Processo n.º 893/2018 Data do acórdão: 2019-3-7 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– falsas declarações perante oficial público
– tema probando
– questão de direito
– matéria conclusiva
– medida da pena
S U M Á R I O
1. A questão de direito e matéria conclusiva não devem entrar no tema probando.
2. Atento o bem jurídico em causa na incriminação das falsas declarações perante oficial público, p. e p. pelo art.o 97.o, n.o 2, do Código do Notariado, conjugado com o art.o 323.o, n.o 1, do Código Penal, não se pode optar pela aplicação da multa em detrimento da pena de prisão.
3. A medida concreta da pena de prisão deste crime é feita aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do Código Penal, ponderadas todas as circunstâncias apuradas em primeira instância e vistas as inegáveis exigências elevadas da prevenção geral do crime.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 893/2018
(Recurso em processo penal)
Recorrente (assistente): A
Recorrida (arguida): B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 808 a 816 do subjacente Processo Comum Singular n.o CR5-17-0152-PCS do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou absolvida a arguida B, aí já melhor identificada, da pronunciada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de falsas declarações perante oficial público, p. e p. pelo art.o 97.o, n.o 2, do Código do Notariado, conjugado com o art.o 323.o, n.o 1, do Código Penal (CP).
Inconformado, veio o então menor e supervenientemente já maior chamado A, na qualidade de assistente constituído, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo alegado (no seu essencial) e peticionado o seguinte na sua motivação de fls. 826 a 847 dos presentes autos correspondentes:
– a decisão recorrida, ao ter julgado por não verificado o dolo da arguida na prática do crime pronunciado, incorreu em erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), visto que no entendimento do próprio recorrente, a factualidade julgada provada pelo Tribunal recorrido permite concluir que a arguida conhecia da ilegalidade da sua actuação, e que mesmo assim agiu, livre e deliberadamente, na consumação do acto;
– é que como pode a arguida, advogada no Interior da China, dotada de conhecimentos sobre a matéria muito acima dos de um homem médio, ignorar, aquando da outorga, em Macau, da escritura de habilitação de herdeiros do seu falecido irmão C, o conceito de “descendente directo”, como termo que engloba inevitavelmente o ora recorrente como o filho adoptado por aquele?
– e ainda que se considerasse não exigível à arguida que conhecesse a lei de Macau, na medida em que é advogada no Interior da China, cumpre assinalar que mesmo a lei do Interior da China estatui que a relação entre pais e filhos adoptivos se equipara à relação entre pais e filhos biológicos em todos os direitos e obrigações, e neste sentido, a arguida não poderia ter a mais pequena dúvida de que o conceito de “descendente directo” englobava o filho adoptado, em concreto o seu sobrinho (ora recorrente);
– reitera-se que mesmo a lei sucessória do Interior da China prevê a vocação sucessória do filho adoptado;
– por outras palavras, a arguida, sendo advogada e conhecendo a lei do Interior da China, sabia que o ora recorrente era herdeiro do falecido;
– e mesmo que a arguida invocasse que não conhecia a lei de Macau, sempre se diria que suspeitaria ela que o ora recorrente poderia ser herdeiro, o que consubstanciaria a figura de dolo eventual;
– atendendo à própria fundamentação da decisão recorrida, é revelado que a arguida, aquando do tratamento da herança do seu irmão, mormente no tangente às contas bancárias e participações sociais deste no Interior da China, reconheceu o ora recorrente como herdeiro legítimo do falecido;
– a versão apresentada pela arguida, de que “pensava” que os descendentes lineares não incluíam os adoptados, não se compagina com a sua própria actuação, na qual entendeu que o ora recorrente era herdeiro legítimo;
– à luz da experiência comum, se sabia que o ora recorrente era filho do falecido e considerou que isso fazia dele herdeiro legítimo, racional teria sido manter esse entendimento quando tratava da herança do falecido em Macau e Hong Kong;
– não é legítimo, nem sequer inteligível, invocar desconhecimento da lei de Macau, para retirar o ora recorrente do rol de herdeiros legítimos, e o que é mais, do próprio rol de “filhos”, como claramente se indicava no formulário preenchido pela arguida no Cartório Notarial das Ilhas;
– não se compreende como é que a arguida poderia ter considerado o ora recorrente como herdeiro do falecido no Interior da China e, subitamente, ao entrar em Macau, ficar privada de todo o senso jurídico, e também de todo o senso comum, de que até então vinha usando;
– e sempre se dirá que a mesma decisão recorrida enferma de contradição insanável, como vício referido na alínea b) do n.o 2 do referido preceito processual penal, entre a matéria de facto provada e não provada, porquanto não obstante os factos dados como provados pelo Tribunal recorrido, este veio depois a considerar não provado o dolo da arguida;
– do exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene a arguida pela prática do crime pronunciado.
Ao recurso, respondeu a arguida a fls. 862 a 873, pugnando pela manutenção do julgado.
Sobre o recurso, opinou o Digno Delegado do Procurador junto do Tribunal recorrido a fls. 852 a 854v, no sentido de efectiva existência da contradição insanável da fundamentação na decisão recorrida, achando que a arguida tinha agido com dolo eventual da arguida na prática do crime pronunciado.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 889 a 890v, no sentido de verificação dos dois vícios apontados na motivação do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença ora recorrida encontrou-se proferida a fls. 808 a 816 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. O teor da contestação escrita então apresentada pela arguida consta de fls. 694 a 696, cujo conteúdo se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde já, é de observar que o conteúdo das alíneas 4) e 5) dos “factos alegados na contestação e dados por provados” como tal descrito nos últimos dois parágrafos da página 6 do texto da sentença recorrida (a fl. 810v) não é matéria de facto propriamente dita, mas sim se refere a “considerações”, pelo que há que considerar esse conteúdo como não escrito (ou seja, não incluído) na matéria de facto dada por provada em primeira instância. Por outra banda, o conteúdo da alínea 6) dos “factos alegados na contestação e dados por provados” como tal descrito no primeiro parágrafo da página 7 do mesmo texto decisório (a fl. 811) é eminentemente matéria de direito, pelo que não pode ser considerado como um facto provado propriamente dito, de maneira que deve ser retirado também do elenco de factos provados descritos no mesmo aresto recorrido.
É de observar, outrossim, o seguinte:
– o conteúdo da alínea 1) dos “factos dados não provados com audiência” como tal descrito nas linhas 7 a 8 da página 7 da mesma sentença (a fl. 811), como alude a uma questão ou conclusão de direito (a saber: ser, ou não, o menor A familiar da linha recta do falecido C), não deve ser incluído no tema probando em causa nos autos;
– o conteúdo das subsequentes alíneas 2) e 3) dos “factos dados não provados com audiência” como tal descrito nas linhas 9 a 10 e 11 a 12 da mesma página 7 da sentença, como corresponde materialmente às ilações ou considerações a resultar do então alegado na contestação da arguida a que se reporta o conteúdo da acima referida alínea 1), também não pode compor o tema probando dos autos;
– e o conteúdo da subsequente alínea 4) dos “factos dados não provados com audiência” como tal descrito nas linhas 13 a 14 da mesma página 7 da sentença, como consiste em conclusões a tirar da decisão de inclusão do conteúdo das acima referidas alíneas 1), 2) e 3) no elenco dos “factos dados não provados com audiência”, também não pode relevar propriamente como facto não provado.
Das observações acima feitas preliminarmente, vê-se que não é mister conhecer dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação levantados na motivação do recurso.
Cabe decidir se é de condenar a arguida no crime pronunciado, como pede o recorrente na motivação do recurso.
Pois bem, para o presente Tribunal de recurso, os 16 “factos dados por provados” descritos em toda a página 5 e nos seis parágrafos da página 6, ambas do texto da sentença recorrida, já dão para condenar directamente a arguida como autora material, na forma consumada, e pelo menos com dolo eventual, de um crime de falsas declarações perante oficial público, p. e p. pelo art.o 97.o, n.o 2, do Código do Notariado, conjugado com o art.o 323.o, n.o 1, do CP. (De facto, para se tirar a conclusão de ter a arguida agido pelo menos com dolo eventual, basta atender sobretudo aos primeiros três desses factos dados por provados e aos últimos seis desses factos dados por provados).
O crime em questão é punível com pena de prisão até três anos ou multa (cfr. mormente o art.o 323.o do CP).
No caso, não se pode optar pela aplicação da multa em detrimento da pena de prisão, já que atento o bem jurídico em causa a pena de multa não conseguirá realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição maxime na vertente da prevenção geral (cfr. o critério material exigido no art.o 64.o do CP para efeitos de decisão sobre qual a éspecie da pena a aplicar).
Na medida concreta da pena de prisão aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, julga-se por equilibrado e adequado, após ponderadas todas as circunstâncias apuradas em primeira instância e vistas as inegáveis exigências elevadas da prevenção geral do crime em questão, aplicar à arguida um ano de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, com o dever da prestação, dentro de um mês contado do trânsito em julgado do presente acórdão, de vinte mil patacas de contribuição pecuniária a favor da Região Administrativa Especial de Macau (cfr. os art.os 48.o, n.os 1, 2 e 5, e 49.o, n.o 1, alínea c), do CP).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso, passando, por conseguinte, a condenar a arguida B como autora material, na forma consumada, e com dolo eventual, de um crime de falsas declarações perante oficial público, p. e p. pelo art.o 97.o, n.o 2, do Código do Notariado, conjugado com o art.o 323.o, n.o 1, do Código Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, com o dever de prestação, dentro de um mês contado do trânsito em julgado do presente acórdão, de vinte mil patacas de contribuição pecuniária a favor da Região Administrativa Especial de Macau.
Custas do presente processo penal em ambas as duas Instâncias pela arguida, com três UC de taxa de justiça nesta Segunda Instância e seis UC de taxa de justiça na Primeira Instância.
Fica a arguida condenada a pagar seiscentas patacas nos termos do art.o 24.o, n.o 2, da Lei n.o 6/98/M, de 17 de Agosto.
Macau, 7 de Março de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Fong Man Chong
(Segundo Juiz-Adjunto)
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