livre apreciação dos pressupostos da sua actuação. Para o Professor alemão nem todo o conceito indeterminado confere uma margem de livre apreciação à Administração, sendo ao legislador que incumbe escolher os casos em que assim sucederá.28
Posteriormente, WALTER SCHMIDT, veio defender que «a avaliação de pressupostos que integram a situação concreta, para efeito da sua subsunção em conceitos indeterminados que figuram na hipótese da norma, reduz-se sempre a um problema de prognose, quer se trate de avaliação de qualidades de pessoas ou coisas, quer, directamente, da estimativa sobre a evolução futura de processos sociais…
À luz desta construção, a «margem de livre decisão» reduz-se aos casos de discricionariedade e de aplicação isolada de conceitos de prognose: a aplicação de todos os outros elementos do «Tatbestand» de uma norma jurídica é inteiramente sindicável pelos tribunais»29.
Seguindo a doutrina de WALTER SCHMIDT, J. M. SÉRVULO CORREIA30 explicitou que «a aplicação do conceito indeterminado tipo ao caso concreto (Anwendung) envolve a emissão de juízos de valor que inevitavelmente contêm elementos subjectivos, muitos deles integrados numa prognose. A prognose é um raciocínio através do qual se avalia a capacidade para uma actividade futura, se imagina a evolução futura de um processo social ou se sopesa a perigosidade de uma situação futura…
O juízo de prognose respeita à subsunção da situação concreta no conceito encerrado na previsão da norma (Tatbestand) e não à interpretação em abstracto de tal conceito. Assim, por exemplo, vigora na República Federal (Alemã) uma norma jurídica que determina que deverá ser recusada a licença de instalação de um estabelecimento hoteleiro quando os factos (Tatsachen) justificarem a suposição de que o requerente não merece confiança (Zuverlässigkeit) necessária para o desempenho de tal actividade industrial. O conceito indeterminado «confiança» carece de ser interpretado e o modo do seu entendimento em abstracto é revisível pelo tribunal. Mas o juízo, perante os pressupostos de facto, sobre se o requerente merece ou não a necessária confiança é um juízo de prognose, visto que envolve uma apreciação da hipotética conduta futura do requerente no desempenho da actividade pretendida».
Acresce que, para o mesmo autor, os conceitos indeterminados do 1.º tipo, que não envolvam juízos de prognose são determinados, porque o seu conteúdo é apurável através de métodos teorético-discursivos.31
Por outro lado, aos conceitos indeterminados do 2.º tipo, aqueles em que se revela a intenção de conferir uma margem de livre apreciação à Administração, devem aplicar-se as regras já estudadas a propósito dos limites e da fiscalização judicial do exercício de poderes discricionário32, afirmando-se que, embora estruturalmente diferenciáveis, discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados são unificáveis em termos de regime jurídico.33”

3. Limites do poder discricionário. Princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça
Estamos em condições de aplicar as considerações expostas ao caso dos autos.
A permanência na RAEM pode ser autorizada ao agregado familiar de trabalhador não-residente especializado, cuja contratação tenha sido do interesse da RAEM.
Na apreciação do conceito trabalhador especializado a Administração não goza de qualquer margem de livre apreciação, embora se trate de conceito com algum grau de indeterminação. Não se mostra que a intenção da lei tenha sido a de deixar ao órgão administrativo a escolha dos pressupostos do conceito. Aqui a interpretação da Administração é sindicável pelo Tribunal.
No outro segmento da norma (trabalhador cuja contratação tenha sido do interesse da RAEM) também não se configura qualquer atribuição de poder discricionário. O Tribunal pode apurar se se mostra que o trabalhador foi autorizado a exercer a sua actividade em Macau, por haver nisso interesse para a RAEM.
  Mas ainda que a Administração conclua que trabalhador não-residente é especializado e que a sua contratação foi do interesse da RAEM, não está obrigada a autorizar a permanência do seu agregado familiar em Macau. O n.º 1 do art. 8.º da Lei n.º 4/2003, designadamente pela utilização do vocábulo “pode”, mostra que se pretendeu conferir à Administração o poder de autorizar ou não autorizar a permanência da família do trabalhador em Macau. O que bem se compreende, já que por razões de segurança ou outras, os familiares podem ser indesejáveis na Região. Por outro lado, a decisão discricionária há-de ter, também, em conta o interesse do trabalho do não-residente para a RAEM. Por isso é que antes da decisão da Autoridade de Segurança, deve ser emitido parecer da entidade competente para a autorização da contratação de mão-de-obra não-residente (n.º 5 do art. 8.º da Lei n.º 4/2003).
  Quer dizer, para que o trabalhador possa beneficiar da autorização tem de ser trabalhador especializado. Mas como se sabe, há trabalho mais e menos especializado. Esse facto também será certamente ponderado. Se se tratar de um trabalhador altamente especializado, de vital interesse para a RAEM, provavelmente o seu agregado familiar será autorizado a permanecer em Macau, se não houver razões pessoais que imponham o indeferimento. Já se o interesse do trabalhador para a RAEM não for manifesto, provavelmente, é razoável ver a sua pretensão negada, dado o especial condicionalismo físico e geográfico de Macau (território diminuto, densamente povoado, como se refere adiante).
Ou seja, à Autoridade de Segurança pode não interessar a permanência em Macau de determinados familiares de um trabalhador, embora a presença deste seja necessária ou conveniente em Macau. Então, é ao trabalhador que compete optar por permanecer ou não na Região.
O Acórdão recorrido ao considerar que a decisão da Administração, no segmento normativo em questão, se integra no exercício de um poder discricionário, não violou a lei.
O recorrente alega que esta não foi a melhor solução, em nome do princípio da igualdade, da junção familiar e do direito de constituição de família.
Mas não cabe ao Tribunal dizer se foi a melhor solução, já que o tribunal não administra.
Cabe apenas ao Tribunal apurar – de acordo com os parâmetros atrás descritos – se houve violação dos limites do poder discricionário.
Ora, não se mostra que tenha havido qualquer erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício dos mencionados poderes discricionários. E não se vislumbra em que poderia ter havido violação do princípio da igualdade.

4. A protecção dos direitos da criança
4.1 Apreciemos, finalmente, se o Acórdão recorrido violou convenções internacionais que impedem a discriminação de crianças e a separação das crianças dos pais ou que protegem as crianças.
  Esta questão nunca foi apreciada por este Tribunal. Mas foi antes decidida uma questão conexa e que por isso vale a pena recordar.
No Acórdão de 10 de Janeiro de 2007, no Processo n.º 39/2006, decidiu-se, a propósito do mesmo art. 8.º da Lei n.º 4/2003 que os trabalhadores não-residentes na Região Administrativa Especial de Macau, não especializados, não têm um direito à permanência dos seus filhos menores na Região.
  Neste Acórdão disse-se o seguinte:
“Os recorrentes entendem que a decisão recorrida – ao não autorizar a permanência dos filhos da recorrente em Macau - viola o disposto no art. 1.º n.° 1 e 3.º da Lei 6/94/M de 1 de Agosto, mormente o direito que a lei confere aos cidadãos de constituírem família.
É fora de dúvida que a Lei Básica confere aos residentes a liberdade de contrair casamento e o direito de constituir família e de livre procriação (art. 38.º, 1.º parágrafo).
O direito a constituir família significa que duas pessoas de sexo oposto, em idade de procriar, têm o direito de estabelecer vida em comum.
Recorde-se que de acordo com o n.º 1 do art. 23.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção da sociedade e do Estado”. E, dispõe o n.º 2 do mesmo art. 23.º do mencionado Pacto que “O direito de se casar e de fundar uma família é reconhecido ao homem e à mulher a partir da idade núbil”.
Embora o direito a constituir família já implique o direito à livre procriação, a Lei Básica reconhece expressamente este último direito.
Os direitos mencionados são reconhecidos aos residentes, entendendo-se por estes os residentes permanentes e os residentes não permanentes. Os residentes permanentes têm direito à residência na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) e os residentes não permanentes não têm direito a tal residência (art. 24.º da Lei Básica).
A Lei Básica, no seu art. 43.º, equipara as pessoas que não sejam residentes de Macau, mas se encontrem na Região, aos residentes, para o efeito do gozo dos direitos e liberdades dos residentes previstos no Capítulo III da Lei Básica.
Contudo, há uma importante diferença entre o gozo dos direitos fundamentais previstos na Lei Básica por parte dos residentes e por parte dos não residentes: quanto aos residentes, a lei ordinária não pode restringir o conteúdo dos direitos previstos na Lei Básica, a menos que esta expressamente o admita. Mas já o pode fazer quanto aos não residentes, pois que, nos termos do referido art. 43.º, o gozo dos direitos fundamentais por parte dos não residentes é feito “em conformidade com a lei”. Quanto aos não residentes, a lei – entendendo-se aqui a expressão como significando lei formal da Assembleia Legislativa - pode prescrever discriminações entre residentes e não-residentes e, portanto, pode prever excepções e limitações ao princípio da equiparação entre residentes e não residentes.
De qualquer maneira, ainda que a recorrente fosse uma residente – e não é – não teria um direito a que os seus filhos permanecessem em Macau, desde que estes não tivessem, por si, o direito a residir na Região, como é o caso.
É que, se é certo que, tanto a Lei Básica (art. 38.º ), como o art. 1.º, n.º 1 da Lei de Bases da Política Familiar (Lei n.º 6/94/M, de 1 de Agosto) reconhecem a todos o direito a constituir família, este direito não abrange o direito à permanência dos filhos em Macau.
Uma coisa é a liberdade de contrair casamento e de procriar livremente, que são reconhecidos aos que residam ou permaneçam em Macau. Coisa diferente é o direito dos residentes ou não-residentes a ter os seus filhos em Macau, que não existe genericamente, a não ser nos casos previstos na lei.
Aliás, como observa a Ex. ma Procuradora-Adjunta, nada obsta a que a recorrente regresse ao seu país de origem, para tomar conta dos filhos e exercer o seu direito à reunião familiar.
Por outro lado, em outras regiões ou países – como Portugal - que também reconhecem o princípio da equiparação entre nacionais e estrangeiros ou apátridas quanto ao gozo dos direitos fundamentais e em que existe um direito constitucional à constituição de família (art. 36.º, n.º 1 da Constituição portuguesa), se considera que “os filhos de um estrangeiro ou apátrida que resida legalmente em território nacional não têm, ipso facto, um direito constitucional a residir em Portugal”34.
  Por outro lado, o art. 3.º da Lei de Bases da Política Familiar, que reconhece a família como elemento fundamental da sociedade, também não parece ter a virtualidade de derrogar norma (art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003), aliás posterior àquela, que só admite a autorização de permanência do agregado familiar de trabalhador não-residente especializado”.
  
  4.2. Vejamos, pois, se o acto administrativo ou o Acórdão recorrido violaram convenções internacionais que protegem as crianças.
  A invocação que o recorrente faz de normas de convenções internacionais que protegem as crianças, leva a crer que parte do princípio de que a RAEM tem a obrigação de proteger todas as crianças do Mundo. Mas não tem, nem pode ter. Recorde-se que o recorrente é um não-residente que presta trabalho em Macau porque quer e não porque a RAEM o tenha obrigado e o mesmo sucederá com o seu cônjuge, pois, segundo alega, também é uma não-residente. O seu filho, a criança em causa nos autos, também é um não-residente.
  Examinemos mais detidamente as normas invocadas.
  Os artigos invocados da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de 1990, doravante designada por Convenção, dispõem o seguinte:
“ARTIGO 2.º
  1 - Os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a garantir os direitos previstos na presente Convenção a todas as crianças que se encontrem sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra da criança, de seus pais ou representantes legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social, fortuna, incapacidade, nascimento ou de qualquer outra situação.
  2 - Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas para que a criança seja efectivamente protegida contra todas as formas de discriminação ou de sanção decorrentes da situação jurídica, de actividades, opiniões expressas ou convicções de seus pais, representantes legais ou outros membros da sua família.
ARTIGO 3.º
  1 - Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.
  2 - Os Estados Partes comprometem-se a garantir à criança a protecção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.
  3 - Os Estados Partes garantem que o funcionamento de instituições, serviços e estabelecimentos que têm crianças a seu cargo e asseguram que a sua protecção seja conforme às normas fixadas pelas autoridades competentes, nomeadamente nos domínios da segurança e saúde, relativamente ao número e qualificação do seu pessoal, bem como quanto à existência de uma adequada fiscalização.
ARTIGO 9.º
  1 - Os Estados Partes garantem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança tiver de ser tomada.
  2 - Em todos os casos previstos no n.º 1 todas as partes interessadas devem ter a possibilidade de participar nas deliberações e de dar a conhecer os seus pontos de vista.
  3 - Os Estados Partes respeitam o direito de criança separada de um ou de ambos os seus pais de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos, salvo se tal se mostrar contrário ao interesse superior da criança.
  4 - Quando a separação resultar de medidas tomadas por um Estado Parte, tais como a detenção, prisão, exílio, expulsão ou morte (incluindo a morte ocorrida no decurso de detenção, independentemente da sua causa) de ambos os pais ou de um deles, ou da criança, o Estado Parte, se tal lhe for solicitado, dará aos pais, à criança ou, sendo esse o caso, a um outro membro da família informações essenciais sobre o local onde se encontram o membro ou membros da família, a menos que a divulgação de tais informações se mostre prejudicial ao bem-estar da criança. Os Estados Partes comprometem-se, além disso, a que a apresentação de um pedido de tal natureza não determine em si mesmo consequências adversas para a pessoa ou pessoas interessadas”.
  O art. 10.º do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, doravante designado por Pacto, por estatui o seguinte:
“ARTIGO 10º
  Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem que:
  1 - Uma protecção e uma assistência mais amplas possíveis serão proporcionadas à família, que é o núcleo elementar natural e fundamental da sociedade, particularmente com vista à sua formação e no tempo durante o qual ela tem a responsabilidade de criar e educar os filhos, O casamento deve ser livremente consentido pelos futuros esposos.
  2 - Uma protecção especial deve ser dada às mães durante um período de tempo razoável antes e depois do nascimento das crianças. Durante este mesmo período as mães trabalhadoras devem beneficiar de licença paga ou de licença acompanhada de serviços de segurança social adequados.
  3 - Medidas especiais de protecção e de assistência devem ser tomadas em benefício de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação alguma derivada de razões de paternidade ou outras. Crianças e adolescentes devem ser protegidos contra a exploração económica e social. O seu emprego em trabalhos de natureza a comprometer a sua moralidade ou a sua saúde, capazes de pôr em perigo a sua vida, ou de prejudicar o seu desenvolvimento normal deve ser sujeito à sanção da lei. Os Estados devem também fixar os limites de idade abaixo dos quais o emprego de mão-de-obra infantil será interdito e sujeito às sanções da lei”.
  
  4.3. Relativamente ao art. 2.º da Convenção, pelo qual os Estados Partes se comprometem a respeitar os direitos previstos na Convenção a todas as crianças que se encontrem sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma de raça, cor, sexo, religião, etc, não se vislumbra em que é que a RAEM discriminou o filho do recorrente, pois este não alega que a RAEM adopte outra postura contra filhos de não-residentes que tenham outra raça, cor, sexo, religião.
  Quanto ao art. 3.º da Convenção, segundo o qual todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança, também não se mostra violado.
  A RAEM é um pequeno território com cerca de 28 quilómetros quadrados, onde residem permanentemente mais de 500.000 pessoas, constituindo assim uma das regiões com mais alta densidade populacional, a que acrescem dezenas de milhares de turistas diariamente – indústria de que Macau não pode prescindir.
  Face a este condicionalismo, nem a lei fundamental, a Lei Básica, nem as leis internas ou as convenções internacionais a que a Região está obrigada, impõem que a RAEM tenha de aceitar a residência dos filhos de residentes que, por si, não tenham o direito de residir em Macau, já que com uma área tão limitada, não é possível garantir a segurança, a educação, a saúde, a habitação e o transporte de pessoas, a partir de um certo limite. Estão em causa, sobretudo, questões de segurança interna.
  Ora se isto é assim para os filhos dos residentes, fácil é perceber que, por maioria de razão, um não-residente que para Macau venha trabalhar, não pode ter um direito a que os seus filhos menores vivam consigo. Está sujeito a que as autoridades de Macau autorizem ou não a permanência, sendo certo que a decisão discricionária há-de ter em conta, também, como se disse, o interesse do trabalho do não-residente para a RAEM.
  O art. 9.º da Convenção, que garante a não separação da criança dos seus pais, contra a vontade destes, não é manifestamente aplicável. A RAEM não impõe a separação do recorrente do filho. Este apenas não tem o direito de residir em Macau. O recorrente pode continuar a viver com o seu filho. Basta que deixe de trabalhar em Macau e regresse ao seu país de origem.
  Relativamente ao art. 10.º do Pacto, que respeita à obrigação dos Estados Partes de protegerem a família, valem aqui as considerações feitas no Acórdão de 10 de Janeiro de 2007, atrás transcrito.
  Em conclusão, não se mostram violadas as normas invocadas.
  
IV - Decisão
   Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
   Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 6 UC.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai – Chu Kin
A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei
   
1 No Acórdão de 15 de Novembro de 2006, no Processo n.º 38/2006, decidimos não conhecer da questão. Mas aí o recorrente não enfatizou devidamente a violação do mencionado princípio jurídico.
2 MARCELLO CAETANO, Manual, vol. cit., p. 214.
A obra e volume citados na nota é Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 980.
3 MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p 490, FREITAS DO AMARAL, ob. e vol cits. , p. 112 e segs. A obra e volume citados na nota é Direito Administrativo, Vol . II, Lisboa, 1988, e DAVID DUARTE, ob. cit., p. 343. A obra citada na nota é Procedimentalização, Participação e Fundamentação: Para uma Concretização do Princípio da Imparcialidade Administrativa como Parâmetro Decisório, , Livraria Almedina, Coimbra, 1996, p. 337.
4 MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p. 214 e 215.
5 Na lição de MARTIM BULLINGER, Verwaltungsermessen im modernen Staat (Deutschland), Baden-Baden, 1986, p. 149 a 156, citado por MARIA DA GLÓRIA F. P.DIAS GARCIA, Da Justiça Administrativa em Portugal, Sua Origem e Evolução, Lisboa, 1994, p. 645, tais finalidades são as de:
- Âmbito livre para considerações estratégicas ou tácticas, como acontece com a polícia, a fim de adequadamente reagir aos perigos contra a segurança e ordem públicas;
- Âmbito livre para adaptar a lei a circunstâncias especiais do caso concreto, como acontece com uma licença excepcional de construção para um caso típico;
- Âmbito livre para valorações técnicas, como é o caso actos tomados na base de dados fornecidos por comissões de peritos de instalação de centrais nucleares;
  - Âmbito livre para projectos que concretizam a lei e actos configuradores similares (discricionariedade do plano);
  - Âmbito livre para a optimização flexível de prestações estatais.
  6 Ob. cit., p. 351.
7 Ob. cit., p.499. A obra citada na nota é Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, Livraria Almedina, 1987.
8 BERNARDO DINIZ DE AYALA, ob. cit., p. 176. A obra citada na nota é O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa, Lisboa, Lex, 1995.
9 BERNARDO DINIZ DE AYALA, ob. cit., p. 176 a 178.
10 DAVID DUARTE, ob. cit., p. 344, que acrescenta que a norma deve ser determinada, não sendo possível que a habilitação decisória seja a do exemplo caricaturalmente utilizado por JESCH: “A Administração tem a faculdade de poder fazer tudo aquilo que considere necessário para a prossecução do interesse público”.
11 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 493. Cfr, sobre esta matéria, também, MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p. 214.
12 Sobre esta matéria, M. ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, vol. I, 1980, Livraria Almedina, Lisboa, p. 255 e segs.
13 VITALINO CANAS, Princípio da Proporcionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol VI, Lisboa, 1994, p. 616, que se seguirá de perto na exposição subsequente.
14 VITALINO CANAS, ob. cit., p. 628.
15 Sobre o emprego no princípio da proporcionalidade da contabilização custos-benefícíos (ou vantagens) pelo Conselho de Estado francês, cfr. J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 75, que enumera, a p. 114 e segs. da mesma obra, os elementos do princípio em termos semelhantes aos traçados acima.
16 DAVID DUARTE, ob. cit., p. 323.
17 O mesmo autor, ob. cit., p. 323, nota 205, a propósito da questão de saber qual a medida da desproporcionalidade que uma decisão deve ter para poder ser controlada pelo tribunal, cita uma decisão judicial britânica de 1945 (Associated Provincial Picture House Ltd. v. Wednesbury Corporation), que criou um standard aplicável à medida da intervenção judicial, estabelecendo que “if an authority`s decision was so unreasonable that no reasonable authority could ever have como to it, then the courts can interfere”.
18 Ob. cit., p. 642.
19 No mesmo sentido, M. ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., p. 256 e 257 e J.C. VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Livraria Almedina, Coimbra, 1991, p. 137.
20 Cfr. ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, ob. cit., p. 216 e segs., (A obra citada na nota é Erro e Ilegalidade no Acto Administrativo, Lisboa, Ática, 1962), MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., p. 215, MARIA LUÍSA DUARTE, A Discricionariedade Administrativa e os Conceitos Jurídicos Indeterminados, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 370, p. 42 e BERNARDO DINIZ DE AYALA, ob. cit., p. 108.
21 ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, «Conceitos Indeterminados» no Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, 1994, p. 23.
22 Citado por F. AZEVEDO MOREIRA, Conceitos Indeterminados: Sua Sindicabilidade Contenciosa Em Direito Administrativo, Revista de Direito Público, Ano I, n.º 1, Novembro de 1985, p. 34.
23 J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, p. 114.
24 ROGÉRIO SOARES, Administração Pública e Controlo Judicial, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Coimbra, ano 127.º, p. 230.
25 ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, ob. cit., p. 217.
26 M. ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., p. 246.
27 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 332.
28 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 122.
29 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 131 e 136.
30 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 119.
31 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 136.
32 Neste sentido, DAVID DUARTE, ob. cit., p. 368 e J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 499.
33 WALTER SCHMIDT, citado por J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 136.
34 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, Tomo I, 2005, p. 424.
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Processo n.º 21/2007