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Processo nº 198/2019 Data: 28.03.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “emissão de cheque sem provisão”.
Contradição insanável.
Erro notório.
Reenvio.

SUMÁRIO

1. O vício de “contradição insanável da fundamentação” ocorre quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

2. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.

Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.

O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.

Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.

3. Incorre-se em contradição insanável se da matéria de facto provada resultar que entre a assistente e o arguido, foi celebrado um “acordo de concessão de facilidades de crédito para jogo”, no âmbito do qual, aquela obrigou-se a disponibilizar ao arguido uma quantia total de HKD$30.000.000,00, que como garantia do seu pagamento emitiu o arguido o cheque n.° (…) que, posteriormente preenchido nos termos do acordado com a quantia de HKD$6.544.906,00, e, apresentado a pagamento, não foi pago por “insuficiência de fundos”, estando simultaneamente dado como “não provada” a “emissão do cheque” por parte do arguido, seu “não pagamento por falta de provisão”, e que o arguido se “enriqueceu” e “causou prejuízo patrimonial” à assistente.

4. Os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo da infracção são, em regra, objecto de prova indirecta, isto é, só são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum.

5. Se a decisão recorrida se apresentar contrária às regras de experiência, visto está que padece de “erro notório na apreciação da prova”.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 198/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. “A S.A.” (A股份有限公司), assistente, vem recorrer do Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B. que absolveu o arguido B da imputada prática de 1 crime de “emissão de cheque sem provisão”, p. e p. pelo art. 214°, n.° 1 e 2, al. a) do C.P.M..

Em sede de conclusões que a final da motivação apresentada produz, considera que o Acórdão recorrido padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável da fundamentação”, pedindo, também, a condenação do arguido no imputado crime assim como no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos alegadamente sofridos; (cfr., fls. 311 a 324-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Responderam o Ministério Público e o arguido, pugnando, respectivamente, pela procedência e improcedência do recurso; (cfr., fls. 328 a 331 e 337 a 340).

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fis.311 a 324 dos autos, a recorrente solicitou que o Acórdão do Tribunal a quo seria revogado e substituído pelo veredicto condenatório a decretar pelo Venerando TSI, assacando a contradição insanável da fundamentação e o erro notório na apreciação de prova.
Antes de mais, subscrevemos as criteriosas explanações da ilustre Colega na douta Resposta (cfr. fls.328 a 331 dos autos).
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Interpretados à luz do senso comum, os factos provados 5° e 16° tornam indubitável que apresentado em 11/02/2016 a pagamento, o cheque n.°209260 emitido pelo arguido à Assistente não foi integralmente pago por motivo de “Fundos Insuficientes”. O que conduz a que contradiga frontalmente com estes dois factos provados o facto não provado de que “Resulta que o Arguido emitiu um cheque que, apresentado a pagamento tempestivamente não foi pago por falta de provisão.”
Por sua vez, os factos provados 9° e 10° em conjugação com o 16° constatam seguramente que à custa da Assistente, o arguido obteve, sem justificação, enriquecimento patrimonial na quantia de HK$25,000,000.00 que lhe tinha sido transferido pela Assistente.
Daí decorre que os segundo e terceiro factos não provados estão na intrínseca e insuperável incompatibilidade com tais três factos provados. Pois, o nuo e incontestável facto de o arguido não restituir a quantia atrás referida, só por si, trouxe-lhe o enriquecimento patrimonial e, em consequente disso, o inevitável prejuízo à Assistente.
À luz da regra de experiência, o facto provado 11° exige que deva ser dado como provado o facto de que ao emitir e assinar o cheque acima aludido, o arguido tinha pleno conhecimento de na correspondente conta bancária não haver fundos suficientes para cobrir o pagamento do mesmo cheque. Nestes termos, afigura-se-nos que surge a irredutível contradição entre tal facto provado com o 4° facto não provado.
Para além disso, entendemos que os últimos dois factos não provados, que dizem respeito aos elementos subjectivos constitutivos do crime de emissão de cheque sem provisão, contendem com os factos provados na sua totalidade e com a regra de experiência.
Acolhendo as boas doutrinas, o Venerando TUI consolida a firme jurisprudência que proclama (a título meramente exemplificativo, vide. Acórdão no Processo n.°9/2015): «A contradição insanável da fundamentação é um vício intrínseco da decisão, que consiste na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto, bem como entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada. A contradição tem de se apresentar insanável ou irredutível, que não possa ser ultrapassada com o recurso à decisão recorrida no seu todo e às regras da experiência comum.»
Em esteira, colhemos que se verifica in casu a invocada a contradição insanável da fundamentação, visto que, na nossa óptica, as apontadas contradições não são ultrapassáveis com o recurso à interpretação sintética do aresto recorrido como uma unidade e às regras da experiência comum.
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No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é pacífica, no actual ordenamento jurídico de Macau, a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014): O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
À luz da citada brilhante orientação jurisprudencial, inclinamos a entender que existe igualmente o assacado erro notório na apreciação de prova, na medida em que avaliados de acordo com a profissão, a situação mental e a capacidade de compreensão do recorrente, os últimos dois factos dados não provados infringem as regras de experiência comum.
Por todo o expendido acima, propendemos pela procedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 351 a 352-v).

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Colhidos os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada obstando, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Deu o Colectivo a quo como “provado” o que segue:

“ 1.º
A Assistente é uma sociedade cujo objecto social é a exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, actividade que exerce, enquanto subconcessionária para a exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, na Região Administrativa Especial de Macau (“RAEM”).
2.º
Nessa qualidade, a Assistente encontra-se, nos termos da Lei n.º 5/2004, de 14 de Junho, autorizada a conceder crédito para jogo ou apostas em jogos de fortuna ou azar nos casinos por si explorados na RAEM.
3.º
Em 11 de Março de 2012, a Assistente celebrou com o Arguido, um contrato de concessão de facilidades de crédito designado em língua Inglesa “Application for a cheque cashing or credit facility” (cfr. fls. 28 e verso).
4.º
Ao abrigo do referido contrato, a ora Assistente obrigou-se a disponibilizar à Arguido um montante máximo de HKD30.000.000,00 (trinta milhões de dólares de Hong Kong).
5.º
Em garantia das obrigações assumidas o Arguido emitiu e assinou a favor da Assistente um cheque em branco com o n.º XXX sobre a instituição bancária designada Luso International Banking Limited.
6.º
Considerando que alguns elementos essenciais do cheque foram deixados em branco, o Arguido nos termos do documento designado em inglês por “Letter Of Authority” autorizou a ora Assistente a preencher o montante e data do referido título (cfr. fls. 29).
7.º
Com efeito, a Assistente apenas desembolsou aquele montante a favor do Arguido, porque este emitiu e entregou à Assistente um cheque em garantia do pagamento do montante em dívida.
8.º
O Arguido estava ciente das exigências da Assistente no que toca à concessão de crédito, bem sabendo que esta não lhe concederia o crédito sem que lhe tivesse sido prestada uma garantia de pagamento.
9.º
No exercício da sua actividade e em cumprimento do contratualmente estipulado, a ora Assistente desembolsou do Arguido a quantia de HKD25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares de Hong Kong), através das requisições n.º CM038648 e CM038650 (cfr. fls. 30).
10.º
Esta quantia foi utilizada para adquirir fichas de jogo no montante de HKD25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de dólares de Hong Kong) para serem utilizadas no casino designado por City of Dreams.
11.º
Sucede porém que, após os inúmeros contactos junto do Arguido feitos pela ora Assistente, esta não só nunca pagou o montante em dívida, como nunca sequer mostrou qualquer intenção de o fazer.
12.º
Pelo que, feitos os acertos no final da sua visita, o Arguido ficou com uma dívida junto da ora Assistente na quantia de HKD6.544.960,00 (seis milhões quinhentos e quarenta e quatro mil novecentos e sessenta dólares de Hong Kong).
13.º
Deste modo e para pagamento integral das referidas facilidades de crédito em falta, a ora Assistente preencheu - nos termos anteriormente autorizados pelo “Letter Of Authority” outorgado pelo Arguido, a data e o montante do mesmo no cheque que também tinha sido emitido pelo Arguido.
14.º
O referido cheque destinava-se ao pagamento integral da quantia de HKD6.544.960,00 (seis milhões quinhentos e quarenta e quatro mil novecentos e sessenta dólares de Hong Kong) em dívida.
15.º
A qual o Arguido se tinha obrigado a pagar, na sequência, por um lado da aquisição das fichas de jogo, bem como, por outro lado, da outorga do contrato de concessão de crédito designado “Application for a cheque cashing or credit facility”.
16.º
Assim, em 11 de Fevereiro de 2016, a Assistente apresentou o cheque a pagamento junto da instituição bancária Bank of China Limited, sucursal de Macau, tendo o mesmo sido devolvido no mesmo dia com a indicação de “Fundos Insuficientes”(cfr. fls. 20).
(…)”.

Por sua vez em sede de factos “não provados” consignou que não se provaram:

“- Resulta que o Arguido emitiu um cheque que, apresentado a pagamento tempestivamente não foi integralmente pago por falta de provisão;
- Com a conduta descrita supra, o Arguido enriqueceu ilegitimamente através da utilização das fichas de jogo compradas à ora Assistente, bem como das quantias desembolsadas por esta no exercício da sua actividade e em cumprimento do contratualmente estipulado nos termos do contrato de concessão de facilidades de crédito designado “Application for a cheque cashing or credit facility”;
- O Arguido causou, intencionalmente, à Assistente inegável prejuízo patrimonial, igual ao valor do mencionado cheque, i.e. HKD6.544.960,00 (seis milhões quinhentos e quarenta e quatro mil novecentos e sessenta dólares de Hong Kong), acrescido de juros de mora calculados à taxa legal de 6%, até efectivo e integral pagamento, porquanto, privou a Assistente daquele montante para o exercício da sua actividade;
- A assinar e emitir o supracitado cheque, o Arguido tinha perfeito conhecimento que a respectiva conta bancária não tinha fundos suficientes para cobrir o pagamento do cheque;
- O Arguido agiu livre, consciente e deliberadamente bem sabendo que a sua conduta prejudicava a Assistente;
- O Arguido sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei”; (cfr., fls. 295 a 297-v).

Do direito

3. Vem a assistente recorrer do Acórdão absolutório pelo T.J.B. proferido nos presentes autos.

Em síntese, é de opinião que o Acórdão recorrido padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável da fundamentação”, pedindo a condenação do arguido no imputado crime de “emissão de cheque sem provisão”, p. e p. pelo art. 214°, n.° 1 e 2, al. a) do C.P.M., e no pagamento de uma indemnização.

Como nos parece lógico – pois que sem uma boa decisão da matéria de facto, inviável será uma boa decisão de direito – comecemos pelos assacados vícios da “decisão da matéria de facto”, e assim, pela assacada “contradição insanável da fundamentação”.

–– Pois bem, repetidamente tem este T.S.I. considerado que o vício de “contradição insanável da fundamentação” ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.10.2018, Proc. n.° 570/2018, de 10.01.2019, Proc. n.° 951/2018 e de 21.02.2019, Proc. n.° 1127/2018).

Em síntese, quando analisada a decisão recorrida através de um raciocínio lógico se verifique que a mesma contém posições antagónicas ou inconciliáveis, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.

E como se tem também considerado:

“Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”; (cfr., o Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16).

E, no caso, evidente se nos apresenta que a decisão recorrida padece do imputado vício, muito não se mostrando necessário dizer.

Com efeito, de uma mera leitura à factualidade dada como “provada”, resulta claro que – assente ficou que – entre a assistente (ora recorrente), e o arguido, (ora recorrido), foi celebrado um “acordo de concessão de facilidades de crédito para jogo”, no âmbito do qual, aquela obrigou-se a disponibilizar ao arguido, uma quantia total de HKD$30.000.000,00, e que como garantia do seu pagamento, emitiu o arguido o cheque n.° 209260, do Banco Luso Internacional que, posteriormente preenchido nos termos do acordo celebrado, com a quantia de HKD$6.544.906,00, e, apresentado a pagamento, não foi pago por “insuficiência de fundos”; (cfr., v.g., o original do cheque e seu verso, a fls. 7).

Nesta conformidade, patente se apresenta a contradição como tal matéria de facto provada o facto “não provado” (n.° 1), quanto à “emissão do cheque” por parte do arguido, e quanto ao seu “não pagamento por falta de provisão”.

Da mesma forma, “provado” estando que a assistente desembolsou ao arguido a quantia de HKD$25.000.000,00, e que após acertos, ficou o arguido com uma dívida de HKD$6.544.960,00, não se alcança como decidir dar como “não provado” que o arguido “enriqueceu” e que “causou prejuízo patrimonial” à assistente no referido valor.

Continuemos.

–– Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.

Abordando esta matéria, também já tivemos oportunidade de considerar que:

“O elemento subjectivo do tipo há de extrair-se a partir da factualidade apurada sita a montante e com recurso a presunções naturais, no seio das quais são necessariamente albergadas as regras da experiência e do normal acontecer, pois que é essa a única forma de poder alcançar-se um tal elemento volitivo que dimana da exteriorizada ressonância do interior da própria pessoa”; (cfr., o Ac. da Rel. do Porto de 07.12.2018, Proc. n.° 270/16).

Na verdade, “Quanto à atitude interior do arguido o tribunal tem de socorrer-se das máximas da experiência comum, como não podia deixar de ser.
Os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo da infracção são, em regra, objecto de prova indirecta, isto é, só são susceptíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 21.02.2019, Proc. n.° 406/08).

E, motivos não havendo para se alterar o assim considerado, impõe-se concluir que a decisão recorrida em relação aos “últimos 3 factos não provados” – quanto ao “elemento subjectivo” do crime imputado ao arguido – padece do assacado vício de “erro notório na apreciação da prova”.

Na verdade, não se pode olvidar que em causa está um “empréstimo de HKD$30.000.000,00”, efectuado por uma pessoa – o arguido – residente permanente da R.A.E.M., com cerca de 60 anos de idade, (nascido em 1960), negociado junto de uma entidade que explora a indústria do jogo, e que, como é óbvio, não é “assunto” que se trate de “ânimo leve” e sem formalidades, o que não pode deixar de implicar uma prévia (e mínima) reflexão em relação às suas “condições” e possíveis “consequências”.

Perante isto, no que toca à matéria em questão, e afigurando-se-nos pouco concebível que, nos dias de hoje, um adulto, não saiba que a emissão de um cheque sem provisão possa vir a constituir ilícito penalmente relevante, apresenta-se-nos pois que, decidindo da maneira como se decidiu, em nossa opinião, contra as “regras de experiência”, incorreu o Colectivo a quo no igualmente assacado “erro notório na apreciação da prova”.

E, dest’arte, constatados os vícios de “contradição insanável” e “erro notório”, impõe-se decretar o reenvio dos autos para, na parte em questão, se efectuar novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..
Decisão

4. Em face do exposto, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, reenviando-se o processo para novo julgamento no T.J.B..

Custas pelo arguido recorrido com a taxa de justiça de 8 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor do arguido no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 28 de Março de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 198/2019 Pág. 24

Proc. 198/2019 Pág. 23