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Processo n.º 192/2017 Data do acórdão: 2019-4-4
Assuntos:
– acidente de viação
– erro notório na apreciação da prova
– art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– elementos constantes dos autos
– violação de leges artis
– livre apreciação da prova
– art.º 114.º do Código de Processo Penal
– prova livre
– prova bastante
– contraprova
– ónus da prova
S U M Á R I O
1. Haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. O princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do Código de Processo Penal não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que com incidência sobre o caso concreto em questão não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração. Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova.
3. No concernente à temática da prova livre, as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto.
4. Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto. Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
5. Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la.
6. O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do Código de Processo Penal manda atender também aos elementos constantes dos autos para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova. Portanto, os documentos constantes dos autos e examinados em sede própria pelo tribunal a quo também têm que ser examinados pelo tribunal ad quem, para se poder aquilatar da ocorrência, ou não, desse vício de julgamento de factos.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 192/2017
Recorrentes:
2.a demandante civil A (A)
3.a demandante civil B (B)
4.o demandante civil C (C)
5.a demandante civil D (D)
1.a demandada civil Companhia de Seguros X, S.A.R.L.






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 486 a 496v do Processo Comum Colectivo n.° CR2-15-0306-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou o arguido E (E) condenado como autor material de um crime negligente consumado de homicídio cometido no exercício da condução, p. e p. pelo art.o 134.o, n.o 1, do Código Penal (CP) e pelos art.os 93.o, n.o 1, e 94.o, alínea 1), da Lei do Trânsito Rodoviário, na pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, com dois anos de inibição de condução, bem como ficou condenada a civilmente demandada Companhia de Seguros X, S.A.R.L. (X保險有限公司) a pagar aos três primeiros demandantes civis, chamados F (F), A (A) e B (B), respectivamente, a quantia total de MOP1.478.654,00 destinada à indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, e a pagar a cada um dos cinco demandantes civis F, A, B, C (C) e D (D) a quantia individual de MOP500.000,00 destinada à reparação de danos não patrimoniais, num total, pois, de MOP3.978.654,00, com juros legais contados a partir da data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformados, vieram recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) os quatro últimos demandantes civis A, B, C e D, e, por outro lado, a 1.a demandada civil Companhia de Seguros X, S.A.R.L..
Aqueles quatro demandantes civis, na motivação una apresentada a fls. 505 a 518 dos presentes autos correspondentes, alegaram e peticionaram, no seu essencial, o seguinte:
– há erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal a quo, aquando da decidida não comprovação dos factos respeitantes à prestação de alimentos pelo lesado falecido G (G) a favor dos seus pais e das duas filhas, pelo que deveria passar a ser julgado totalmente procedente o pedido de reclamação de indemnização por prestação alimentar a favor das duas filhas do ofendido mortal e dos pais deste;
– e no caso de se decidir pela não comprovação do montante concreto das prestações alimentares em causa, dever-se-ia recorrer ao disposto no art.o 560.o, n.o 6, do Código Civil (CC), e fosse como fosse, ainda seria aplicável, em última instância, o mecanismo de liquidação do montante dessas prestações alimentares em sede de execução de sentença nos termos do art.o 71.o, n.o 1, do Código de Processo Penal (CPP).
Enquanto na motivação tecida a fls. 519 a 541 dos autos pela seguradora recorrente, esta alegou e rogou, na sua essência, o seguinte:
– a condenação no pagamento de MOP500.000,00 a cada um dos progenitores da infeliz vítima está em flagrante violação da lei, nomeadamente do art.o 489.o, n.o 2, do CC;
– como se depreende da leitura desse artigo, a existência de cônjuge e filhos exclui qualquer direito a indemnização por parte dos pais da vítima, pelo que qualquer outro entendimento, interpretação e consequente atribuição de tutela de direito em sentido contrário ao prescrito pela norma imperativa será necessariamente contra legem, devendo, pois, ser revogado o acórdão recorrido na parte em causa;
– por outro lado, a infeliz vítima ficou de imediato inconsciente tendo entrado de imediato em coma;
– o acidente deu-se às 22:50 horas e o óbito foi declarado às 23:41 horas, sendo que desde a hora do acidente ficou de imediato em estado comatoso, tendo ficado de imediato inconsciente;
– daí que deve igualmente ser revogado o acórdão na parte referente à reparação de danos não patrimoniais da vítima;
– o acórdão recorrido violou igualmente o disposto nos art.os 487.o e 489.o do CC ao não ter fixado de forma equitativa o montante da reparação dos danos não patrimoniais da esposa e das duas filhas da vítima;
– atenta a factualidade dada como assente, esse dano não patrimonial seria ressarcível com uma indemnização de montante não superior a MOP300.000,00 para a esposa, e MOP200.000,00 para cada filha;
– e sem prejuízo do acima alegado quanto à ilegitimidade dos pais da vítima para receber indemnização por danos não patrimoniais, considera-se, por cautela de patrocínio, que seria mais equitativo e razoável a cada um dos progenitores da vítima ser arbitrada uma quantia na ordem das MOP100.000,00;
– por fim, no concernente à reparação da perda do direito à vida da vítima, o Tribunal recorrido não associou à sua decisão a prática de um prudente arbítrio, tendo arbitrado uma indemnização de MOP1.200.000,00, que se julga acima da que constitui a prática dos tribunais da Região Administrativa Especial de Macau, devendo ser reduzido esse valor para um milhão de patacas.
Respondeu primeiro ao referido recurso dos quatro demandantes o arguido como 2.o demandado civil, pugnando pela improcedência do mesmo a fls. 552 a 553v.
Os cinco demandantes responderam ao recurso da demandada seguradora a fls. 555 a 564, no sentido de não provimento do mesmo.
Ao recurso dos referidos quatro demandantes, respondeu também a sociedade comercial denominada X Agência de Viagens e Turismo, Limitada (X旅行社有限公司) como 3.a demandada civil, opinando, a fls. 565v a 567, pela improcedência do recurso.
Finalmente, respondeu também ao recurso dos ditos quatro demandantes a demandada seguradora, defendendo, a fls. 568 a 577, a manifesta improcedência do recurso.
Subidos os autos, feito inclusivamente o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir dos recursos finais dos quatro demandantes recorrentes e da seguradora demandada.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 486 a 496v, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. A petição inicial do enxertado pedido cível de indemnização consta de fls. 195 a 205, na qual foram reclamadas as seguintes quantias indemnizatórias:
– MOP1.262,00 (por despesas de tratamento médico do falecido);
– MOP77.892,00 (por despesas fúnebres do falecido);
– MOP28.800,00 (por danificação do motociclo conduzido pelo falecido aquando do acidente de viação em causa);
– MOP1.752.000,00 (ou seja, a quantia mensal de prestação alimentar de MOP7.300,00 x 12 (meses) x 20 (anos) = MOP1.752.000,00, como total indemnizatório por despesas de prestação alimentar por parte do falecido, se ainda fosse vivo, a favor dos pais do falecido, ou seja, a favor dos 4.o e 5.a demandantes civis);
– MOP384.000,00 (ou seja, a quantia mensal de prestação alimentar de MOP4.000,00 x 12 (meses) x 8 (anos) = MOP384.000,00, como total indemnizatório por despesas de prestação alimentar por parte do falecido, se ainda fosse vivo, a favor da 2.a demandante civil, filha do mesmo);
– MOP672.000,00 (ou seja, a quantia mensal de prestação alimentar de MOP4.000,00 x 12 (meses) x 14 (anos) = MOP672.000,00, como total indemnizatório por despesas de prestação alimentar por parte do falecido, se ainda fosse vivo, a favor da 3.a demandante civil, também filha do mesmo);
– MOP200.000,00 (por danos não patrimoniais sofridos pelo falecido na sequência do acidente de viação e até antes da morte);
– MOP1.200.000,00 (por dano-morte do falecido);
– e MOP2.500.000,00 (como total indemnizatório por danos não patrimoniais sofridos por cada um dos cinco demandantes civis com a morte do falecido, ou seja, MOP500.000,00 x 5 = MOP2.500.000,00).
3. Para fazer provar que o ofendido falecido dos autos pagava mensalmente MOP73.000,00 aos seus pais como alimentos (como foi alegado no art.o 27.o da petição cível, a fl. 200), a parte demandante civil chegou a juntar (a fls. 228 a 230) cópia da caderneta bancária da mãe do ofendido (como documento n.o 11 anexado à petição cível), da qual se vê o registo de diversos depósitos mensais, cada um dos quais no valor de MOP7.300,00, sempre em datas anteriores ao dia de ocorrência do acidente de viação dos autos.
4. Na audiência de julgamento, foram ouvidas, como duas das testemunhas da parte demandante civil, a irmã H do falecido e uma outra senhora chamada I (cfr. o teor da acta de uma das sessões da audiência de julgamento, lavrada a fls. 477 a 480).
5. Na fundamentação do acórdão recorrido, consta escrito que: a irmã H do ofendido falecido declarou como testemunha que o ofendido sustentava os alimentos dos pais (cfr. o último parágrafo da página 9 do texto do aresto recorrido, a fl. 490); a testemunha I declarou que sabia que o ofendido usava o rendimento de trabalho para as despesas familiares, mas não sabia ao certo qual o montante concreto (cfr. o primeiro parágrafo da página 10 do texto do mesmo acórdão, a fl. 490v).
6. No acórdão recorrido, o Tribunal recorrido julgou não provado que o lesado G, antes da ocorrência do acidente de viação em causa, pagava mensalmente MOP7.300,00 aos seus pais como alimentos (cfr. o teor da 18.a linha da página 8 do acórdão recorrido, a fl. 489v), tendo explicado essa sua livre convicção de seguintes moldes (cfr. o teor do penúltimo parágrafo da página 16 do texto do mesmo acórdão, a fl. 493v): a propósito das despesas de alimentos alegadas pela parte demandante civil, apesar de a testemunha irmã do ofendido ter declarado que este, antes da morte, se dedicava às actividades ligadas à reparação de computadores e peças acessórias de telefones e que sustentava os alimentos dos seus pais e filhas, não se consegue, atendendo-se à falta de prova concreta complementar nos autos, dar por provados a situação nem o montante do rendimento do ofendido antes da morte, nem o montante concreto nem a situação de despesas de alimentos por parte do ofendido a favor dos seus pais e filhas, pelo que não se consegue dar por provada a indemnização reclamada pela parte demandante civil em matéria de prestação alimentar do ofendido a favor dos seus pais e filhas.
7. Ficou provado no acórdão recorrido que o motociclo então conduzido pelo ofendido sofreu embate violento no acidente de viação dos autos, ocorrido sensivelmente às 22:50 horas do dia em questão, na sequência do qual o corpo do próprio ofendido ficou lançado para cima em alguns metros e caiu depois no chão, tendo sofrido assim inclusivamente (isto é, para além das lesões fatais sofridas na parte cerebral, na parte do tórax e na parte abdominal do corpo, como tal descritas no relatório de autópsia) fracturas ósseas nos quatro membros e rebentação labial, sem batimento cardíaco nem respiração sensivelmente às 23:11 horas do mesmo dia, e com morte certificada sensivelmente às 23:41 horas do mesmo dia (cfr. mormente os factos provados 1, 2, 5 e 8, descritos nas páginas 5 e 6 do texto do acórdão recorrido, a fl. 488 a 488v).
8. O Tribunal recorrido julgou que o arguido teve culpa exclusiva pela produção do acidente de viação em causa e decidiu condenar a demandada seguradora no pagamento da quantia total indemnizatória de MOP3.978.654,00 (com juros legais a partir da data do acórdão recorrido até efectivo e integral pagamento), resultante da soma das seguintes quantias indemnizatórias:
– MOP1.262,00 (por despesas de tratamento médico do falecido);
– MOP77.392,00 (por despesas fúnebres do falecido);
– MOP200.000,00 (por danos não patrimoniais sofridos pelo falecido na sequência do acidente de viação e até antes da morte);
– MOP1.200.000,00 (por dano-morte do falecido);
– e MOP2.500.000,00 (como total indemnizatório por danos não patrimoniais sofridos por cada um dos cinco demandantes civis com a morte do falecido, ou seja, MOP500.000,00 x 5 = MOP2.500.000,00).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando:
Os pais e as duas filhas da vítima mortal dos autos, na sua motivação una apresentada a fls. 505 a 518, começaram por invocar o cometimento, pelo Tribunal a quo, de erro notório na apreciação da prova, aquando da decidida não comprovação dos factos alegados no pedido cível respeitantes à prestação de alimentos pelo falecido a favor dos pais e filhas.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, o Tribunal Colectivo a quo teceu a fundamentação da sua decisão da matéria de facto inclusivamente nos termos já referidos na parte II do presente acórdão de recurso.
Da leitura dessa fundamentação, resulta nítido o seguinte raciocínio do Tribunal Colectivo a quo aquando da formação da sua convicção sobre os factos articulados no pedido civel no tangente à prestação alimentar por parte da vítima a favor dos seus pais e duas filhas: apesar de a testemunha irmã do ofendido falecido ter declarado na audiência de julgamento que este, antes da morte, se dedicava às actividades ligadas à reparação de computadores e peças acessórias de telefones e que sustentava os alimentos dos seus pais e filhas, não se consegue, atendendo-se à falta de prova concreta complementar nos autos, dar por provados o montante concreto nem a situação de despesas de alimentos por parte do ofendido a favor dos pais e filhas, pelo que não se consegue dar por provada a indemnização reclamada pela parte demandante civil em matéria de prestação alimentar do ofendido a favor dos seus pais e filhas.
Ou seja, para o Tribunal recorrido, só o depoimento da irmã da vítima mortal na referida parte em questão, à falta de prova concreta complementar nos autos, não consegue dar para fazer provar, pelo menos, a existência de prestação alimentar por parte do ofendido falecido, quando ainda era vivo, a favor dos pais e filhas.
Entretanto, existe concretamente nos autos uma cópia da caderneta bancária da mãe do ofendido falecido, da qual se vê o registo de diversos depósitos mensais nessa caderneta, cada um dos quais no valor de MOP7.300,00, e todos em datas anteriores ao dia de ocorrência do acidente de viação dos autos, para além de haver também o depoimento da testemunha I da parte demandante que declarou, na audiência de julgamento, que sabia que o ofendido falecido usava o rendimento de trabalho para as despesas familiares.
É, pois, manifesta a violação, pelo Tribunal recorrido, de leges artis no julgamento da matéria de facto no atinente aos encargos familiares do ofendido falecido em relação aos seus pais e duas filhas.
Com efeito, vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos, é mesmo de concluir pela evidente desrazoabilidade do raciocínio acima referido do Tribunal recorrido aquando da formação da sua livre convicção sobre os factos alegados pela parte demandante na matéria de prestação alimentar do ofendido falecido a favor dos pais e duas filhas.
Há que, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, reenviar, por constatação efectiva do vício referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do mesmo Código, o objecto do pedido cível para novo julgamento por um tribunal colectivo novo no Tribunal Judicial de Base, na parte relativa à matéria fáctica alegada na petição cível acerca da prestação alimentar do ofendido falecido a favor dos seus pais e duas filhas.
Do acima analisado e concluído, resulta a procedência do recurso dos quatro demandantes recorrentes, não sendo já mister conhecer do remanescente alegado por eles a título subsidiário na sua motivação una.
Resta conhecer do recurso da demandada seguradora.
Esta recorrente levantou logo uma objecção, segundo a qual a condenação no pagamento de MOP500.000,00 a cada um dos progenitores do falecido está em violação mormente do art.o 489.o, n.o 2, do CC.
Contudo, salvo o devido respeito por toda a opinião diversa, entende o presente Tribunal de recurso que é de seguir ainda a posição jurídica assumida no acórdão de 3 de Abril de 2014 do Processo 552/2010 do TSI, e citado concretamente na fundamentação do acórdão ora recorrido.
Ou seja, na existência do cônjuge não separado de facto e das pessoas descendentes do lesado falecido, os pais deste ainda podem reclamar individualmente, como direito próprio, indemnização por danos não patrimoniais sofridos por eles com a morte do seu filho.
A seguradora alegou também que não se deveria atribuir indemnização por danos não patrimoniais do ofendido falecido, por este ter ficado de imediato inconsciente ou em coma.
Não assiste razão à seguradora, porquanto ficou provado que o motociclo então conduzido pelo ofendido sofreu embate violento no acidente de viação dos autos, ocorrido sensivelmente às 22:50 horas do dia em questão, na sequência do qual o corpo do próprio ofendido ficou lançado para cima em alguns metros e caiu depois no chão, tendo sofrido assim inclusivamente (isto é, para além das lesões fatais sofridas na parte cerebral, na parte do tórax e na parte abdominal do corpo, como tal descritas no relatório de autópsia) fracturas ósseas nos quatro membros e rebentação labial, sem batimento cardíaco nem respiração sensivelmente às 23:11 horas do mesmo dia, e com morte certificada sensivelmente às 23:41 horas do mesmo dia (conforme mormente os factos provados 1, 2, 5 e 8, descritos nas páginas 5 e 6 do texto do acórdão recorrido, a fl. 488 a 488v).
Assim sendo, desses factos provados é de deduzir, por presunção judicial sob aval dos art.os 342.o e 344.o do CC, também feita com base nas regras da experiência da vida humana, que o ofendido dos autos sofreu naturalmente até imensas dores físicas (por causa das fracturas ósseas nos quatro membros dele) e enorme susto com tal embate violento no acidente, dores físicas e susto deste tipo que não se terão apagado até antes da perda do batimento cardíaco e da respiração.
Razões por que é acertada a decisão do Tribunal recorrido em atribuir indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo ofendido antes da morte, tudo em observância do art.o 489.o, n.o 1, do CC.
Quanto à invocada injusteza, por excesso, na fixação das quantias indemnizatórias dos danos não patrimoniais da esposa e das duas filhas do ofendido: atenta sobretudo a natural relação afectiva íntima entre o ofendido e a sua esposa, não se vislumbra qualquer injustiça notória na atribuição equitativa (nos termos ditados no n.o 3, parte inicial, do art.o 489.o do CC) de meio milhão de patacas de indemnização destinada à reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela esposa do ofendido. Entretanto, já quanto às duas filhas do ofendido, é de reduzir, por se afigurar mais equitativo e equilibrado, o montante indemnizatório individual de trezentas mil patacas.
E sobre o montante indemnizatório individual de meio milhão de patacas atribuído a cada um dos pais do lesado falecido: também não se divisa qualquer injustiça notória nesse juízo equitativo emitido pelo Tribunal recorrido, pelo que é de manter essa decisão do mesmo Tribunal.
Por fim, diversamente do pretendido pela seguradora recorrente, atentas as circunstâncias do caso, realiza o presente Tribunal de recurso que sob a égide da parte inicial do n.o 3 do referido art.o 489.o do CC, o montante de MOP1.200.000,00 fixado no acórdão recorrido para a reparação da perda do direito à vida da vítima já não admite mais redução.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar provido o recurso dos 2.a, 3.a, 4.o e 5.a demandantes civis, reenviando, para novo julgamento por um novo tribunal colectivo no Tribunal Judicial de Base, o objecto do pedido cível somente na parte circunscrita à matéria de prestação alimentar do ofendido falecido a favor desses quatro demandantes, bem como parcialmente provido o recurso da demandada seguradora, reduzindo, por conseguinte, o montante indemnizatório individual dos danos não patrimoniais das duas filhas do ofendido falecido, de meio milhão de patacas para trezentas mil patacas (com juros legais respectivos contados a partir da data do presente acórdão até integral e efectivo pagamento), sendo, pois, intactas todas as outras quantias indemnizatórias civis já atribuídas no acórdão recorrido (com juros respectivos a contar, já, a partir da data desse acórdão recorrido até integral e efectivo pagamento).
Custas do recurso dos referidos quatro demandantes a cargo do arguido, da seguradora e da 3.a demandada.
Custas do recurso da seguradora demandada a cargo desta e dos cinco demandantes, na proporção dos respectivos decaimentos.
Macau, 4 de Abril de 2019.
______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
______________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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