Proc. nº 843/2018
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 28 de Março de 2019
Descritores:
- Concessão de terrenos
- Caducidade da concessão
- Execução do acto
- Desocupação do terreno
- Audiência de interessados
- Princípios gerais de direito administrativo
SUMÁRIO:
I - O acto do Secretário do Governo que manda proceder à devolução do terreno, na sequência do acto do Chefe do Executivo que declara a caducidade da concessão, em virtude do decurso do respectivo prazo de duração sem aproveitamento, limita-se a dar execução a este.
II - Se do acto que declara a caducidade foi interposto recurso contencioso e se para decretar a devolução do terreno não teve lugar nenhum acto de instrução relevante, torna-se despiciendo proceder a audiência de interessados.
III - Só em casos de erro grosseiro e manifesto pode o tribunal fazer censura a um acto discricionário anulando-o com base na violação de princípios gerais de direito administrativo, tais como o do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados, da proporcionalidade e da justiça.
Proc. nº 843/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
“A, S.A.”, em chinês, A有限公司, -----
Interpõe neste TSI RECURSO CONTENCIOSO -----
Do despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 13 de Julho de 2018, -----
Que ordenou o despejo do terreno com a área de 738 m2, designado por lote 4 da zona C do empreendimento denominado “B”, situado na península de Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2X XX5, a fls. XX7 do livro B-XXK, na sequência de anterior despacho do Chefe do Executivo que declarou a caducidade da respectiva concessão.
Na petição inicial, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
“a) Vem o presente recurso interposto do Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 13 de Julho de 2018, exarado na Proposta n.º 220/DSO/2018, comunicado à Recorrente pelo Ofício n.º 529/2314.02/DSO/2018, de 9 de Agosto de 2018, que ordenou o despejo do terreno com a área de 738 m2, designado por lote 4 da zona C do empreendimento denominado “B”, situado na península de Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2X XX5, a fls. XX7 do livro B-XXK (o “Terreno”);
b) Por Despacho do Chefe do Executivo, de 3 de Maio de 2018, tornado público pelo Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 21/2018, publicado no Boletim Oficial n.º 20, II Série, de 16 de Maio de 2018, foi declarada a caducidade da concessão do Terreno;
c) Em 15 de Junho de 2018, a Recorrente impugnou contenciosamente o acto do Chefe do Executivo que declarou essa caducidade, processo que corre termos nesse tribunal com o n.º 577/2018;
d) O acto é recorrível uma vez que a Recorrente lhe imputa vícios e ilegalidades próprias, integrando, assim, a excepção mencionada no n.º 4 do artigo 138.º do CPA;
e) A decisão da Administração vertida no acto recorrido, altamente lesiva dos direitos e interesses da Recorrente, não foi precedida da necessária audiência prévia prevista nos artigos 93.º e ss do CPA;
f) Acontece que a Administração também não procedeu à audiência prévia antes da tomada de decisão de declaração de caducidade;
g) A Entidade Recorrida não só não cumpriu o artigo 93.º, como não justificou a sua decisão de não audição da interessada, sendo que, do acto recorrido a Recorrente não consegue retirar qual a razão para esse facto, que, no entender da Recorrente, configura, por si, vício de forma por falta de fundamentação;
h) Se a Entidade Recorrida o fez:
(iv) por esquecimento, não é juridicamente aceitável;
(v) recorrendo à excepção mencionada na alínea a) do artigo artigo 97.º, tal não seria possível uma vez que a interessada não foi ouvida em sede de procedimento de declaração de caducidade;
(vi) por entender que não houve instrução, tal não corresponde à verdade já que, após a declaração de caducidade, a Entidade Recorrida fez um levantamento da situação concreta dos terrenos, fazendo um registo factual, nomeadamente fotográfico que, aliás, juntou ao acto recorrido, o que corresponde a uma instrução,
pelo que não se pode deixar de concluir que, em qualquer dos casos, esta falta de audição da interessada terá de ser sancionada com anulabilidade do acto.
i) Se a Recorrente tivesse sido notificada para se pronunciar, teria algo de novo a acrescentar já que, entre a data de declaração de caducidade e o despejo, a Recorrente intentou o Recurso Contencioso de Anulação, onde levantou questões, a seu ver, relevantes e que obstam à própria declaração de caducidade, facto que à data do despejo a Entidade Recorrida não tinha ainda conhecimento;
j) O princípio do aproveitamento do acto administrativo inválido deve ser a excepção, e não a regra, não devendo permitir-se que a omissão de diligências passe a ser um padrão nos procedimentos e que, dessa forma, a Administração, deixe de ouvir os interessados antes de tomar decisões que os afectam;
k) Razão pela qual o procedimento administrativo adoptado está ferido de vício de forma, por falta de fundamentação e também por preterição das formalidades essenciais, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 93.º do CPA, o que determina a ilegalidade do acto e a sua anulabilidade nos termos do disposto no artigo 124.º do referido diploma legal;
l) O acto recorrido viola os princípios da justiça, da protecção dos direitos e interesses dos residentes, bem como o princípio da proporcionalidade;
m) Porque a lei não impõe à Administração um prazo para que esta proceda ao despejo após a declaração de caducidade;
n) O acto de despejo, embora seja um acto de execução do acto da caducidade, tem alguma margem de discricionariedade no âmbito da qual a Administração não pode deixar de ponderar os valores e os interesses em causa, pois é à Administração que cabe ponderar e escolher o momento em que deverá ordenar o despejo!
o) Em 3 de Maio de 2018, o Chefe do Executivo declarou a caducidade do Terreno, a qual foi tornada pública no dia 16 do mesmo mês;
p) A caducidade foi imediatamente comunicada à Conservatória e encontra-se registada por averbamento à respectiva inscrição; e
q) Em 13 de Julho de 2018 a Entidade Recorrida determinou o despejo;
r) Ou seja, concretizada a ordem de despejo estão reunidas as condições para que a Administração concessione o Terreno a terceiros;
s) À Recorrente é reconhecido o direito de impugnação da decisão administrativa de caducidade, na qual invocou, entre outros vícios assacados ao acto, uma causa impeditiva que, por si só, impede que o presente despejo seja ordenado, pois o acto recorrido executa uma declaração relativa a uma caducidade que não se verificou!
t) Até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que apreciar esta questão há uma hipótese objectiva da declaração de caducidade ser considerada inválida e da concessão voltar à esfera da Recorrente e ser cancelado o registo de caducidade;
u) Acresce que não existe imposição legal ou razão de urgência, nem a Entidade Recorrida as invocou no acto recorrido, para que o despejo seja ordenado imediatamente a seguir à declaração de caducidade e antes de ser proferida decisão a esclarecer a validade do acto que declarou a caducidade;
v) O Chefe do Executivo demorou quase dois anos a declarar a caducidade após o términus da prevista no contrato de concessão do Terreno;
w) Por um lado, a Recorrente não conhece qualquer razão de interesse público que justifique o despejo antes que seja conhecida a decisão judicial relativa ao acto que declarou a caducidade e, por outro, a concessão do Terreno a terceiros causa lesão irreparável e colide com os direitos e interesses legalmente protegidos da Recorrente;
x) Está em causa a violação do princípio da necessidade e do equilíbrio;
y) A suspensão de eficácia do acto que declarou a caducidade, bem como do acto que ordenou o despejo, seria, no entender da Recorrente, uma forma jurídica adequada para prevenir esta situação e para acautelar a sua posição, no entanto, esse não tem sido o entendimento dos tribunais superiores que negaram provimento a todos os pedidos de suspensão de eficácia do acto de declaração de caducidade, bem como a todos os pedidos de suspensão de eficácia do acto de despejo de que a Recorrente tem conhecimento;
z) A lei permite situações de dispensa de concurso público, caso em que nem todas as intenções de concessão serão públicas e conhecidas e impedindo a Recorrente de fazer uso, por exemplo, de um pedido de suspensão de eficácia do acto de despejo ou do acto de caducidade, que até pode ser tardio e inútil, se o despejo já tiver sido efectivado e a Recorrente dessa passada do Terreno;
aa) Os prejuízos da Recorrente são de difícil reparação e quantificação já que nenhuma indemnização poderá calcular, de forma adequada, a compensação pelo investimento que a Recorrente teria com o Terreno se o tivesse aproveitado da forma por si planeada;
bb) Face ao recurso pendente e à incerteza jurídica em causa, não se vê de que forma seja mais adequado despejar primeiro, obrigando a Recorrente à remoção de materiais e/ou à demolição de estruturas no Terreno, alterando a situação jurídica existente, para reinvestir depois, caso seja dado provimento ao Recursos Contencioso de Anulação;
cc) Se não há intenção de concessionar e desenvolver o Terreno no imediato então também não é essencial nem necessário ordenar o despejo da Recorrente durante a pendência do Recurso Contencioso de Anulação, sendo o acto recorrido uma medida desproporcional face ao sacrifício dos interesses da Recorrente que estão em causa;
dd) O prejuízo que a actuação da Administração pode, nos termos acima expostos, causar à Recorrente é absolutamente desproporcional a qualquer benefício para o interesse público (que, como se disse, não se vislumbra qual seja);
ee) Ao ordenar o despejo face a toda esta incerteza jurídica, tendo em conta o enorme risco para os direitos e interesses da Recorrente, não estando em risco nenhum interesse público urgente e relevante e não estando obrigada a declarar o despejo num momento determinado, a Administração fez uma errada avaliação e violou de forma grave o princípio da justiça, do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos residentes e da proporcionalidade previstos nos artigos 4.º, 5.º e 7.º do CPA e manifestou também total desrazoabilidade no uso desses poderes discricionários.
ff) Por tudo o acima exposto, o acto recorrido incorre em vício de forma, por falta de audiência prévia e falta de fundamentação (também o artigo 115.º/2 CPA), nos termos previstos no artigo 21.º, n.º 1, al. c) do CPAC e viola a lei, nos termos previstos no artigo 21.º, n.º 1, al. d), do CPAC, e, em particular:
• Lesa direitos e interesses legalmente protegidos;
• Manifesta total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários;
• Viola os princípios da justiça, da proporcionalidade e o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos residentes previstos nos artigos 4.º, 5.º e 7.º do CPA;
Devendo, por isso, ser anulado de acordo com o artigo 124.º do CPA.
Termos em que, e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por o acto recorrido estar ferido de ilegalidade, devendo por isso ser anulado, com as consequências legais”.
*
Contestou a entidade recorrida em peça que concluiu da seguinte maneira:
“1.ª - A recorrente interpôs recurso contencioso do despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 13 de Julho de 2018, exarado sobre a proposta n.º 220/DSO/2018, que ordena o despejo do terreno, com a área de 738m2, designado por lote 4 da Zona C, do empreendimento denominado “B”, situado na Península de Macau.
2.ª - Alegando que o acto recorrido padece dos vícios de forma por falta de audiência prévia e por falta de fundamentação, bem como viola os princípios da justiça, da protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos e da proporcionalidade.
3.ª - A audiência prévia da Recorrente não foi efectuada, mas também não tinha que o ser, pois o acto recorrido assentou na emissão de acto que declarou a caducidade da concessão pelo decurso do prazo, estando inserido no mesmo procedimento administrativo, pelo que, a haver necessidade de pronúncia, a Recorrente teria de o fazer antes de ser declarada a caducidade da concessão.
4.ª - Mas porque estamos perante uma caducidade preclusiva, nem mesmo nesse momento havia necessidade de efectuar audiência prévia, pois esta caducidade decorre do decurso do prazo, pelo que esse despacho tem efeitos meramente declarativos, operando a caducidade de forma automática.
5.ª - E, declarada a caducidade da concessão, o despejo é consequência necessária, dada a natureza vinculada do despacho que o ordena, pelo que a ordem de despejo não constitui qualquer surpresa, apenas se traduzindo numa formalidade inútil e dilatória.
6.ª - Apesar de considerarmos que o despejo é um acto decorrente da declaração de caducidade, que faz parte daquele procedimento e é uma decorrência necessária daquela decisão, entendemos que, mesmo que fosse classificado como um procedimento autónomo, porque não foi realizada qualquer diligência instrutória, não se imporia a audiência prévia.
7.ª - Mesmo que qualquer omissão tivesse havido, sempre a mesma se teria degradado numa mera irregularidade não invalidade, em respeito pelo princípio do aproveitamento dos actos.
8.ª - Não é pelo facto de existir um recurso contencioso do acto que declarou a caducidade que se impõe a audiência, pois esse é um meio processual autónomo no qual a entidade recorrida já teve oportunidade de se pronunciar.
9.ª - O prazo para desocupação do terreno não é fundamento para a necessidade de audiência prévia, visto tratar-se de um prazo legal, não estando a Administração obrigada a qualquer ponderação adicional sobre o mesmo.
10.ª - A causa impeditiva da caducidade da concessão, cujo recurso ainda não foi decidido, não releva para a decisão de desocupação do terreno. Aguardar por esse momento para a desocupação apenas protelaria uma situação contrária ao interesse público.
11.ª - A concessão só caducou por inércia da Recorrente pelo que não se vislumbra a existência de qualquer prejuízo.
12.ª - A violação do princípio da proporcionalidade só poderia proceder se a actuação administrativa revelasse um erro manifesto e intolerável, o que não acontece.
13.ª - O princípio da proporcionalidade constitui um limite interno ao exercício de poderes discricionários, não sendo a sua violação configurável no uso de poderes vinculados.
14.ª - Não poderá proceder a alegação da Recorrente de que existe perigo de, dada a não suspensão da eficácia do acto de declaração de caducidade e, na pendência deste processo, a Administração poder vir a conceder o terreno a terceiros, causando lesão irreparável que colide com os seus direitos e interesses legalmente protegidos.
15.ª - A interposição de recurso contencioso do acto que declara a caducidade não confere, por lei, efeito suspensivo à ordem de despejo, logo, foi porque o legislador entendeu não haver necessidade de qualquer ponderação, por não se verificar qualquer lesão de direitos.
16.ª - A caducidade da concessão extingue todos e quaisquer direitos que os concessionários pudessem ter sobre a concessão, pelo que a Recorrente não pode vir arrogar-se da lesão de direitos que já não possui.
17.ª - A ordem de despejo é um acto completamente vinculado, nem mesmo a determinação do momento em que este deve ser realizado tem carácter discricionário, porquanto a Administração não pode obstar ao normal funcionamento destes procedimentos.
Nestes termos e nos melhores de direito, com o Douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser considerado improcedente, por não verificação de quaisquer dos alegados vícios, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.”
*
Nas respectivas alegações facultativas, as partes reiteraram essencialmente as posições anteriormente assumidas nos autos.
*
O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“Constitui objecto do presente recurso contencioso o despacho de 13 de Julho de 2018, da autoria do Exm.º Secretário para os Transportes e Obras Públicas, que ordenou o despejo do terreno ocupado pela recorrente, com a área de 738 m2, situado na península de Macau, no empreendimento do B, designado por lote C4, no prazo de 60 dias, com remoção de ervas, resíduos sólidos e lixo existentes no local.
A recorrente, “A S.A.”, imputa ao acto os vícios de forma por omissão da audiência prévia da interessada e por falta de fundamentação, bem como os vícios de violação de lei por ofensa dos princípios da justiça, do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos residentes e da proporcionalidade.
Por seu turno, a autoridade recorrida bate-se pela legalidade do acto.
Vejamos.
A recorrente começa por imputar ao acto vícios de forma por preterição da formalidade de audiência prévia e por falta de fundamentação.
No que toca a falta de fundamentação do acto, tal como diz a entidade recorrida, a recorrente limitou-se a invocar essa falta, não explicitando o porquê dessa invocação, o que quer dizer que, nessa parte, não há causa de pedir. Se porventura a recorrente pretende aludir à falta de fundamentação da inexistência ou dispensa de audiência, tem que se concluir que falha o alvo, pois o que carece de fundamentação, nos termos dos artigos 114.º e 115.º do Código do Procedimento Administrativo, é o acto administrativo definidor da situação jurídica, o acto final, e não os actos de trâmite.
Em qualquer dos casos, soçobra a alegada falta de fundamentação.
E quanto à preterição da formalidade de audiência prévia, crê-se que, no caso, a formalidade não era exigível, pelo que também não lhe assistirá razão.
Estamos perante um acto de execução do despacho que declarou a caducidade da concessão. Posto que este acto de execução seja recorrível - não foi, aliás, suscitada qualquer questão quanto a isso -, trata-se de um acto situado a jusante da decisão principal, mas que faz parte do mesmo procedimento e constitui uma decorrência normal daquela decisão. É relativamente a essa decisão principal, que se seguiu à fase procedimental da instrução, que pode fazer sentido invocar a necessidade e acuidade da exercitação da audiência prévia. Não quanto ao despejo que, como se referiu, é uma decorrência normal daquela decisão sobre a caducidade.
Aliás, e como já dissemos noutros casos semelhantes, mesmo que, em tese, se equacionasse um exercício de autonomização do procedimento de execução, nem assim se imporia a audição, já que não houve uma fase de instrução neste “novo” procedimento - cf. artigo 93.º, n.º1, do Código do Procedimento Administrativo.
Improcede também o vício de preterição da audiência.
A recorrente afirma ainda que o acto padece de violação de lei por ofensa dos princípios do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos residentes, da proporcionalidade e da justiça.
Na tentativa de caracterizar estes vícios, socorre-se do facto de, em recurso contencioso do acto de declaração de caducidade, haver sido posta em xeque a legalidade da declaração de caducidade da concessão do mesmo terreno que agora é objecto da ordem de despejo, e onde foi invocada uma causa impeditiva da caducidade, circunstância que, no seu entender, deveria obstar a qualquer decisão sobre o despejo até que fosse conhecida a decisão daquele recurso contencioso. E para reforçar a desnecessidade do despejo, fala em inércia da Administração, que anteriormente não manifestou qualquer pressa em recuperar o terreno.
Não creio que lhe assista razão.
A circunstância da pendência do recurso contencioso sobre a declaração de caducidade não é motivo para paralisar os efeitos do acto, nem contende com os princípios alegadamente violados. Como é sabido, a Administração goza do privilégio da execução prévia, assistindo-lhe legalmente a faculdade de, uma vez definido o direito que tem por aplicável ao caso, impor aos destinatários as consequências dessa definição, mesmo contra a oposição dos visados e sem a prévia intervenção dos tribunais. Só assim não será se a eficácia do acto estiver suspensa, o que não é o caso.
Acresce que o princípio da proporcionalidade, como corolário do princípio da justiça, obriga a que as decisões administrativas que colidam com direitos e interesses dos particulares apenas possam afectar as posições destes na justa medida da necessidade reclamada pelos objectivos a prosseguir. Isto pressupõe, por um lado, que a Administração actue no exercício de poderes discricionários. Ora, parece seguro que, declarada a caducidade, está a Administração vinculada a recuperar o terreno, pelo que pouca ou nenhuma acuidade relevarão aí os princípios que funcionam como limites internos da actuação administrativa. Por outro lado, haverá que notar que a eventual mora anterior da Administração em nada contende com a proporcionalidade ou desproporcionalidade do acto de despejo, pois nada permite sustentar a ideia de que as injunções a cumprir pelos particulares podem beneficiar de dilações proporcionais às demoras ocorridas no seio da Administração.
Ante o exposto, e na improcedência dos vícios alegados, o nosso parecer vai no sentido do não provimento do recurso.”
*
Cumpre decidir.
***
II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
***
III – Os Factos
Julgamos assente a seguinte factualidade:
1 - A Recorrente é uma sociedade comercial anónima, com sede em Macau, Avenida XX, Edifício XX, XX.º andar XX, registada na Conservatória dos Registos Comerciais e Bens Móveis sob o n.º 8XX6(SO).
2 - A Recorrente é titular de uma concessão por arrendamento do terreno, com a área de 738 m2, designado por lote 4 da zona C do empreendimento denominado “B”, situado na península de Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2X XX5, a fls. XX7 do livro B-XXK, destinado à construção de um edifício para habitação e estacionamento.
3 - Por Despacho do Chefe do Executivo, de 3 de Maio de 2018, tornado público pelo Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 21/2018, publicado no Boletim Oficial n.º 20, II Série, de 16 de Maio de 2018, foi declarada a caducidade da concessão do Terreno.
4- Em 15 de Junho de 2018, a Recorrente impugnou contenciosamente o acto do Chefe do Executivo que declarou essa caducidade em processo que corre termos no TSI com o n.º 577/2018.
5 - Em 11/07/2018 foi elaborada a Proposta nº 220/DSO/2018, no âmbito da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes:
“1. Por despacho do Chefe do Executivo, de 3 de Maio de 2018, foi declarada a caducidade da concessão do terreno com a área de 738 m2, designado por lote 4 da zona C do empreendimento denominado «B», situado na península de Macau, descrito na CRP sob o n.º 2X XX5 a fls. 1XX do livro BXXK, a que se refere o Processo n.º 62/2016 da Comissão de Terras, pelo decurso do seu prazo, nos termos e fundamentos do parecer do Secretário para os Transportes e Obra Públicas (STOP), de 4 de Novembro de 2016, os quais fazem parte integrante do referido despacho.
2. A declaração de caducidade da concessão acima referida foi publicada, pelo Despacho do STOP n.º 21/2018, publicado no Boletim Oficial da RAEM n.º 20, II Série, de 16 de Maio de 2018, e foi notificado à A, S.A. o conteúdo do referido despacho pelo ofício n.º 148/DAT/2018 de 16 de Maio (Anexo 1).
3. Conforme as fotografias tiradas pelo pessoal deste departamento em 31 de Maio de 2018, verificou-se que o terreno cuja vedação danificada está coberto pelas ervas. (Anexo 2)
4. Enfrentando o seguimento da caducidade de concessão, deve considerar-se o seguinte:
4.1. Nos termos do artigo 117.º e do n.º 1 do artigo 136.º do «Código do Procedimento Administrativo» (CPA) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M de 11 de Outubro, o acto administrativo produz os seus efeitos desde a data em que for praticado e é executório logo que eficaz, não obstando à perfeição do mesmo por qualquer motivo determinante de anulabilidade: salvo os actos previstos no artigo 137.º do CPA;
4.2. Por outro lado, ao abrigo das disposições do artigo 22.º do «Código de Processo Administrativo Contencioso» aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M de 13 de Dezembro, o recurso contencioso não tem efeito suspensivo da eficácia do acto recorrido;
4.3. Assim sendo, quer interponha o recurso contencioso quer não, a ordem emitida pela Administração pode ser executada;
4.4. Com base no n.º 2 do artigo 179.º da Lei n.º 10/2013 «Lei de terras», o despejo processa-se nos termos e com as necessárias adaptações do Decreto-Lei n.º 79/85/M, de 21 de Agosto «Regulamento Geral da Construção Urbana» (RGCU);
4.5. Os objectos, materiais e equipamentos abandonados no terreno serão tratados de acordo com as disposições do artigo 210.º da «Lei de terras».
5. Em face do exposto, em conformidade com a alínea 1) do n.º 1 do artigo 179.º da «Lei de terras» e com o artigo 55.º do RGCU, submete-se a presente proposta à consideração superior, a fim de:
5.1. Ordenar o despejo da A, S.A., no prazo de 60 dias contados a partir da data da notificação, do terreno com a área de 738 m2, designado por lote 4 da zona C do empreendimento denominado «B», situado na península de Macau, descrito na CRP sob o n.º 2X XX5 a fls. 1XX do livro BXXK, cuja concessão foi declarada caduca por despacho do Chefe do Executivo de 3 de Maio de 2018, devendo remover ervas, resíduos sólidos e lixo que se encontram eventualmente no local;
Caso não se execute voluntariamente no referido prazo de 60 dias,
5.2. A DSSOPT irá executar coercivamente o referido despejo de acordo com o artigo 56.º do RGCU.
À consideração superior”
6 - Sem se ter realizado a audiência de interessados, o Secretário para as Obras Públicas e Transportes proferiu o seguinte despacho, em 13/07/2018 (a.a.):
“Concordo”.
***
IV – O Direito
1 – Da falta de audiência de interessados
Sustenta a recorrente que o acto foi praticado sem lhe ter sido dada a possibilidade de se pronunciar previamente sobre a decisão agora impugnada, o que ofende o disposto no art. 93º do CPA.
Pois bem. Como este TSI tem referido em casos iguais – nos quais também a desocupação foi ordenada na sequência de despacho do Chefe do Executivo que declarou a caducidade preclusiva da concessão imposta pelo decurso do prazo sem aproveitamento - a audiência de interessados não se apresenta como formalidade absolutamente necessária quando o visado teve oportunidade de se pronunciar sobre a decisão de caducidade no procedimento.
O “despejo” não passa da execução de tal despacho e, portanto, nada traz de novo, não é nada com a qual a recorrente já não contasse. Daí que, além de desnecessária, ela seria inútil.
E mais inútil até, atendendo à natureza vinculada da decisão tomada pelo Chefe do Executivo, como este TSI tem dito e redito (entre outros, os Acs. do TSI, de 24/11/2016, Proc. nº 1074/2015 ou de 20/07/2017, Proc. nº 15/2016).
De resto, a audiência só é imposta uma vez concluída a instrução (art. 93º, nº1, do CPA). Ou seja, é preciso que haja actos instrutórios que sirvam necessariamente para preparar a decisão. Ora, após o despacho que declarou a caducidade, nenhuma diligência instrutória relevante foi efectuada no âmbito deste procedimento que fosse, ou pudesse ser, decisiva e determinante ao sentido decisório do acto impugnado.
E é sabido que “Só faz sentido ouvir os interessados em situações em que eles possam ser surpreendidos com uma base probatória com que não contassem ou com a alteração inesperada de uma situação jurídica que até ao momento moldava e enquadrava os seus interesses” (Ac. do TSI, de 28/06/2012, Proc. nº 458/2011; tb. Ac. do TSI, de 20/07/2017, Proc. nº 15/2016).
Enfim, não se crê que fosse necessário ouvir o interessado para se pronunciar de novo sobre uma solução que automaticamente emerge da determinação administrativa primária e prévia e sobre a qual já a recorrente tinha vertido impugnação contenciosa no âmbito do Processo nº 573/2018 (Neste sentido, entre outros, ver Acs. do TUI, de 22/11/2017, Proc. nº 39/2017, de 30/05/2018, Proc. nº 42/2018 ou de 21/11/2018, Proc. nº 89/2018; tb. do TSI, de 30/11/2017, Proc. nº 626/2016 e nº 1048/2017, de 21/06/2018).
Pensamos, pois, que a falta de observação da formalidade do art. 93º do CPA se degradou em irregularidade não invalidante. E se outra razão não houvesse, sempre poderia invocar o princípio do aproveitamento do acto administrativo.
Razão pela qual se não pode dar por procedente o vício.
*
2 – Da falta de fundamentação
Com base na mesma questão da omissão da audiência de interessados, vem a recorrente defender, curiosamente, a existência de mais um vício.
Por o autor do acto não ter dado qualquer justificação para se não realizar a formalidade do art. 93º, não apresentando nenhum dos motivos previstos para a inexistência (art. 96º, do CPA) ou dispensa (art. 97º) da audiência, defende a recorrente que isso representa o vício de forma por falta de fundamentação.
Mas não. Quando se fala do vício de forma por falta de fundamentação, sempre se pensa na ausência do dever de fundamentar o acto administrativo. Isto é, só faz sentido arguir este vício quando a própria decisão administrativa não apresenta, ou tem insuficientes, fundamentos de facto e de direito na sua substância e dispositividade (art. 115º, nº1, do CPA).
Ora, no caso destacado o que a recorrente acha é que não foi dada justificação para a não realização da audiência ou, pelo menos, não foi explicada a razão para a dispensa.
Se é assim que pensa a recorrente, então não estamos verdadeiramente perante um vício de forma por falta de fundamentação, mas perante um vício autónomo de violação de forma, por omissão da própria formalidade. Vício que consistiria, precisamente, na circunstância de não se ter realizado a audiência, sem para a omissão se ter dado qualquer justificação para a inexistência ou dispensa.
Só que, no caso concreto, e pelas razões acima aduzidas, a não realização da audiência não conduz à invalidação do acto, mesmo sem a apresentação dos fundamentos contidos nos arts. 96º e 97º, do CPA.
*
3 – Do princípio da protecção dos direitos e interesses e desrazoabilidade do exercício dos poderes discricionários.
Advoga a recorrente que a Administração não tinha razão para decretar imediatamente o despejo, até por a lei lhe não impor nenhum prazo. Por isso, por não haver fundamentos de urgência na execução da caducidade decretada pelo Chefe do Executivo, a imediata devolução do terreno, com o risco de poder ser de novo concessionado a terceiros, impedi-la-á de o recuperar, mesmo que a caducidade venha a ser invalidada no recurso contencioso pendente. O que será causa de danos na sua esfera de interesses.
Vejamos.
Na sua actuação diária, a Administração Pública, sem nunca perder de vista o interesse público relevante que, em cada caso, lhe cabe respeitar e fazer cumprir, deve também ter presente o direito e interesses legalmente protegidos dos administrados. Em consequência deste princípio geral, deve fazer o balanço necessário entre os direitos e interesses conflituantes em cada procedimento, de modo a realizar aquele que lhe foi cometido, sem ofender desnecessariamente o leque dos que integram inelutavelmente a esfera jurídica dos particulares e que devam manter-se intocados. É isso o que, grosso modo, significa o princípio plasmado no art. 4º do CPA.
Ora, na situação em apreço, não vemos como possa ter a entidade recorrida ofendido o direito da recorrente, pois que ela se limitou, através do acto, a determinar a desocupação e entrega do terreno sobre o qual, no seu entender, a recorrente já não tinha qualquer direito.
E quanto aos interesses em presença, igualmente não se vê que os da recorrente, em não acatar o acto administrativo em crise, mereçam maior consideração do que o interesse público na desocupação do terreno e remoção dos bens lá existentes.
Neste sentido, nem sequer encontramos motivo para interferir no quadro de discricionariedade reconhecida à Administração quanto à escolha do momento para a desocupação. Em primeiro lugar, não é certo que a Administração venha a inviabilizar a manutenção do actual “status quo” na esfera do recorrente mediante uma concessão a terceiros que não está sequer demonstrada.
Por outro lado, mesmo que a Administração não tenha declarado a caducidade no momento em que o podia fazer (tal como a recorrente invoca no art. 49º da p.i.), daí não se segue que a mesma Administração tivesse que entrar no mesmo caminho de uma demora em decretar a desocupação unicamente com o intuito de proteger os interesses da recorrente.
Portanto, não vemos em que medida o princípio esteja ofendido.
E as mesmas razões valem para sustentar a improcedência da desrazoabilidade igualmente invocada.
*
4 – Da proporcionalidade e da justiça
Acha a recorrente que o “despejo” ordenado imediatamente após o recurso contencioso da declaração de caducidade da concessão configura uma medida desproporcional e injusta, dado não ser considerada indispensável ou essencial ao resultado final pretendido.
Não nos parece, porém, que os princípios previstos nos arts. 5º e 7º referidos na epígrafe supra estejam violados.
Compreendemos a preocupação da recorrente quando reitera os argumentos da possível concessão a terceiros do mesmo terreno, sem que a Administração contemple a possibilidade de o recurso contencioso do acto que declara a concessão vir a ser procedente.
Contudo, reconhecerá também o recorrente que esse é um campo de matéria que escapa ao perímetro do conhecimento da presente impugnação. Quer dizer, não pode o tribunal fazer censura a este acto apenas baseada no argumento de que aquele outro pode vir a ser anulado. Em primeiro lugar, isso é apenas uma possibilidade, não uma probabilidade, muito menos uma certeza. Em segundo lugar, não pode a anulação fundamentar-se numa matéria que foi o centro de um pedido de suspensão de eficácia que não obteve êxito. Portanto, decretar a anulação com base num motivo que, já estudado, não foi procedente na providência da suspensão seria colocar o tribunal em contradição intrínseca.
E se outros argumentos não bastassem sempre se teria que recordar que a sindicância dos actos em matéria discricionária mediante a arguição da violação dos princípios de direito administrativo previstos nos arts. 3º e sgs. do CPA só pode ser levada a cabo, caso a actividade administrativa concreta tenha sido desenvolvida em erro manifesto, ostensivo e grosseiro ((cfr.,v.g., Ac. do TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014; de 19/11/2014, Proc. nº 112/2014; do TSI, de 26/05/2016, Proc. nº 325/2015; de 18/04/2013, Proc. nº 647/2012). E tal não é o caso.
***
V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em 8 UCs.
T.S.I., 28 de Março de 2019
_________________________ _________________________
José Cândido de Pinho Mai Man Ieng
_________________________
Tong Hio Fong
_________________________
Lai Kin Hong
Proc. nº 843/2018 22