Processo nº 69/2019 Data: 21.03.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”.
Absolvição.
Erro sobre a ilicitude; (art. 16° do C.P.M.).
Censurabilidade.
Erro notório.
Reenvio.
SUMÁRIO
1. Em face do estatuído no art. 16° do C.P.M., importa atentar que a “censurabilidade” só se mostra de afastar, se e quando, se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético-social.
2. Não constituindo a incriminação da “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada” nenhuma “descoberta dos tempos modernos”, e sendo, antes, um crime que há muito que se encontra tipificado, inegável se apresenta que o “comum das pessoas” não ignora que “ilícita” e “proibida” é a dita “apropriação de coisa alheia”.
3. Nesta conformidade, e atenta, nomeadamente, a “idade” e “habilitações académicas” da arguida, (com cerca de 55 anos de idade e com o oitavo ano de escolaridade), é de considerar que a decisão de se dar como “não provada” a sua “consciência da ilicitude” colide com as “regras de experiência” e “normalidade das coisas”.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 69/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por sentença do T.J.B. de 09.11.2018 decidiu-se absolver B ou B1 (B), arguida com os sinais dos autos, da imputada prática como autora material de 1 crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”, p. e p. pelo art. 200°, n.° 2 do C.P.M., condenando-se porém a mesma no pagamento de RMB¥200,00 de indemnização ao ofendido dos autos; (cfr., fls. 111 a 114-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado com a decretada absolvição da arguida, o Ministério Público recorreu, imputando à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova” e/ou “errada aplicação de direito”; (cfr., fls. 118 a 120-v).
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Sem resposta, e admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“O Ministério Público traz a escrutínio, no presente recurso penal, a sentença absolutória de 9 de Novembro de 2018, proferida nos autos CR5-18-0290-PCS, do 5.° Juízo Criminal, por entender que padece de erro notório na apreciação da prova.
B, cidadã da China Continental e arguida deste processo, foi absolvida do crime de que estava acusada – apropriação ilegítima de telemóvel achado – porquanto, apesar de terem ficado demonstrados todos os elementos objectivos do tipo, não ficou provado que a arguida soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei, o que levou o tribunal a concluir pela falta de consciência da ilicitude e pela correspondente causa de exclusão da culpa.
Temos por bem acompanhar a posição assumida pelo Ministério Público em primeira instância, na sua motivação de recurso.
A justificação avançada pela arguida, de que a apropriação de coisa achada não é crime, à luz do ordenamento jurídico da China Continental – o que, em bom rigor, nem é verdade, como resulta do artigo 270.°, n.° 2, da Lei Penal da RPC, transcrito na fundamentação da própria sentença, o que desde logo afasta a razão de ser da invocada falta de consciência da ilicitude – esbarra com o próprio procedimento confessadamente adoptado pela arguida. Então se, no seu critério, a apropriação de coisa achada não constitui ilícito, porquê, de acordo com a sua versão, aguardar cerca de 10 minutos para se apossar do telemóvel, face à tentação ou “pensamento cobiçoso” que a invadiu? E porquê, também na sua versão, aguardar cerca de uma hora nas imediações, ainda na sala de slot machines, à espera que o dono do telemóvel viesse buscá-lo? E porquê, igualmente na sua versão, deambular mais 20 ou 25 minutos no casino, aguardando que o dono voltasse para recuperar o objecto perdido? Esta versão não merece o crédito do senso comum e das regras da experiência, nem se mostra compatível com a alegada licitude, no ordenamento jurídico da China Continental, da apropriação de coisa achada.
Ao avalizar e dar crédito a tal versão da arguida, o tribunal incorreu, salvo melhor juízo, em erro notório na apreciação da prova, o qual esteve na origem da indevida exculpação da conduta por falta de consciência da ilicitude.
É de notar, ademais, que, mesmo na hipótese de se ter por boa a conclusão de falta de consciência da ilicitude a que chegou o tribunal – conclusão que, a nosso ver, não tem o devido respaldo, dado assentar em errada apreciação da prova – tal não bastaria, por si só, para ter por adquirida a exclusão da culpa. É que, nos termos do artigo 16.°, n.° 1, do Código Penal, a falta de consciência da ilicitude apenas exclui a culpa se o erro do agente não for censurável. Diz o tribunal que não havia provas a produzir para indagar da eventual censurabilidade da arguida pela falta de consciência da ilicitude do facto, à luz do ordenamento jurídico de Macau. Pois bem, crê-se que, com esse fito, podia e devia ter-se indagado da frequência das deslocações da arguida a Macau, ela que, sendo portadora de salvo-conduto para entrada em Macau e Hong Kong, conforme se vê de fls. 44, poderá ser uma frequentadora de Macau, quiçá assídua, o que lhe permite estar a par do sentir ético-jurídico da comunidade de Macau e daquilo que é lícito ou ilícito…
Em suma, crê-se procedente o invocado vício, pelo que, no provimento do recurso, deverá revogar-se a douta sentença recorrida e reenviar-se o processo, nos termos do artigo 418.° do Código de Processo Penal, para novo julgamento”; (cfr., fls. 158 a 159).
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Adequadamente processados os autos e nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 111-v a 112, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o Ministério Público recorrer da sentença pela Mma Juiz do T.J.B. proferida na parte que absolveu a arguida da prática como autora material de 1 crime de “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada”, p. e p. pelo art. 200°, n.° 2 do C.P.M..
E, como se referiu, entende que se incorreu no vício de “erro notório na apreciação da prova” e/ou “errada aplicação de direito”.
–– E, começando-se – como se nos apresenta lógico – pelo imputado “erro notório”, cabe notar que, temos entendido que o mesmo apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.07.2018, Proc. n.° 538/2018, de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
Mostra-se também adequado o entendimento no sentido de que para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, por um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto, (os fundamentos da convicção), e, por outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão; (cfr., v.g., o Ac. da Rel. de Coimbra de 09.03.2016, Proc. n.° 436/14).
Aqui chegados, continuemos.
No caso dos autos, é o Exmo. Recorrente de opinião que o Tribunal a quo errou ao dar como “não provado” que “a arguida bem sabia que a sua conduta” – que, em síntese – consistiu no facto de se apropriar de um telemóvel pelo seu dono esquecido no casino, junto a uma máquina “slot machine” – “era proibida e punida por lei”.
E, sem embargo do muito respeito por melhor entendimento, cremos que adequado não é o decidido, sendo de se subscrever o que sobre a questão – bem – observou o Recorrente assim como o Exmo. Representante do Ministério Público no seu Parecer que se deixou transcrito.
Vejamos.
Sob a epígrafe “apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada” preceitua o art. 200° do C.P.M. que:
“1. Quem se apropriar ilegitimamente de coisa alheia que tenha entrado na sua posse ou detenção por efeito de força natural, erro ou caso fortuito, ou por qualquer maneira independente da sua vontade, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Na mesma pena incorre quem se apropriar ilegitimamente de coisa alheia que haja encontrado.
3. O procedimento penal depende de queixa”.
E, tratando da matéria do “erro sobre a ilicitude” estatui o art. 16° do mesmo C.P.M. que:
“1. Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2. Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada”.
Perante o exposto, (antes de mais, e seja como for), afigura-se-nos de consignar que evidente se nos apresenta que, no caso, é a referida “falta de consciência de ilicitude” – que foi dada como “provada” – “censurável”.
Com efeito, (e independente do demais), importa ter presente que “a ignorância da lei a ninguém aproveita”, (cfr., v.g., o art. 5° do C.C.M.), e, por isso, ser de considerar, (pelo menos, à partida), o erro “censurável”.
Por sua vez, há que realçar que a “censurabilidade” só se mostra de afastar, se e quando, se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético-social.
E, em face do tipo de crime em questão, cremos que o “comum das pessoas” – e sejam elas mais novas ou idosas, urbanas ou não, com mais ou menos habilitações literárias – não ignora que “ilícita” e “proibida” é “apropriação de coisa alheia”.
Há que ter presente que o “tipo de ilícito” agora em causa não constitui propriamente nenhuma “descoberta dos tempos modernos”, consequência da evolução das sociedades, mentalidades e comportamentos ou condutas, sendo, antes, um crime que, (não obstante, alterações na sua abordagem e redacção), há muito que existe; (cfr., v.g., Jorge Figueiredo Dias in “Comentário Conimbricense ao C.P.”, tomo II, pág. 149, e art. 270° do C.P. da R.P.C. de 1997), sendo de notar também que – segundo o citado autor, in “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal” – o critério da não censurabilidade da falta de consciência da ilicitude encontrar-se-á na “rectitude” da consciência errónea, de acordo com o qual a falta de consciência da ilicitude será não censurável sempre que, (mas só quando), o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamenta em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deve responder, o que se verificará nas situações em que a questão da ilicitude concreta, (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação), se revele discutível e controvertida.
E, com o que se expôs, afigura-se pois de concluir que (mesmo) a haver “desconhecimento”, o mesmo seria de “censurar”.
Todavia, in casu, incorreu-se, também, no imputado “erro notório”.
Com efeito, e como sabido é, “O elemento subjectivo do tipo há de extrair-se a partir da factualidade apurada sita a montante e com recurso a presunções naturais, no seio das quais são necessariamente albergadas as regras da experiência e do normal acontecer, pois que é essa a única forma de poder alcançar-se um tal elemento volitivo que dimana da exteriorizada ressonância do interior da própria pessoa”; (cfr., o Ac. da Rel. do Porto de 07.12.2018, Proc. n.° 270/16).
Na verdade, “Quanto à atitude interior do arguido o tribunal tem de socorrer-se das máximas da experiência comum, como não podia deixar de ser.
Os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo da infracção são, em regra, objecto de prova indirecta, isto é, só são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 21.02.2019, Proc. n.° 406/08).
E, no caso, ponderado o que se deixou consignado, tendo-se presente a facilidade com que nos dias de hoje se tem acesso a todo o tipo de informação e noticias, e atenta, nomeadamente, a “idade” e “habilitações académicas” da arguida, (com cerca de 55 anos de idade e com o oitavo ano de escolaridade), apresenta-se-nos que a decisão em questão, (de se dar como não provada a sua “consciência da ilicitude”) colide com as “regras de experiência” e da “normalidade das coisas”, havendo assim que se dar por verificado o assacado “erro notório” e de se decretar o reenvio dos autos para, na parte em questão, se proceder a novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, decretando-se o reenvio dos autos para novo julgamento quanto à referida matéria, proferindo-se, seguidamente, nova decisão.
Custas pela arguida ora recorrida, com a taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 21 de Março de 2019
(Relator)
José Maria Dias Azedo
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 69/2019 Pág. 4
Proc. 69/2019 Pág. 3