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Proc. nº 571/2018
Recurso contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 04 de Abril de 2019
Descritores:
- Caducidade preclusiva
- Prorrogação do prazo da concessão
- Actividade vinculada
- Lei Básica (arts. 6º, 7º, 103º, da Lei Básica)
- Abuso de direito

SUMÁRIO:

I - A caducidade-preclusiva pelo decurso do prazo geral máximo da concessão impõe-se, inevitavelmente, à entidade administrativa competente. É, pois, um acto vinculado, por ter a sua raiz mergulhada na circunstância de esse efeito caducitário decorrer directamente ope legis, sem qualquer interferência do papel da vontade do administrador. É da lei que advém fatalmente a caducidade.

II - Os princípios gerais de direito administrativo constituem limites intrínsecos da actividade administrativa discricionária e não vinculada.

III - Os artigos 6º, 7º e 103º da Lei Básica não apresentam qualquer relevância para os casos em que é declarada administrativamente a caducidade de uma concessão e em que, consequentemente, não está em causa propriedade privada da concessionária.

IV - O abuso de direito, para vingar no recurso contencioso, impõe a prova de um exercício ilícito de direito, implica a demonstração de que o titular do direito o exerceu em termos clamorosamente ofensivos da justiça e que excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art. 334º, do CC). E não preenche estes requisitos a actuação administrativa que se limita, como no caso vertente, a cumprir as cláusulas do contrato e a lei e a acatar as normas imperativas de direito público sobre o regime legal das concessões.


Proc. nº 571/2018

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
“SOCIEDADE DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO NGA KENG VAN, S.A.”, em chinês, “雅景灣建築置業股份有限公司” e, em inglês, “Nga Keng Van Property Investment Company Limited”, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis, sob o n.º … (SO), com sede em Macau, na…, ------
Interpõe neste TSI recurso contencioso -------
Do despacho do Chefe do Executivo, de 3 de Maio de 2018, tornado público pelo Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 22/2018, publicado no Boletim Oficial n.º 20, II Série, de 16 de Maio de 2018, ----
Que declarou a caducidade da concessão do terreno com a área de 4.422m2, designado por lote 8 da Zona C do empreendimento denominado “Fecho da Baía da Praia Grande”, situado na península de Macau, descrito da Conservatória do Registo Predial sob o n.º 22518, a fls. 170, do Livro B49K, nos termos do Parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 14 de Novembro de 2016.
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Na petição inicial, formulou as seguintes conclusões:
“1. O acto ora recorrido é o Despacho do Chefe do Executivo, de 3 de Maio de 2018, tornado público pelo Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 22/2018, publicado no Boletim Oficial n.º 20, II Série, de 16 de Maio de 2018, que declarou a caducidade da concessão a favor da Recorrente do terreno com a área de 4.422m2, designado por lote 8 da Zona C do empreendimento denominado “Fecho da Baía da Praia Grande”, situado na península de Macau, descrito da Conservatória do Registo Predial sob o n.º 22518, a fls. 170, do Livro 849K, que ficou inscrito a favor da Recorrente sob a inscrição n.º 26671F;
2. Por escritura outorgada na Direcção dos Serviços de Finanças de 30 de Julho de 1991 foram concedidos por arrendamento à Sociedade de Empreendimento Nam Van, S.A. (“Nam Van”) vários lotes de terreno nas zonas A, B, C e D do empreendimento denominado «Fecho da Baía da Praia Grande», conforme consta dos Despachos n.º 73/SATOP/92, publicado no Boletim Oficial n.º 27, de 6/7/1992, e n.º 71/SATOP/92, publicado no Boletim Oficial n.º 33, de 18/8/1992;
3. Na data da concessão, todos os lotes de terreno que constituem as actuais zonas A, B, C e D estavam submersos, ficando como encargos especiais da Nam Van proceder à construção dos aterros e das numerosas e complexas infraestruturas;
4. A Nam Van a quem foram entregues os terrenos, a conquistar ao mar, por 25 anos, construiu todas as dispendiosas infraestruturas, nomeadamente, os aterros das zonas A, C e D, necessárias ao empreendimento, os dois lagos artificiais com uma ilha ecológica, sistemas de reciclagem de águas, diques, muralhas, estações elevatórias, redes de drenagens de águas residuais e pluviais, redes de distribuição de água e ligação à rede geral, redes de distribuição de energia eléctrica, arruamentos, zonas pedonais e parques de estacionamento para uso público e do Governo;
5. Foi a Nam Van que procedeu ao desvio de todos os esgotos directamente despejados na zona da Praia Grande e que eram há muito conhecidos como um foco de vários e gravíssimos problemas ambientais, o que foi feito através de um sistema de emissários ligados a esta de bombagem;
6. As infraestruturas mencionadas nos contratos de concessão dos lotes Fecho da Baía da Praia Grande e nas respectivas revisões, só existem porque a Nam Van e as actuais concessionárias, a que foram transmitidos todos os direitos resultantes das concessões, os construíram e mantiveram, suportando todos os custos;
7. Em 23 de Julho e 25 de Novembro de 1999, foram realizadas as recepções provisórias das Infraestruturas, respectivamente, da Zona B e das Zonas C, D e dos Lagos.
8. A 17 de Fevereiro de 2000, foram entregues à Câmara Municipal de Macau Provisória as obras de infraestruturas realizadas, que só se tornaram existentes a partir do momento das recepções provisórias;
9. A Nam Van utilizou os primeiros 10 anos do prazo da concessão a cumprir os encargos especiais previstos nos contratos de concessão, a construir os aterros e todas as infraestruturas para as Zonas A, B, C e D;
10. Em 1 de Novembro de 1994, a Nam Van requereu ao Governador de Macau autorização para a transmissão onerosa, a favor da ora Recorrente, dos direitos resultantes da concessão por arrendamento do lote supra identificado, justificando o pedido com o facto de dominar o capital social da sociedade e de assegurar o desenvolvimento conjunto dos empreendimentos a desenvolver em cada um dos lotes da Zona C;
11. Doutro passo, o Presidente do Conselho de Administração da Nam Van, Dr. X, recebeu, em 13 de Novembro de 2002, um pedido do Governo para que as subsidiárias da X, Sociedade de Investimento Imobiliário X, S.A.R.L., Sociedade de Investimento Imobiliário X, S.A.R.L., Sociedade de Investimento Imobiliário X, S.A.R.L. e Sociedade de Investimento Imobiliário X, S.A.R.L., desistissem das concessões dos lotes B/b, B/f, B/g e B/1 da Zona B, cada um com uma área de 6.480m2, e com uma área total de 25.920m2, em prol do desenvolvimento económico da Região Administrativa Especial de Macau (“RAEM”);
12. Para viabilizar a construção das unidades hoteleiras e casinos das novas concessionárias e subconcessionárias de jogos de fortuna ou azar e outros jogos em casino, nomeadamente os Hotéis e Casinos X Macau e X Macau, sem que daí resultassem quaisquer contrapartidas ou mais-valias financeiras pela perda dos lotes de terreno com a dita área total de 25.920m2 e com 898.774m2 de área de construção;
13. Como contrapartida pelas desistências, o Governo garantiu à Nam Van e às suas subsidiárias, incluindo a Recorrente, que iria rever os planos de pormenor das Zonas C e D, para nelas incluir as áreas dos quatro lotes que reverteram para a RAEM;
14. As desistências foram negociadas e aceites pelos Despachos do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.ºS 33/2004, 34/2004, 35/2004 e 36/2004 de 1 de Abril, publicados no B.O. n.º 14, II Série, de 14 de Abril de 2004;
15. Embora os contratos de desistência, anexo aos Despachos do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 33/2004 a 36/2004, de 1 de Abril, contenham, no número 4 do artigo primeiro, a obrigação de o Governo conceder um ou mais terrenos localizados nas zonas “C” ou “D” do Plano da Baía dá Praia Grande ou em zona com uma área de construção e capacidade “aedificandi” equivalente, a verdade é que, até esta data, não se concretizou o compromisso assumido formalmente pelo Governo;
16. Por Despacho do STOP n.º 85/2001, de 5 de Setembro de 2001, foi autorizada a transmissão onerosa, a favor da ora Recorrente, dos direitos resultantes da concessão por arrendamento do lote supra identificado;
17. A transmissão dos direitos resultantes da concessão só ocorreu em 2001, por ter sido apenas nesse ano que os aterros e as demais infra-estruturas da Zona C exibiram condições de solidez e segurança da pavimentação dos aterros, conforme consta do auto de recepção definitiva, de 4 de Dezembro de 2001, como talos lotes da Zona C só aproveitados e desenvolvidos depois das recepções definitivas de todas as infraestruturas;
18. O contrato de transmissão a favor da Recorrente estabelece que a concessão por arrendamento é válida até 31 de Julho de 2016 e que o aproveitamento do terreno deve ocorrer no prazo global de 72 meses, contado a partir de 18 de Agosto de 1999, ou seja quando ainda não se sabia a data em que seria realizada a recepção definitiva;
19. Em 15 de Março Dezembro de 2006, a Recorrente apresentou um requerimento acompanhado de um estudo prévio de aproveitamento conjunto para os lotes C8, C9, C10 e C11, requerimento que foi registado com a referência T-2108, ao qual foi manuscrita uma nota que, entre outros, refere para se solicitar comunicação do despacho de aprovação para efeitos de revisão do contrato de concessão;
20. Pela comunicação de serviço interno n.º 355/DPU/2006, de 11 de Abril de 2006, foram emitidos dois exemplares de Planta de Alinhamento Oficial, plantas essas que têm a nota da dispensa do cumprimento da Portaria n.º 69/91/M e que, por comunicações internas, datadas, respectivamente, de 25 de Abril de 2006 e de 19 de Maio de 2006, foram novamente emitidas, primeiro para assinalar os limites de terreno de todos os lotes e, por último, para cancelar o condicionamento de ILOS: 25%;
21. Após resposta da CEM, IACM e Corpo de Bombeiros, o projecto foi considerado passível de aprovação, o que mereceu a concordância do Director da DSSOP, conforme despacho datado de 19 de Maio de 2006;
22. Seguidamente, pela comunicação interna n.º 129/2317.02/2007, de 23 de Março de 2007, são solicitados os projectos de arquitectura considerados passíveis de aprovação e informa-se que, nos termos da Planta de Alinhamento Oficial n.º 2006A030(a) (“PAO”), de 25 de Abril de 2006, é fixada uma cota altimétrica máxima de 150m;
23. Acontece que, como se pode verificar pela consulta do processo administrativo, desde essa data, os projectos ficaram parados, não obstante as várias solicitações pela Recorrente e restantes concessionárias, uma vez que, segundo a Administração, a revisão dos contratos de concessão e respectivos projectos seria feita após a aprovação do novo plano de intervenção urbanística das Zonas C e D da Baía da Praia Grande, que definiria o novo loteamento e condicionantes urbanísticas para cada lote, processo que contemplaria a apreciação do pedido de prorrogação do prazo de aproveitamento, conforme consta do Parecer da Comissão de Terras n.º 130/2016, anexo à notificação do acto recorrido;
24. Segundo a Proposta n.º 371/DSODEP/2016, de 12 de Setembro de 2016, os processos de autorização de TODOS os empreendimentos das Zonas C e D ficaram suspensos até que fosse aprovado o novo plano de intervenção urbanística das Zonas C e D do Fecho da Baía da Praia Grande;
25. De onde se conclui que, somente após aprovação desse plano de reordenamento das Zonas C e D do Fecho da Baía da Praia Grande, teria lugar a revisão dos contratos de concessão dos lotes C8 a C11, bem como a aprovação dos pedidos de prorrogação dos prazos de aproveitamento;
26. Com a conduta supra descrita, a Administração aceitou que se encontrava fundamentadamente justificado o não aproveitamento dos terrenos até 18 de Agosto de 2005, nos prazos referidos na cláusula quinta de cada um dos contratos de concessão;
27. Ao longo dos anos, como supra referido, as concessionárias interpelaram a Administração para que procedesse com brevidade à execução e aprovação do plano urbanístico das Zonas C e D do Fecho da Baía da Praia Grande e autorizasse, como se comprometeu, à revisão dos contratos de concessão por arrendamento, com a prorrogação dos prazos de aproveitamento e de concessão;
28. Como agora se sabe, o plano de intervenção urbanística das Zonas C e D do Fecho da Baía da Praia Grande foi concluído pela DSSOPT em Novembro de 2014 mas nunca chegou a ser aprovado;
29. Surpreendentemente, porém, a Proposta n.º 371/DSODEP/2016, concluiu que tendo chegado ao seu termo os prazos das concessões, não podem ser prorrogados os prazos de aproveitamento, nem revistos os contratos de concessão, independentemente da culpa da entidade concedente;
30. Acrescenta a Proposta n.º 371/DSODEP/2016, de 21 de Setembro de 2016, que os processos de autorização de todos os empreendimentos das Zonas C e D estavam suspensos até que fosse aprovado o novo plano de intervenção urbanística das Zonas C e D do Fecho da Baía da Praia Grande;
31. Explica a Proposta n.º 371/DSODEP/2016 que, em 15 de Julho de 2005, o “Centro Histórico de Macau” foi inscrito na lista do património mundial e que a referida suspensão se deve ao facto de as Zonas C e D se situarem a Sul do mesmo;
32. A Recorrente não detectou qualquer restrição sobre o aproveitamento para construção de imóveis na Zona Sul do Centro Histórico de Macau, nomeadamente dos empreendimentos nas Zonas C e D, que tenha sido ditada pela UNESCO para inscrição do “Centro Histórico de Macau” na lista do património mundial;
33. O documento da UNESCO tem uma descrição das propriedades classificadas e das áreas a proteger e define como “buffer zones” as áreas assinaladas na proximidade do património classificado que sofrem restrições de uso, para garantia de uma zona de protecção, ficando o aproveitamento de terrenos nas ditas “buffer zones” sujeito a restrições especiais;
34. Na planta da UNESCO, não existem monumentos classificado nas Zonas C e D e as Zonas C e D não fazem parte da “buffer zone” assinalada, estando totalmente libertas no que respeita à classificação da UNESCO;
35. Mais, a Igreja da Penha não tem valor arquitectónico histórico e não está classificada como património mundial pela UNESCO;
36. Mesmo sem plano de intervenção urbanística, a Administração construiu, no lote C2, o novo “Edifício Provisório dos Juízos Criminais do Tribunal Judicial de Base”, com 3 pisos de cave, oito pisos acima do solo, uma área de 14.300m2 e uma altura de 35 metros;

37. O artigo 48.º da Lei de Terras estatui que as concessões provisórias não podem ser renovadas, tendo a Entidade Recorrida extrapolado essa regra para declarar a caducidade da concessão, não fundamentando o percurso percorrido para chegar a essa conclusão, o que consubstancia vício de falta de fundamentação, nos termos do artigo 21.º, n.º 1, al) c do CPAC;
38. O efeito extintivo do direito da concessionária não se produz automaticamente pela mera ocorrência de um facto objectivo, exigindo-se o juízo avaliativo do órgão público competente para declarar a caducidade, avaliação essa que deve ponderar todos os interesses concretamente em causa, públicos e privados;
39. Há uma exigência mínima de procedimentalização para a prática do acto declarativo da caducidade nos termos do Código de Procedimento Administrativo da RAEM. Nesta procedimentalização recai sobre o órgão público competente o dever vinculado de verificar e avaliar as causas de caducidade, fazendo um juízo sobre a conduta do particular/sujeito privado, pois só assim poderá averiguar se há incumprimento e em que medida o incumprimento é imputável ao particular;
40. Mesmo que verificadas as causas de caducidade, incumbe à Administração o poder-dever de avaliar, ponderar e decidir a declaração, ou não, da caducidade, no sentido de apurar se se encontram verificados os pressupostos de facto e de direito da caducidade - legais, regulamentares ou contratuais;
41. Para além disso, deverá ser averiguado se ocorrem, ou não, causas estranhas à vontade do sujeito privado, que, inclusivamente, podem ter por fonte condutas da própria Administração; ou, ainda, causas de força maior ou outro tipo de circunstâncias alheias à vontade do particular/sujeito privado;
42. O artigo 44.º da Lei de Terras estipula que a concessão por arrendamento é inicialmente dada a título provisório, por prazo a fixar em função das características da concessão, e só se converte em definitiva se, no decurso do prazo fixado, forem cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas e o terreno estiver demarcado definitivamente;

43. Esta noção legal de concessão provisória explica, com clareza, que o acto que declare a caducidade de uma concessão provisória nunca pode ter exclusivamente por fundamento o mero decurso do tempo;
44. Saber “se, no decurso do prazo fixado, forem cumpridas as cláusulas de aproveitamento mínimo previamente estabelecidas”, implica, pressupõe e exige que a Administração avalie efectivamente o comportamento contratual do concessionário, para, de tal modo, concluir pelo cumprimento ou incumprimento daquelas cláusulas;
45. Da leitura deste preceito em conjugação com a do artigo 52.º, fácil é de concluir que a declaração de caducidade da concessão provisória exige dois pressupostos: (i) o decurso do prazo fixado e (ii) a diligência contratual do concessionário no cumprimento das cláusulas de aproveitamento mínimo; pelo que, na falta de avaliação quanto ao cumprimento do contrato de concessão, não pode a Administração declarar a caducidade da concessão de terreno apenas com base no decurso do prazo fixado no contrato;
46. Face aos supracitados factos documentalmente provados, dúvidas não restam que a Recorrente foi impedida, pela Administração, de aproveitar os terrenos concedidos no prazo contratualmente fixado;
47. É este o douto entendimento dos Professores Doutores Fernando Alves Correia e Licínio Lopes, Catedráticos da Universidade de Coimbra, que estiveram em Macau, entre os dias 17 e 20 de Outubro de 2016, a convite do Centro de Estudos Jurídicos e Judiciários da RAEM, para um Seminário sobre o tema;
48. Ao afirmar que a caducidade das concessões opera por mero decurso do prazo, a Administração faz tábua rasa do seu comportamento anterior e viola os princípios da boa fé e da igualdade, nomeadamente porque, nos Despachos do STOP n.º 20/2006, de 20 de Fevereiro de 2006, n.º 8/2009, de 3 de Fevereiro de 2009, e n.º 89/2007, de 23 de Outubro de 2007, publicado no BO n.º 44, II Série, de 31 de Outubro de 2007, considerou verificada a falta de culpa dos concessionários no cumprimento dos prazos, isto quando as previsões relevantes da antiga Lei de Terras, citadas nos Pareceres da Comissão de Terras referidos naqueles três Despachos são iguais às da Lei de Terras em vigor;
49. A acção de indemnização não pode ser a única resposta para o incumprimento do contrato por culpa não imputável à Recorrente, pois esta acção não a irá colocar numa situação equivalente à que estaria se a Entidade Recorrida tivesse cumprido o contrato;
50. A adopção de critérios diferentes para situações idênticas, dando por verificada a falta de culpa noutras concessões, para agora entender que a caducidade opera independentemente da falta de culpa da Recorrente constitui abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, e uma flagrante violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 5.º do CPA, e no artigo 25.º da Lei Básica;
51. Em total contradição com o disposto na alínea 9) do artigo 2.º da Lei n.º 10/2013, que aprovou a Lei de Terras, e que consagra o princípio da segurança jurídica, em garantia da estabilidade do regime legal vigente e o respeito pelas situações jurídicas validamente constituídas;
52. Nem se diga que não é o direito de propriedade que está em causa, pois o que a Recorrente adquiriu foi o direito do uso da propriedade, também consagrado e protegido naquele preceito fundamental da lei de Macau;
53. Entende a jurisprudência que o contrato pelo qual alguém é autorizado a fazer construções ou plantações em terreno alheio, conservando a propriedade delas, embora seja denominado locação, porque é temporário e o pagamento do solário se confunde com a renda, deverá ser classificado como direito de superfície e o Prof. Doutor Fernando Alves Correia defende que a concessão por arrendamento de terrenos do Estado aproxima-se do direito de superfície de duração temporária;
54. A tutela da confiança pressupõe que exista uma actuação de um sujeito de direito que crie essa mesma confiança, quer na manutenção de uma situação jurídica, quer na adopção de outra conduta; uma situação de confiança justificada do destinatário na actuação de outrem; a efectivação de um investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento de acções ou omissões, que podem ou não ter tradução patrimonial, na base da situação de confiança; o nexo de causalidade entre a actuação geradora de confiança e a situação de confiança, por um lado e entre a situação de confiança e o investimento de confiança, por outro;
55. Se a Administração puder criar obstáculos sucessivos, ou omitir a prática de actos relevantes, de modo a deixar passar o prazo das concessões, é evidente que é colocado em causa um princípio fundamental de direito, o princípio da boa fé;
56. Com essa actuação, a Administração usa o instituto jurídico da caducidade como uma punição sem merecimento, desembocando num efeito jurídico próximo do da expropriação sem compensação, em clara violação do espírito do artigo 103.º da Lei Básica;
57. A incapacidade de tomar decisões, que se verifica neste caso, causou e causa enormes prejuízos à Recorrente, afecta negativamente a imagem de Macau, como centro de negócios, bem como a credibilidade do Governo da RAEM, que mostra ser incapaz de gerir processos e de cumprir as suas obrigações, e ofende o princípio da decisão e da eficiência a que aludem os artigos 11.º e 12.º do CPA;
58. A Administração criou legítimas expectativas na Recorrente, tendo esta incorrido em avultadas despesas;
59. Em respeito pelos princípios da boa fé, na sua vertente da tutela da confiança, da decisão e da eficiência da Administração, previstos nos artigos 7.º, 8.º, 11.º e 12.º do CPA, o Governo devia ter assumido as suas responsabilidades, aprovado em tempo o plano urbanístico de que disse depender as revisões das concessões e as prorrogações dos prazos de aproveitamento;
60. No caso vertente, dúvidas não restam de que a Administração violou a confiança que nela foi depositada;
61. A declaração de caducidade por parte da entidade recorrida, quando sempre da sua conduta resultou que não o iria fazer e sendo ela quem impediu a revisão do contrato de concessão, resulta na violação do princípio da boa fé, e consubstancia um abuso de direito, vg. artigos 8.º, n.º 2, al. a) do Código do Procedimento Administrativo e 326.º do Código Civil, na modalidade de venire contra factum proprium, princípio que se mostra violado;
62. A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança; esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé;
63. O artigo 41.º da Lei de Terras estabelece, quanto ao regime jurídico aplicável à concessão por arrendamento, que a “concessão por arrendamento e o subarrendamento de terrenos urbanos ou de interesse urbano rege-se pelas disposições da presente lei e diplomas complementares, pelas cláusulas dos respectivos contratos e, subsidiariamente, pela lei civil aplicável”, e o artigo 220.º, preceitua que, em tudo quanto não estiver, expressamente, previsto na presente lei, são aplicáveis subsidiariamente, consoante a natureza das matérias, o Código do Procedimento Administrativo, o Decreto-Lei n.º 52/99/M, de 4 de Outubro, o Código Penal, o Código de Processo Penal e o Código do Registo Predial;
64. A menção ao Decreto-Lei n.º 52/99/M (Regime Geral das Infracções Administrativas) é indiciador de que o incumprimento da Lei de Terras implica a aplicação de sanções, como tal, de que a caducidade prevista nesta Lei é a caducidade-sanção e não a caducidade preclusiva. 65. O artigo 99.º da Lei de Terras estipula a sujeição do concessionário às vinculações prescritivas do plano urbanístico que vigore na zona onde o terreno concedido se encontre situado e a cumprir as condições que lhe sejam impostas para a racional utilização dos recursos naturais do terreno concedido;
66. O artigo 55.º da Lei do Planeamento Urbanístico determina que, quando a execução de um plano urbanístico colida com a finalidade da concessão ou com o aproveitamento de um terreno concedido, o concessionário tem direito, nos termos da Lei de Terras, a requerer a revisão do contrato de concessão ou, tratando-se de concessão onerosa, a transmissão das situações resultantes da concessão, sem prejuízo de ser indemnizado pelos danos que tenha sofrido, preceito que se considera violado;
67. De resto, o artigo 48.º, n.º 1 da Lei de Terras só dispõe sobre a renovação da concessão provisória, não existindo nenhum obstáculo legal que impossibilite a prorrogação do prazo da concessão;
68. Como acima se referiu, a suspensão do procedimento para a aprovação do projecto de arquitectura e para a revisão dos contratos de concessão tem origem na decisão do Governo de proteger o Centro Histórico de Macau;
69. A este propósito, o artigo 55.º da Lei do Planeamento Urbanístico determina que, quando a execução de um plano urbanístico colida com a finalidade da concessão ou com o aproveitamento de um terreno concedido, o concessionário tem direito, nos termos da Lei de Terras, a requerer a revisão do contrato de concessão ou, tratando-se de concessão onerosa, a transmissão das situações resultantes da concessão, sem prejuízo de ser indemnizado pelos danos que tenha sofrido;
70. Permite o artigo 55.º, n.º 2,1), (3), ii) e (4) da Lei de Terras a dispensa de concurso público, quando a concessão se funde no interesse público que favoreça o desenvolvimento da RAEM;
71. Demorar anos sem aprovar o plano de intervenção urbanística, de que dependia a revisão do contrato de concessão e a execução do projecto de construção que a entidade recorrida considerou passível de aprovação e, no final do prazo das concessões, ignorar todos actos praticados e vir fazer apelo à caducidade dessas concessões é inaceitável, e demonstra a falta de razoabilidade a que alude a al. d) do n.º 1 do artigo 21.º do Código de Processo Administrativo Contencioso;
72. Ainda assim, com o reconhecimento expresso dos direitos que assistem às concessionárias, nomeadamente à Recorrente, a Administração provocou o efeito jurídico impeditivo da caducidade, previsto no artigo 323.º, n.º 2 do Código Civil;

73. Este preceito determina que quando se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal, o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deve ser exercido impede a caducidade;
74. Ora, tendo a Administração reconhecido os direitos da concessionária de ver aprovado o projecto que apresentou e da revisão do contrato de concessão que requereu, não pode, agora, vir a mesma Administração afirmar que a caducidade ocorreu ipsu iure, escudando-se nos supra referidos preceitos da Lei de Terras, em clara violação do artigo 8.º do Código Civil, que proíbe o intérprete de se cingir à letra da lei;
75. Com tal interpretação, a Administração desconsiderou sobretudo a unidade do sistema jurídico a que alude o referido artigo 8.º, em clara violação pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da boa-fé, da decisão e da eficiência a que se encontra obrigada nos termos da Lei Básica e do CPA;
76. Num claro exercício de abuso do direito, proibido nos termos do artigo 326.º do Código Civil;
77. O acto recorrido padece de falta de fundamentação, nos termos do artigo 21.º, n.º 1, al. c) do CPAC; viola o artigo 323.º, n.º 2, o artigo 326.º do Código Civil, os princípios da igualdade, boa fé, na sua vertente da tutela da confiança, da decisão e da eficiência da Administração, previstos nos artigos 5.º, 8.º, 11.º e 12.º do CPA; o artigo 55.º da Lei do Planeamento Urbanístico e os artigos 7.º, 25.º e 103.º da Lei Básica da RAEM, incorrendo também em erro manifesto nos pressupostos de facto e de direito, nos termos previstos no artigo 21.º, n.º 1, al. d), do CPAC, devendo, por isso, ser anulado de acordo com o artigo 124.º do CPA.
Termos em que, e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por o acto recorrido estar ferido de ilegalidade, devendo por isso ser anulado, com as consequências legais. “
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Contestou a entidade recorrida, pugnando pela improcedência do recurso em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
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Não houve lugar a produção de prova testemunhal, mas do despacho que a julgou desnecessária foi deduzida reclamação pela recorrente contenciosa, cujo conhecimento foi relegado para a decisão final.
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Ambas as partes apresentaram alegações facultativas, reiterando no essencial as posições anteriormente assumidas nos autos.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“I. Quanto à reclamação para a conferência:
A recorrente, ora reclamante, defende o entendimento de que o acto recorrido, que declarou a caducidade pelo decurso do prazo contratual, não podia ater-se somente à constatação do termo do prazo contratual e à falta de aproveitamento, estando também obrigado a apreciar as causas do não aproveitamento culposo, bem como as causas que impediram o decurso do prazo contratual. Daí que sustente a utilidade da prova testemunhal que ofereceu, cuja produção o despacho reclamado rejeitou.
Como dissemos a fls. 171 verso a 172, a questão não é nova, vindo o Tribunal de Última Instância a firmar doutrina segundo a qual, na declaração de, caducidade pelo decurso do prazo da concessão sem aproveitamento do terreno, não há que apurar, em sede de recurso contencioso, se houve culpa e quem por ela é responsabilizável.
Atendendo a que o caso em escrutínio nos presentes autos configura uma declaração de caducidade pelo decurso do prazo da concessão sem aproveitamento do terreno, e dado que a matéria fáctica sobre a qual se pretendia produzir prova radica essencialmente na questão da culpa, não terá interesse para os fins do recurso, à luz daquela perspectiva adoptada pelo Tribunal de Última Instância, a produção da requerida prova, tal como então afirmámos.
Reiteramos esse posicionamento, a partir do qual ora nos pronunciamos pela improcedência da reclamação.
II. Quanto ao recurso contencioso:
Constitui objecto do presente recurso contencioso o despacho de 3 de Maio de 2018, da autoria do Exm.º Chefe do Executivo, que declarou a caducidade da concessão por arrendamento do terreno com a área de 4.422 m2, situado na península de Macau, designado por lote C8 do “Fecho da Baía da Praia Grande”.
Na sua petição de recurso e nas alegações facultativas, a recorrente, “Sociedade de Investimento Imobiliário Nga Keng Van, S.A.”, atribui ao acto diversos vícios, nomeadamente o de falta de fundamentação, erro nos pressupostos de facto, devido a errada interpretação da natureza legal da caducidade na Lei de Terras, erro nos pressupostos de direito, com violação dos artigos 323.º, n.º 2, do Código Civil, violação dos princípios da igualdade, da boa-fé e da proporcionalidade, e violação do artigo 55.º da Lei do Planeamento Urbanístico e dos princípios da decisão e eficiência, abuso de direito e violação da Lei Básica.

Por seu turno, a autoridade recorrida refuta tais vícios, asseverando a legalidade do acto.
Vejamos quanto à alegada falta de fundamentação.
A recorrente diz que o despacho recorrido assenta nos artigos 44.º, 47.º, n.º 1, 48.º e 215.º, da Lei de Terras. Como, em seu entender, tais normativos nada têm a ver com caducidade e a Administração não explicou o percurso que trilhou para, a partir desses normativos, concluir pela caducidade, assevera que o acto padece de falta de fundamentação.
É claro que isto não integra o alegado vício de falta de fundamentação. Uma coisa é não fundamentar, ou fundamentar deficientemente, podendo nesta hipótese falar-se de vício de forma; outra coisa é fundamentar mal ou erradamente, mediante invocação de normas não pertinentes para o caso, situação que, podendo relevar em matéria de vícios substanciais, já não cauciona a invocação de vício de forma.
Pois bem, o que está em causa é a eventualidade de existência de erro nas normas seleccionadas para justificar a caducidade, o que, como se disse, não integra o alegado vício de forma. De resto, analisando o acto, que apropria os fundamentos do parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, o qual, por sua vez, também remete para o parecer da Comissão de Terras, apura-se que está profusamente fundamentado, não tendo cabimento a invocação de falta de fundamentação.
Improcede, por isso, este fundamento do recurso.
Vem também invocado erro nos pressupostos de facto, por errada visão da natureza legal da caducidade na Lei de Terras.
A recorrente sustenta, na esteira de parecer dos Profs. Fernando Alves Correia e Licínio Lopes, que o acto adopta uma errada interpretação da natureza legal da caducidade nas relações contratuais, afirmando que nas relações entre a Administração e os particulares a caducidade tem sempre natureza sancionatória e apenas será declarada quando houver culpa dos particulares. No caso, por não ter havido culpa sua, mas sim da Administração, a recorrente acha que o acto padece de erro sobre os pressupostos de facto.
Não cremos que assim seja, continuando a entender, na esteira da jurisprudência do Tribunal de Última Instância e da jurisprudência largamente maioritária do Tribunal de Segunda Instância, que tanto a caducidade sanção como a caducidade preclusiva podem ocorrer no âmbito das relações contratuais criadas ao abrigo da Lei de Terras. Casos há em que o legislador não abstrai da culpa para que possa ser declarada a caducidade, como sucede nas hipóteses abrangidas pelo artigo 166.º da Lei de Terras. Mas quando esteja em causa o decurso do prazo inicial da concessão, sem que esta se tenha convertido em definitiva por via do aproveitamento, crê-se que opera a caducidade preclusão, independentemente dos motivos que estiveram na base do não aproveitamento, estando o Chefe do Executivo vinculado a proferir o inerente despacho a declará-la. Esta última hipótese é a que se nos depara no caso em apreço, pelo que ao acto não interessa a culpa, cujo não apuramento não releva, pois, como erro nos pressupostos.
Improcede também este fundamento do recurso.
Em sede de erro nos pressupostos de direito, a recorrente joga com o artigo 323.º, n.º 2, do Código Civil, cuja violação ou errada interpretação teria levado a Administração a concluir, indevidamente, pelo decurso do prazo da caducidade.
A recorrente argumenta que a Administração teria reconhecido o direito da concessionária ao desenvolvimento do terreno, o que, nos termos daquele inciso, constitui impedimento à verificação da caducidade.
Ora bem, o direito ao desenvolvimento ou aproveitamento do terreno é um direito resultante do contrato e que, naturalmente, está presente no normal relacionamento que as partes contratuais vão mantendo ao longo da duração do contrato. Isso não significa que a circunstância de a Administração actuar tomando por base aquele direito do particular ao aproveitamento e tentando proporcionar-lhe a possibilidade de aproveitar o terreno, respondendo aos requerimentos deste e prevendo a conjugação futura de condições para aprovação dos projectos, isso não significa, dizíamos, que a Administração reconheça o direito ao aproveitamento para além do normal prazo de caducidade. É este o reconhecimento que o artigo em causa pressupõe, e que, como é óbvio, não ocorreu nem resulta da matéria alegada pela recorrente. Duvida-se, aliás, que um hipotético reconhecimento nesse sentido pudesse ser validamente outorgado pela Administração, dado o regime e a finalidade das concessões.
Claudica, pois, o alegado erro nos pressupostos de direito.
Suscita também a recorrente a violação dos princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da igualdade.
Estão em causa princípios cuja acuidade releva no exercício de poderes discricionários. Ora, como vem sendo repetidamente afirmado pela jurisprudência dos tribunais superiores de Macau, verificados os pressupostos falta de aproveitamento e decurso do prazo da concessão provisória, a Administração está estritamente vinculada a declarar a caducidade dos contratos de concessão. Foi o que sucedeu no presente caso. Estando em causa, como estava, o exercício de poder vinculado, aqueles princípios mostram-se inoperantes em termos de poderem influir na validade do acto.
Também este fundamento do recurso improcede.
Vem ainda suscitada a violação do artigo 55.º da Lei do Planeamento Urbanístico e dos princípios da decisão e eficiência.

Constata-se, todavia, que, em bom rigor, tais vícios não são assacados ao acto aqui impugnado, nem a etapas do procedimento de declaração de caducidade, antes se reportam à falta de aprovação dos planos de pormenor que deviam substituir os planos criados pelas Portarias 68/91/M e 69/91/M revogadas pelo Despacho do Chefe do Executivo n.º 248/2006.
Trata-se, como é bom de ver, de vicissitudes relativas a uma actividade regulamentar, diversa da actividade de decisão administrativa casuística que ora está em causa, e que não revelam apetência para interferir directamente nesta.
Improcedem estes vícios.
Também vem alegado que o acto incorreu em abuso de direito.
Como se ponderou no acórdão de 19 de Outubro de 2017, do Tribunal de Segunda Instância, no âmbito do recurso contencioso n.º 179/2016, o abuso de direito, para vingar no recurso contencioso, impõe a prova de que o titular de um direito o exerceu em termos clamorosamente ofensivos da justiça e excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, situação que não resulta preenchida quando a actuação administrativa vai dirigida ao cumprimento das cláusulas do contrato e ao acatamento das normas imperativas de direito público sobre o regime legal das concessões. Também o Tribunal de Última Instância, no seu acórdão de 23 de Maio de 2018, tirado no processo n.º 7/2018, alvitrou que a declaração de caducidade pelo decurso do prazo da concessão sem o aproveitamento do terreno constitui um poder-dever, prescrito por normas imperativas, pelo que não pode traduzir qualquer abuso de direito.
Soçobra também este fundamento do recurso.
Vem ainda invocada a violação dos artigos 7.º 25.º e 103.º da Lei Básica.
Com excepção do artigo 25.º, que proclama o princípio da igualdade, aliás já atrás aflorado como inoperante para a invalidação do acto, trata-se de normas respeitantes aos solos e sua gestão e ao direito de propriedade e compensação em caso de expropriação legal, não se divisando como podem sair violadas através do recorrido acto de declaração de caducidade.
A Lei Básica manda proteger o direito à propriedade privada, impõe o reconhecimento e protecção dos contratos de concessão de terras celebrados antes do estabelecimento da RAEM e que se prolonguem para além da data de transferência de soberania e garante a compensação em caso de expropriação legal. Mas relega, para a lei, a forma e as condições que moldam essa protecção e garantia, como melhor se vê das normas pertinentes (artigos 6.º, 7.º, 103.º e 120.º). Pois bem, no que respeita aos terrenos pertença do antigo Território de Macau e da actual RAEM - terrenos do Estado -, não há concessões por tempo indeterminado. Há prazos de concessão e há regras para o aproveitamento dos terrenos. Esses prazos e regras estão disciplinados por lei e, na maioria dos casos, até são vertidos para os contratos de concessão. Portanto, a protecção conferida pela Lei Básica é uma protecção subordinada aos prazos e regras legalmente instituídos, os quais têm como pano de fundo a finalidade social dos direitos associados ao uso da terra, o que demanda o seu efectivo aproveitamento nos prazos que o legislador teve por razoáveis, adentro do seu poder de conformação. Daí que a impossibilidade de renovação das concessões provisórias, que resulta da nova Lei de Terras, como já resultava da antiga lei de Terras, em nada afronte os princípios vertidos naqueles artigos da Lei Básica, que não resulta violada pela circunstância da existência da modalidade de caducidade preclusiva.
Soçobra também este vício.
Ante o exposto, o nosso parecer vai no sentido de ser recusado provimento ao recurso.”
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão bem representadas.
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III – Os Factos
Julgamos assente a seguinte factualidade:
1 - Em conformidade com o Despacho n.º 203/GM/89, publicado no 4.º Suplemento ao Boletim Oficial de Macau n.º 52, de 29 de Dezembro de 1989, e por escritura de 30 de Julho de 1991, exarada a fls. 4 e seguintes do livro n.º 285 da Direcção dos Serviços de Finanças, com as alterações introduzidas pelos contratos de revisão titulados pelos Despachos n.ºs 73/SATOP/92, 57/SATOP/93 e 56/SATOP/94, publicados respectivamente no Boletim Oficial de Macau n.º 27, de 6 de Julho de 1992, no Boletim Oficial de Macau n.º 17, de 26 de Abril de 1993 e no Boletim Oficial de Macau n.º 22, II Série, de 1 de Junho de 1994, foram concedidos por arrendamento a favor da Sociedade de Empreendimentos X, S.A., vários lotes de terreno inseridos nas zonas A, B, C e D do empreendimento denominado «Fecho da Baía da Praia Grande», situadas na Baía da Praia Grande e nos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE).

2 - Nos termos do disposto na cláusula segunda do contrato de concessão titulado pela mencionada escritura, o arrendamento era válido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da outorga da mesma.
3 - De acordo com o estabelecido no artigo segundo do contrato de revisão de concessão titulado pelo Despacho n.º 56/SATOP/94, através do qual foram concedidos onze lotes de terreno da zona C e dois lotes de terreno da zona O, o prazo do arrendamento expirou em 30 de Julho de 2016.
4 - Segundo o estipulado na cláusula quarta do mesmo contrato, o aproveitamento de cada lote das zonas C e D deveria ser realizado em conformidade com o Plano de Pormenor do Plano de Reordenamento da Baía da Praia Grande e respectivos regulamentos, aprovados pela Portaria n.º 69/91/M, de 18 de Abril de 1991. Entre esses lotes, o lote 8 da zona C, com uma área de 4 422 m2, seria aproveitado com a construção de um edifício, em regime de propriedade horizontal, destinado às finalidades habitacional, comercial e de estacionamento, cuja altura máxima permitida foi fixada em 34,5m NMM.
5 - O prazo de aproveitamento dos lotes das zonas C e D foi fixado em 96 meses, contados a partir de 6 de Julho de 1992, ou seja, até 5 de Julho de 2000, conforme previsto na cláusula sexta do contrato de revisão titulado pelo mencionado Despacho n.º 73/SATOP/92, na redacção introduzida pelo artigo terceiro do contrato titulado pelo referido Despacho n.º 56/SATOP/94.
6 - Por outro lado, considerando a complexidade do empreendimento e as dificuldades com que a Sociedade de Empreendimentos X, S.A. se deparou na execução contratual, por forma a salvaguardar os interesses das partes contratantes, estas acordaram numa nova revisão da concessão, que veio a ser titulada pelo Despacho n.º 71/SATOP/99, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 33, II Série, de 18 de Agosto de 1999.
7 - No âmbito desta revisão, foi reduzido o objecto do contrato mediante a desistência dos direitos sobre dois lotes da zona B, reavaliados os custos de execução das infraestruturas e alterado o valor do prémio e respectivas condições de pagamento.
8 - Além disso, conforme o disposto no artigo quarto desse contrato de revisão da concessão, foram prorrogados os prazos de aproveitamento dos lotes de terreno de cada uma das zonas, sendo o prazo de aproveitamento dos situados nas zonas C e D prorrogado por 72 meses, contados a partir de 18 de Agosto de 1999, ou seja, até 17 de Agosto de 2005.
9 - Posteriormente, através do Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 85/2001, publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) n.º 37, II Série, de 12 de Setembro de 2001, foi titulada a transmissão onerosa do direito resultante da concessão do terreno, designado por lote 8 da zona C do referido empreendimento a favor da Sociedade de Investimento Imobiliário Nga Keng Van, S.A. (adiante designada por concessionária).
10 - O terreno em causa está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 22518 a fls. 170 do livro B49K e o direito resultante da concessão inscrito a favor da concessionária sob o n.º 26671F, não se encontrando onerado com qualquer hipoteca.

11 - A Sociedade de Empreendimentos X, S.A. pagou o prémio em espécie e em numerário na sua totalidade de acordo com o contrato de concessão.
12 - As recepções definitivas só ocorreram em 4 de Dezembro de 2001 (doc. fls. 84).
13 - O auto de vistoria para recepção definitiva, de 4 de Dezembro de 2001, certifica que as infraestruturas da Zona C, nomeadamente o pavimento, “oferecem toda a garantia de solidez e conservação”.
14 - O auto de vistoria para recepção definitiva só foi homologado pelo STOP em 20 de Janeiro de 2003.
15 - Foi enviado ao Presidente do Conselho de Administração da Nam Van, Dr. X, recebeu, em 13 de Novembro de 2002, um ofício do Governo solicitando que as subsidiárias da X Sociedade de Investimento Imobiliário X, S.A.R.L, Sociedade de Investimento Imobiliário X, S.A.R.L, Sociedade de Investimento Imobiliário X, S.A.R.L e Sociedade de Investimento Imobiliário X, S.A.R.L., desistissem das concessões dos 4 lotes B/b, B/f, B/g e B/1 da Zona B, cada um com uma área de 6.480 m2, e com uma área total de 25.920m2 (doc. fls. 87-88).
16 - Este pedido tinha como objectivo viabilizar a construção das unidades hoteleiras e casinos das novas concessionárias e subconcessionárias de jogos de fortuna ou azar e outros jogos em casino, nomeadamente os Hotéis e Casinos X Macau e X Macau, sem que daí resultassem quaisquer contrapartidas ou mais-valias financeiras pela perda dos lotes de terreno com a dita área de 25.920m2 e com 898.774m2 de área de construção.
17 - Como contrapartida pelas desistências, o Governo garantiu à Nam Van e às suas subsidiárias, incluindo a Recorrente, que iria rever os planos de pormenor das Zonas C e D, para nelas incluir as áreas dos quatro lotes que reverteram para a RAEM.
18 - As desistências foram negociadas e aceites pelos Despachos do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.ºS 33/2004, 34/2004, 35/2004 e 36/2004 de 1 de Abril, publicados no B.O. n.º 14, II Série, de 14 de Abril de 2004.

19 - Foram essas desistências que permitiram que os quatro lotes (independentemente da utilização de outros lotes) pudessem ser depois concessionados às sociedades X Resorts (Macau), S.A. e X Grand Paradise, S.A., dando-se assim início aos planos de investimentos apresentados por cada uma delas.
20 - Embora os contratos de desistência, anexo aos Despachos do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 33/2004 a 36/2004, de 1 de Abril, contenham, no número 4 do artigo primeiro, a obrigação de o Governo conceder um ou mais terrenos localizados nas zonas “C” ou “D” do Plano da Baía da Praia Grande ou em zona com uma área de construção e capacidade “aedificandi” equivalente, a verdade é que, até esta data, não se concretizou esse compromisso assumido e exteriorizado formalmente pelo Governo da RAEM.
21 - Reunida em sessão de 10 de Novembro de 2016, a Comissão de Terras exarou no seu Parecer n.º 130/2016, o seguinte: «De acordo com o disposto na cláusula segunda do contrato de concessão inicial, titulado pela escritura pública de 30 de Julho de 1991, o arrendamento é válido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da sua outorga, ou seja, o prazo terminou em 30 de Julho de 2016. Uma vez que o terreno ainda não foi aproveitado e a respectiva concessão é provisória, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 48.º da Lei de terras, a mesma não pode ser renovada.
Nestas circunstâncias, o Departamento de Gestão de Solos (DSO) da DSSOPT procedeu à análise da situação e, através da proposta n.º 371/DSODEP/2016, de 12 de Setembro, propôs que seja autorizado o seguimento do procedimento relativo à declaração da caducidade da concessão por decurso do prazo de arrendamento e o envio do processo à Comissão de Terras para efeitos de parecer e tramitações ulteriores sobre a declaração da caducidade da concessão provisória, nos termos do artigo 167.º da Lei de terras, proposta esta que mereceu a concordância do Secretário para os Transportes e Obras Públicas por despacho de 19 de Setembro de 2016.
Face ao exposto, esta Comissão, após ter analisado o processo, considera que a concessão provisória em apreço se encontra já caducada pelo facto de ter expirado em 30 de Julho de 2016 o prazo de arrendamento, de 25 anos, fixado na cláusula segunda do respectivo contrato (caducidade preclusiva).
Com efeito, de acordo com o artigo 44.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras), aplicável ao caso vertente por força do disposto nos seus artigos 212.º e 215.º, a concessão por arrendamento é inicialmente dada a título provisório e só se converte em definitiva se, no decurso do prazo fixado, forem cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas e o terreno estiver demarcado definitivamente (vide ainda artigos 130.º e 131.º).
Findo o seu prazo de vigência, as concessões provisórias não podem ser renovadas, a não ser no caso previsto no n.º 2 do artigo 48.º da Lei de terras, conforme estabelece o n.º 1 do mesmo preceito legal, operando-se a caducidade por força da verificação daquele facto (decurso do prazo de arrendamento).
De igual modo, resultava da Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho (Lei de terras anterior) que, no caso da concessão revestir natureza provisória em virtude do terreno não se encontrar aproveitado (cf. artigos 49.º, 132.º e 133.º), não era possível operar a sua renovação por períodos sucessivos de dez anos porquanto a figura da renovação prevista no n.º 1 do artigo 55.º era aplicável apenas às concessões definitivas.
Apesar da caducidade operar de forma automática e directa, para tomar a situação jurídica certa e incontestada e, portanto, eliminar a insegurança jurídica sobre a extinção ou não do direito resultante da concessão, deve a mesma (caducidade) ser declarada, conforme decorre do disposto no corpo do artigo 167.º da Lei n.º 10/2013.
Nestas circunstâncias, esta Comissão nada tem a opor à declaração de caducidade da concessão do terreno em epígrafe pelo decurso do prazo de arrendamento, perdendo a favor da RAEM todas as prestações do prémio e os respectivos juros já pagos, nos termos do disposto no artigo 13.º do Regulamento Administrativo n.º 16/2004.»
22 - E concluiu esse mesmo parecer do modo seguinte: «Reunida em sessão de 10 de Novembro de 2016, a Comissão de Terras, após ter analisado o processo e ter tido em consideração o parecer e proposta constantes da proposta n.º 371/DSODEP/2016, de 12 de Setembro, bem como o despacho nela exarado pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 19 de Setembro de 2016, considera que verificada a caducidade da concessão pelo termo do prazo de arrendamento em 30 de Julho de 2016, deve esta caducidade ser declarada por despacho do Chefe do Executivo.»
23 - Em 14/11/2016 o Ex.mo Secretário para os Transportes e Obras Públicas emitiu o parecer de fls. 113-116 do p.a., cujo conteúdo aqui damos por reproduzido, e que concluiu da seguinte maneira:
“Consultado o processo supra mencionado e concordando com o que vem proposto, solicito a Sua Excelência o Chefe do Executivo que declare a caducidade da concessão do referido terreno”
24 - O Chefe do Executivo proferiu o seguinte despacho:
“Concordo, pelo que declaro a caducidade da concessão, por arrendamento, a que se refere o Processo nº 65/2016 da Comissão de Terras, nos termos e com os fundamentos do Parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 14 de Novembro de 2016, os quais fazem parte integrante do presente despacho“ (fls. 92 dos autos e 117 do do p.a.).
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IV – O Direito
1 - Da Reclamação
A fls. 173 o relator proferiu o seguinte despacho:
“Estando em causa a apreciação da validade do acto que declara a caducidade da concessão, em virtude do decurso do prazo sem aproveitamento do terreno (caducidade preclusiva), não se nos afigura útil, nem necessária, a produção de prova testemunhal com vista ao apuramento da culpa pelo atraso.
Face ao exposto, e tendo sido esta a posição tomada pelo TSI e pelo TUI, notifique as partes para alegações facultativas.”
Não há que fazer censura a este despacho.
Com efeito, está em causa a apreciação da validade do acto que declara a caducidade da concessão pelo decurso do prazo geral desta. Isto é, o fundamento para a prática do acto é a objectividade do tempo, sem interferência de qualquer carga subjectiva traduzida em juízos de imputabilidade de culpa. Estamos, pois, em sede de uma caducidade preclusiva, em que o que releva é somente o facto objectivo do decurso do prazo, é o que a jurisprudência da RAEM tem por adquirido (v.g., Acs. do TUI, de 6/06/2018, Proc. nº 43/2018 e de 11/10/2017, Proc. nº 28/2017; Ac. do TSI, de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016; de 1/02/2018, Proc. nº 26/2017 e de 26/04/2018, Proc. nº 767/2016; Ac. de 18/10/2018, Proc. nº 419/2017).
Ora, para se apurar da validade da decisão administrativa não são mais precisos elementos de prova do que aqueles que a própria recorrente aportou ao processo e aqueles que o processo administrativo apenso contém. Aliás, sempre se acrescenta que a maior parte dos factos aludidos aos que as testemunhas deporiam, como se pode ver do rol de fls. 55, acabaram por ser vertidos na factualidade assente acima transcrita, face à não impugnação pela entidade recorrida, omissão que se compreende pela circunstância de serem factos com suporte documental no p.a.
Face ao exposto, é de indeferir a reclamação.
Pelo incidente, taxa de justiça em 4 UCs a cargo da reclamante.
*
2 - Do Recurso Contencioso
2.1 – Da falta de fundamentação
Este vício está desprovido de qualquer base de sustentação e quiçá terá sido alegado por lapso. Na verdade, o acto está fundamentado, per remissionem, já que acolhe o parecer da Comissão de Terras sobre o assunto concreto e este contém a justificação para a decisão (cfr. art. 115º, do CPA).
Por ele ficou a saber a recorrente as razões pelas quais a caducidade foi declarada, as quais se prendiam com o decurso do prazo de 25 anos e com o facto de se tratar de uma concessão provisória, que não podia ser renovada, por falta de aproveitamento.
A circunstância de um ou outro preceito da Lei de Terras não ter sido invocado não afasta a percepção da razão ou do motivo da decisão administrativa. Por outro lado, saber se a invocação de alguns preceitos da Lei de Terras não é adequada não transforma a maleita que ao acto é imputada, que só poderia ser de violação de lei, em vício de forma por ausência ou insuficiência de fundamentação.
Improcede, pois, o vício.
*
2.2 – Do erro nos pressupostos de facto
Também este vício está desprovido de base fundamentante, visto que não está densificado com factos que contrariem ou demonstrem a inverdade da factualidade invocada no despacho.
Na verdade, o que a recorrente alega é um conjunto de argumentos que, no seu entendimento, servem para provar que o acto errou na aplicação da Lei de Terras ou que fez um mau uso das suas disposições quando invoca a caducidade “preclusiva”, quando para si se trata de uma “caducidade sancionatória”.
Só que essa divergência de ponto de vista não representa erro nos pressupostos de facto, mas sim um eventual vício de violação de lei, que, nessa perspectiva, adiante conheceremos.
Para finalizar, se a recorrente acha que não procedeu ao aproveitamento por culpada da actuação da Administração, isso, ainda que possa eventualmente ser verdade, não altera a realidade dos factos: o terreno não foi aproveitado durante o prazo da concessão estabelecido no contrato em posterior revisão.
Improcede, pois, o recurso quanto a este vício.
*
2.3 – Da caducidade (arts. 44º, 47º, nº 1, 48º e 215º da Lei de Terras).
Acha a recorrente que a situação dos autos não pode ser encarada como sendo de caducidade preclusiva, mas sim sancionatória.
Não tem razão. Como ela própria reconhece, a jurisprudência da RAEM, nos seus múltiplos arestos em que se pronunciou sobre este tema, foi peremptória ao afirmar que o quadro de facto em que a concessionária não chega a efectuar as obras para as quais o terreno fora concedido revelava uma caducidade preclusiva.
Estamos em presença de uma concessão que, por não terem sido cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas, é provisória e que nunca se converteu em definitiva (art. 44º). Por ser assim, e sem prejuízo do art. 48º, nºs 2 e 3, que aqui não têm qualquer préstimo, por se não verificarem os respectivos pressupostos, esta concessão não podia ser renovada (art. 48º, nº1). Isto é, a concessão não podia manter-se por mais tempo, tal como este TSI tem vindo a afirmar sistematicamente.
Quanto ao art. 104º, ele limita-se a estabelecer os prazos de aproveitamento do terreno concedido, cuja inobservância sujeita o concessionário às consequências sancionatórias estabelecidas no nº3. Mas não é disso que se trata aqui.
Bem se esforça a recorrente em imputar à Administração a culpa no não aproveitamento. Só que isso não está ora em causa, nem cumpre dilucidar no âmbito da análise deste vício no quadro do presente processo impugnatório. Com efeito, o acto em crise assenta no mero decurso do prazo de caducidade. É, portanto, a caducidade preclusiva que nele está invocada com alicerce nos arts. 167º e 212º e 215º, da Lei de Terras.
E, como é jurisprudência firme da RAEM, a culpa, nesse caso, é indiferente à solução do recurso, já que a declaração administrativa da caducidade não tem que ver com eventuais razões impeditivas, ou obstaculizantes, do aproveitamento. O que releva é somente o facto objectivo do decurso do prazo, tal como a jurisprudência da RAEM tem por inquestionável.
Só para citar alguns, vejam-se os seguintes:
- Ac. do TUI, de 6/06/2018, Proc. nº 43/2018;
- Ac. do TUI, de 11/10/2017, Proc. nº 28/2017;
- Ac. do TSI, de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016;
- Ac. de 1/02/2018, Proc. nº 26/2017;
- Ac. de 26/04/2018, Proc. nº 767/2016;
- Ac. de 18/10/2018, Proc. nº 419/2017;
- Ac. do TSI, de 18/10/2018, Proc. nº 370/2016.
Não vemos motivo para alterar a nossa posição. Ocorreu, sim, a caducidade preclusiva e a Administração não tinha possibilidade de agir diferentemente.
Razão por que improcede o vício invocado a este respeito.
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2.4 – Do erro sobre o prazo da caducidade (art. 323º do C.C.)
Insiste a recorrente na circunstância de não ter podido executar as obras por culpa que imputa à Administração, em termos que aqui damos por reproduzidos, e que, por tal razão, mais ainda tendo em conta o disposto nos arts. 323º, nº2 do Código Civil, havia motivo para suspender o decurso do prazo de caducidade.
Todavia, entendemos que, também neste ponto, lhe falta razão.
Em primeiro lugar, nem o contrato, nem a Lei de Terras (Lei nº 10/2013) estabelecem qualquer norma que contemple situações a que possa ser atribuída eficácia suspensiva ou interruptiva do decurso do prazo (neste sentido, também, o Ac. do TUI, de 23/05/2018, Proc. nº 7/2018; de 6/06/2018, Proc. nº 43/2018).
Em segundo lugar, e como este TSI teve já oportunidade de referir por mais do que uma vez, estamos em matéria de direito público, de natureza vinculada, imperativa e de carácter indisponível (v.g., Ac. de 24/11/2016, Proc. nº 1074/2015).
Ver, ainda, neste sentido, entre outros:
- Ac. do TUI, de 11/10/2017, Proc. nº 28/2017;
- Ac. do TSI, de 24/11/2016, Proc. nº 1074/2015;
- Ac. do TSI, de 2/03/2017, Proc. nº 432/2015;
- Ac. do TSI, de 25/05/2017, Proc. nº 434/2015;
- Ac. do TSI, de 13/07/2017, Proc. nº 743/2016;
- Ac. do TSI, de 21/09/2017, Proc. nº 672/2015;
- Ac. do TSI, de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016;
- Ac. do TSI, de 26/04/2018, Proc. nº 767/2016;
- Ac. do TSI, de 18/10/2018, Proc. nº 419/2017.
Por conseguinte, entendemos que o art. 323º do Código Civil não presta qualquer apoio à recorrente quanto a esta questão.
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2.5 – Da violação dos arts. 55º da Lei do Planeamento Urbanístico e 6º, 7º e 103º da Lei Básica
Claudica mais uma vez.
O preceito do Planeamento Urbanístico citado é o seguinte:
Artigo 55.º
Revisão de contratos de concessão de terrenos do Estado, desistência da concessão e indemnização
1. Quando a execução de um plano urbanístico colida com a finalidade da concessão ou com o aproveitamento ou reaproveitamento de um terreno do Estado concedido, o concessionário tem direito, nos termos da Lei de terras, a requerer a revisão do contrato de concessão, a desistência da concessão ou, tratando-se de concessão onerosa, a transmissão das situações resultantes da concessão.
2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, tratando-se de concessões onerosas, os concessionários de terrenos do Estado lesados pela execução inicial ou pela alteração de um plano urbanístico têm direito a ser indemnizados, nos termos da Lei de terras, pelos danos que comprovadamente tenham sofrido, sendo aplicável à prescrição do direito e à fixação do valor da indemnização o disposto no n.º 2 do artigo 53.º e no artigo anterior, com as necessárias adaptações.
Como se constata, o preceito não acode minimamente à pretensão anulatória manifestada no âmbito dos presentes autos, pois apenas prevê a “revisão” do contrato, a “desistência” da concessão, ou a “transmissão onerosa das situações resultantes da concessão”.
E quanto aos preceitos da Lei Básica, somos a dizer o seguinte:
O art. 7º, que nos dispensamos de transcrever, trata da natureza dos solos em Macau, que reconhece serem propriedade do Estado, sem prejuízo de terem sido reconhecidos como propriedade privada antes do estabelecimento da RAEM (1ª parte). De resto, ele reconhece a responsabilidade ao Governo da RAEM pela gestão, uso e desenvolvimento desses terrenos, nomeadamente através de arrendamento ou de concessão (2ª parte).
Portanto, em nada socorre a recorrente.
O 103º também não. Ele reitera, de algum modo, o princípio consagrado no art. 6º, ao referir que a RAEM protege o direito das pessoas à aquisição, uso, disposição e sucessão da propriedade. Ora, a recorrente não dispõe de nenhum título de propriedade privada sobre o tereno em apreço e não nos parece que devamos confundir os títulos com base nos quais os terrenos da RAEM vão parar às mãos dos particulares.
E se o art. 120º da mesma Lei manda proteger os contratos de concessão, daí também não resulta nenhum aporte de benefício decisivo ao interesse aqui manifestado, porquanto o despacho em crise não atentou contra a existência válida da concessão convencionada antes de Dezembro de 1999.
Tal como este TSI teve ensejo de observar no Ac. de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016: «É correcto afirmar que a Lei Básica, no corpo do artigo, reconhece e protege os contratos de concessão de terras celebrados, e os direitos deles decorrentes, antes do estabelecimento da RAEM que se prolonguem para depois de 19/12/1999. Mas tal segmento normativo apenas pode ser utilizado para consagrar o respeito que a RAEM deve reconhecer aos direitos emergentes dos contratos que se encontrem em vigor após 19/12/1999. Ora, quanto a este aspecto, e como já tivemos ocasião de observar, o contrato celebrado em nada impedia a prática do acto administrativo que aqui está em apreciação, por em nada ter afrontado o clausulado inicial do contrato e das suas revisões.
E mesmo quanto ao seu parágrafo único1, igualmente não encontramos no acto nenhuma ofensa à força imperativa deste inciso legal, se pensarmos que ele se limita a mandar aplicar às novas concessões e às renovações (quando possíveis, obviamente) o regime legal e as “políticas” que vierem a ser produzidos já no âmbito da RAEM. A imposição que brota deste parágrafo está, de resto, em sintonia com o art. 11º do Código Civil e com o princípio tempus regit actum.» (no mesmo sentido, Ac. do TSI, 26/04/2018, Proc. nº 767/2016 acima citado).
Improcede, pois, o vício.
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2.6 – Da violação dos princípios gerais de direito administrativo
Invocou a recorrente a violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade, da boa fé, na vertente da tutela da confiança, da eficiência administrativa. Tudo, face ao disposto nos arts. 5º, 8º, 11º, 12º do CPA e 25º da Lei Básica.
Especificamente em relação ao princípio da igualdade, ainda que alguma situação de facto possa assemelhar-se a esta e que tenha tido uma solução administrativa diferente, não podemos censurar neste processo a actuação administrativa que possa ter sido eventualmente inválida. Mesmo que isso fosse verdade, o que importa sublinhar é que, se a Administração tem que agir conforme a lei, é de todo inoperante que a recorrente invoque casos pretensamente iguais com decisão diferente da do seu caso, porque não se pode exigir que ela volte a agir ilegalmente mais uma vez, agora a seu favor. O princípio da igualdade não funciona na ilegalidade.
Também não vemos em que medida os princípios da eficiência, da proporcionalidade e boa fé aqui relevem, visto que são privativos da actividade discricionária da Administração. Neste sentido, entre vários outros:
- Ac. do TUI, de 8/06/2016, Proc. nº 9/2016;
- Ac. do TUI, de 22/06/2016, Proc. nº 32/2016;
- Ac. do TSI, de 7/07/2016, Proc. nº 434/2015;
- Ac. do TSI, de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016;
- Ac. do TSI, de 15/03/2018, Proc. nº 299/2013;
- Ac. do TSI, de 26/04/2018, Proc. nº 767/2016
- Ac. do TSI, de 14/06/2018, Proc. nº 16/2017;
- Ac. do TSI, de 5/07/2018, Proc. nº 633/2017;
- Ac. do TSI, de 18/10/2018, Proc. nº 370/2016.
Ora, a actividade em apreço é vinculada ope legis, portanto, sem qualquer relevância do papel da vontade do administrador. É da lei que advém, fatalmente a vinculação da Administração à imperiosidade da declaração de caducidade.
Isto é, têm entendido os tribunais de Macau, e com razão, que, decorrido o prazo da concessão sem que o aproveitamento tenha sido efectuado tal como contratualmente convencionado, à contraente pública outra solução não resta senão declarar a caducidade (ver arestos citados), sem interferência de regras e princípios privativos da discricionariedade.
Igualmente se não pode dar por procedente a violação do principio da decisão, se ele verdadeiramente não está em causa quando o objecto do recurso é a “decisão” que efectivamente declara a caducidade da concessão.
Desta maneira, sem mais considerandos, somos a dar por improcedente este fundamento do recurso.
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2.7 – Do abuso de direito
Uma palavra final para o abuso de direito.
Quanto a nós, é patente que a figura do abuso (art. 326º do CC) não presta ao caso qualquer auxílio, visto que a Administração, repetimos, se limitou a aplicar a lei imperativa (daí a vinculação a que nos referimos) e a cumprir o contrato e a lei, no que à duração do mesmo diz respeito (Ac. do TUI, de 23/05/2018, Proc. nº 7/2018).
Dito por outras palavras, “O abuso de direito, para vingar no recurso contencioso, impõe a prova de um exercício ilícito de direito, implica a demonstração de que o titular do direito o exerceu em termos clamorosamente ofensivos da justiça e que excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art. 334º, do CC). E não preenche estes requisitos a actuação administrativa que se limita, como no caso vertente, a cumprir as cláusulas do contrato e a acatar as normas imperativas de direito público sobre o regime legal das concessões” (Ac. do TSI, de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016). Neste sentido, ainda, o Ac. do TSI, de 18/10/2018, Proc. nº 370/2016.
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V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em 20 Ucs.
T.S.I., 04 de Abril de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa

1 “As concessões de terras feitas ou renovadas após o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau são tratadas em conformidade com as leis e políticas respeitantes a terras da Região Administrativa Especial de Macau”.
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