Processo nº 93/2019 Data: 07.03.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “injúria (qualificada)”.
Embriaguez.
Erro notório.
SUMÁRIO
1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
2. O julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
3. Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.
4. A circunstância de o arguido apresentar horas depois da ocorrência dos factos, uma taxa de alcoolémia de 3,21g/l, não implica que se dê (necessáriamente) como “provado” que praticou os factos em estado de “inimputável”, (para – eventual – qualificação da sua conduta como a prática de 1 crime de “embriaguez e intoxicação” do art. 284° do C.P.M.).
5. Importa é que o Tribunal justifique a sua decisão e que as razões apresentadas sejam de acolher.
O relator,
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Processo nº 93/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo, a final, a ser condenado como autor material da prática de 1 crime de “injúria qualificada”, p. e p. pelo art. 175 e 178° do C.P.M., na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de MOP$100,00, perfazendo a multa global de MOP$6.000,00 ou 40 dias de prisão subsidiária, assim como no pagamento de MOP$1.000,00 de indemnização ao ofendido dos autos; (cfr., fls. 69 a 74-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu, imputando à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “erro na qualificação jurídica”, pugnando pela sua condenação como autor da prática de 1 crime de “embriaguez”, p. e p. pelo art. 284° do C.P.M.; (cfr., fls. 93 a 99).
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Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 101 a 102-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer opinando no sentido de padecer a decisão recorrida de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 110 a 111-v).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 70, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o arguido recorrer da sentença que o condenou como autor material da prática de 1 crime de “injúria qualificada”, p. e p. pelo art. 175 e 178° do C.P.M., na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de MOP$100,00, perfazendo a multa global de MOP$6.000,00 ou 40 dias de prisão subsidiária, e no pagamento de MOP$1.000,00 de indemnização ao ofendido dos autos.
Considera que a dita sentença padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” – quanto ao elemento subjectivo (dolo), do crime de “injúria” – e “errada qualificação jurídica”, pugnando pela sua condenação como autor de 1 crime de “embriaguez”, p. e p. pelo art. 284° do C.P.M..
–– Vejamos, começando, como se apresenta lógico, pelo assacado “erro”.
No que toca ao “erro notório na apreciação da prova”, temos repetidamente entendido que o mesmo apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.07.2018, Proc. n.° 538/2018, de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 07.06.2018, Proc. n.° 376/2018, de 11.10.2018, Proc. n.° 772/2018 e de 24.01.2019, Proc. n.° 905/2018).
Esclarecido o sentido e alcance do imputado vício de “erro notório”, vejamos.
Na opinião do arguido, errada é a decisão do Tribunal a quo ao dar como “provado” o “elemento subjectivo” do crime de “injúria”, ou seja, que “agiu de forma livre e voluntária”, com intenção de ofender a honra e consideração do ofendido, (agente da P.S.P.), invocando, para tal, o seu estado de “embriagado” no momento dos factos, chamando, também, à colação, o “documento de fls. 64” dos autos, do qual consta (essencialmente) que pelas 04:26 da madrugada do dia seguinte apresentava uma taxa de álcool no sangue de 3,21g/l, pugnando, assim, pela sua absolvição quanto ao dito crime de “injúria (qualificada)” e consequente condenação pelo crime de “embriaguez e intoxicação” do art. 284° do C.P.M..
Quid iuris?
Sem prejuízo do muito respeito devido a entendimento em sentido diverso, cremos que a decisão recorrida deve ser confirmada.
Eis o porque deste nosso ponto de vista.
Antes de mais, considera-se de assinalar que o citado “documento de fls. 64” consiste numa (mera) “fotocópia”, e que, como tal, não implica que o Tribunal decida – tenha de decidir – em conformidade com o seu teor.
Seja como for, e dado até que o mesmo foi objecto de ponderação pelo Tribunal a quo aquando da sua decisão, (cfr., fls. 70-v), afigura-se de consignar o que segue.
Pois bem, não se nega que a referida “taxa de alcoolémia” aí representada – 3,21g/l – é, no mínimo, “impressionante”.
Contudo, as coisas não são tão simples assim.
Desde já, mostra-se de aqui referir também que do referido documento resulta igualmente que, o arguido, aquando do exame a que foi submetido nos serviços de urgência do C.H.C.S.J., apresentava-se “consciente”.
Por sua vez, e como é sabido, o “efeito” do álcool nas pessoas vária de acordo com vários “factores”, v.g., a quantidade e qualidade do álcool, a maneira (lenta ou rápida) e momento da sua ingestão, (dentro ou fora das refeições, ou com o estomago vazio), o sexo, a idade, o peso e outras condições do consumidor, (grande porte, com mais massa muscular, capacidade do organismo para metabolizar o álcool ingerido), a frequência do consumo, (consumidor habitual), a sua tolerância à bebida, etc…
Com efeito, determinada “quantidade de álcool” pode colocar certa(s) pessoa(s) em estado de embriaguez, de inconsciência, blackout alcoólico e até, coma, podendo assim não suceder com outras, certo sendo também que o seu “efeito” não é, (ou, não se mantém o mesmo), com o decorrer do tempo, (após a sua ingestão).
No caso, e como se disse, a aludida taxa é (efectivamente) impressionante, (nomeadamente, se se tiver em conta as que são legalmente fixadas para efeitos de “ilícitos estradais”; cfr., v.g., o art. 90°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007).
Mas cremos que a mesma não se afigura, (por si), suficiente, para se concluir que o Tribunal a quo incorreu em “erro” ao decidir da forma que decidiu.
Há que ter presente que o Mmo Juiz do T.J.B. não deixou de ponderar em tal “taxa de álcool” e seu efeito, assim como no que toca às capacidades intelectuais do arguido, (aquando da prática dos factos).
E, o certo é que, atento os depoimentos prestados em audiência, (em especial do ofendido, agente da P.S.P., e de um seu colega que presenciou a ocorrência), concluiu que motivos não haviam para considerar que, no “momento da prática dos factos”, (várias horas antes do registo constante do aludido “documento de fls. 64”), estava o arguido “incapacitado” ou em estado de “inimputável” – “circunstância” essencial para uma eventual subsunção da sua conduta nos termos do art. 284° do C.P.M. – ao ponto de implicar que se desse como não provado o seu dolo.
De facto, e como explicitando esta sua “convicção” e “decisão” salientou o Tribunal a quo, o arguido, quando pelo ofendido lhe foi pedida a identificação, soube procurar e puxar da sua carteira, o que não deixa de ser – bastante – revelador de que se terá apercebido “do que se passava”, da “situação que o envolvia”, e de que “tinha pela sua frente um agente da P.S.P.”, (que, até, estava fardado), e que lhe tinha advertido que se lhe voltasse a dirigir a afirmação “FUCK YOU”, incorreria no crime de “injúria (agravada)”, (sendo, o que, no caso, acabou por suceder).
Não se quer com isto dizer que estaria (totalmente) lúcido, e sem (absolutamente) nenhum efeito do álcool que tinha ingerido…
É óbvio que não!
Porém, em face do que dos presentes autos consta, cremos que censura não merece o decidido, pois que, em face dos depoimentos em audiência prestados, (e referidos na fundamentação pelo Tribunal exposta na sua decisão), motivos não há para se concluir que, no momento da prática dos factos, estava o arguido em estado de “inimputável”, para que outra devesse ser a decisão.
Como atrás se deixou consignado, “Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova”.
Dest’arte, impõe-se concluir que reparo não merece a “decisão da matéria de facto”, correcta se nos apresentando também a sua “qualificação jurídico-penal”, e tendo presente a pena aplicada, que não se mostra “inflaccionada”, e onde não se deixou de ponderar no “estado” do arguido, visto está que se impõe decidir pela improcedência do presente recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o arguido a taxa de justiça de 5 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 07 de Março de 2019
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa
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