Processo n.º 274/2017 Data do acórdão: 2019-4-4
Assuntos:
– acidente de viação
– erro notório na apreciação da prova
– art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– elementos constantes dos autos
– violação de leges artis
– livre apreciação da prova
– art.º 114.º do Código de Processo Penal
– prova livre
– prova bastante
– contraprova
– ónus da prova
S U M Á R I O
1. Haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. O princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do Código de Processo Penal não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que com incidência sobre o caso concreto em questão não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração. Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova.
3. No concernente à temática da prova livre, as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto.
4. Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto. Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
5. Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la.
6. O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do Código de Processo Penal manda atender também aos elementos constantes dos autos para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova. Portanto, os documentos constantes dos autos e examinados em sede própria pelo tribunal a quo também têm que ser examinados pelo tribunal ad quem, para se poder aquilatar da ocorrência, ou não, desse vício de julgamento de factos.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 274/2017
Recorrente (assistente): A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido a fls. 246 a 253 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-16-0166-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (com enxerto cível de indemnização emergente de acidente de viação), sobretudo absolutório da arguida B da acusada autoria material de um crime negligente consumado de ofensa grave à integridade física no exercício de condução, p. e p. pelos art.os 142.o, n.o 3, e 138.o, alínea c), do Código Penal, em conjugação com o art.o 93.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), veio o ofendido constituído assistente e também demandante civil A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir, a título principal, a condenação da arguida no crime acusado e a condenação da parte demandada no pedido cível, tendo alegado, para o efeito, a existência, para já, do erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido na tomada da decisão penal absolutória, para além de padecer, subsidiariamente falando, essa decisão do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (cfr. em detalhes, o teor da sua motivação apresentada a fls. 262 a 267v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a demandada C, S.A., pugnando (nos termos constantes da resposta apresentada a fls. 275 a 277 dos autos) pela manutenção da decisão recorrida na parte civil.
Respondeu o Ministério Público (a fls. 279 a 284v), opinando pela manutenção do julgado penal.
Respondeu também a arguida (a fls. 285 a 289), no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer (a fls. 306 a 307), pugnando pela improcedência do recurso na parte penal.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão:
1. O acórdão absolutório (penal e civil) ora recorrido ficou proferido a fls. 246 a 253, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Na participação de acidente de viação n.o 897/2014 a que alude a fl. 19 dos autos, foi concluído policialmente que o acidente de viação ocorrido em 25 de Novembro de 2014 (às 13:37 horas) foi devido ao descuido da condução da condutora do veículo automóvel ligeiro com chapa de matrícula n.o MR-XX-XX, tendo o Corpo de Polícia de Segurança Pública aplicado multa a essa condutora (que veio a ser arguida dos presentes autos penais chamada B) pela infracção, em 25 de Novembro de 2014 (às 13:37 horas) ao disposto no art.o 40.o, n.os 1 e 5, da LTR, multa essa que foi paga voluntariamente em 11 de Dezembro de 2014 (cfr. também o original do documento colado a fl. 31 dos autos).
3. Dos autos, não se vislumbra qualquer reserva feita pela arguida, no momento do pagamento dessa multa, sobre o motivo desse pagamento voluntário.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que o ofendido assistente e demandante civil ora recorrente imputou principalmente à decisão absolutória penal em causa o vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, para pretender também a procedência do seu pedido civil então enxertado nos autos penais em causa.
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova. Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
Pois bem, na fundamentação probatória da decisão ora recorrida, afirmou o Tribunal a quo que na audiência de julgamento feita, houve duas versões fácticas antagónicas, uma por banda da arguida, e a outra por banda do ofendido.
Entretanto, para este Tribunal ad quem, à luz das leges artis, não se deve desconsiderar, aquando da formação da livre convicção sobre os factos controvertidos, o facto de a arguida ter pago voluntariamente, sem formulação de qualquer reserva sobre o motivo desse acto de pagamento, a multa então aplicada pelo Corpo de Polícia de Segurança Pública por infracção ao disposto no art.o 40.o, n.os 1 e 5, da LTR (que pune acto de condutor de veículo que iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com outro veículo que transite no mesmo sentido […]) (embora pudesse ter havido erro, por parte da arguida, na formação da sua vontade desse pagamento voluntário da multa, erro esse que não chegou a ser suscitado por ela própria na fase processual anterior).
Houve, pois, erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido.
Por isso, é de reenviar o objecto (penal e civil) do processo para novo julgamento por um novo tribunal colectivo no Tribunal Judicial de Base nos termos ditados no art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, em tudo que tenha a ver com o circunstancialismo fáctico e a causa do acidente de viação dos autos e a culpa pela produção desse acidente e pela produção do resultado de ofensa corporal ao assistente, a fim de se decidir de novo sobre a causa penal e o pedido cível enxertado em questão, sendo, pois, mantidos os factos civis já dados por provados no texto do acórdão recorrido alusivos às lesões e aos prejuízos sofridos pelo demandante civil na sequência do acidente de viação dos autos.
Do acima exposto, resulta a desnecessidade de apreciação de todo o remanescente invocado na motivação do recurso.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar provido o recurso do assistente, reenviando o objecto do processo para novo julgamento nos termos acima especificados.
Custas do recurso (na parte penal) pela arguida, com quatro UC de taxa de justiça.
Custas do recurso (na parte civil) conjuntamente pelas arguida e seguradora demandada.
Macau, 4 de Abril de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Chou Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
(vencida por não concordar com o douto acordao no qual deu relevância ao pagamento volutivo da multa pela arguida como uma “confissão pela mesma da culpe do acidente, e nos presentes autos se deveviam manter o já decidido pelo Tribunal “a quo”)
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