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Processo nº 289/2019 Data: 11.04.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla”.
Continuação criminosa.
Concurso real.
Modo de vida.
Pena.
Atenuação especial.
Cúmulo jurídico.



SUMÁRIO

1. A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.

2. O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.

3. Para que se verifique a circunstância qualificativa do “modo de vida”, necessário não é nem a “habitualidade” nem a “profissionalização”, bastando que se comprove a existência de uma série mínima de “burlas”, envolta numa intencionalidade que possa dar substância a um modo de vida tal como este conceito é entendido pelo comum dos cidadãos, cabendo também notar que a mesma não é incompatível com o exercício, pelo agente, de outra actividade, lícita ou não e remunerada ou não.

4. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art. 65°, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.

5. A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

A figura da “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa

6. A faculdade de “atenuação especial da pena” prevista no art. 201° do C.P.M. não tem aplicação quando em causa está o crime de “burla”.

7. Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.

Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo



Processo nº 289/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão datado de 10.01.2019, proferido pelo Colectivo do T.J.B., decidiu-se condenar B (B), arguida com os sinais dos autos, como autora material da prática, em concurso real, de 14 crimes de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. b) do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão cada, e outros 5 de “burla de valor elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 e 4, al. b) e 196°, al. a) do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão cada.

Em cúmulo jurídico, foi a arguida condenada na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão, assim como no pagamento das indemnizações discriminadas no Acórdão do T.J.B.; (cfr., fls. 1493 a 1509-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido recorreu a arguida para, em síntese, alegar que a sua conduta devia ser considerada como a prática de um (só) “crime continuado”, alegando também que verificada não está a “circunstância qualificativa” por fazer da burla “modo de vida”, pedindo, também, a “atenuação especial da pena”; (cfr., fls. 1525 a 1532).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 1538 a 1540).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.1525 a 1532 dos autos, a recorrente solicitou a redução da pena aplicada pelo Tribunal a quo no Acórdão recorrido, alegando a verificação in casu do crime continuado, a reparação parcial dos prejuízos causados aos 15º e 19º ofendidos, bem como a inexistência do facto de fazer burla modo de vida.
Antes de mais, subscrevemos as criteriosas explanações do ilustre colega na douta Resposta (cfr. fls.1538 a 1540 dos autos).
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Tomando como pedra angular a disposição no n.º2 do art.29º do Código Penal de Macau, o Venerando TUI tem reiteradamente asseverado que «O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.» (vide. Acórdãos nos Processos n.º78/2012, n.º57/2013 e n.º81/2014)
E adverte ainda que o fundamento do crime continuado radica na considerável diminuição da culpa do agente, determinada por uma actuação no quadro de uma mesma solicitação exterior (vide. Acórdão no Processo n.º25/2013), e que «Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior.» (vide. Acórdãos nos Processos n.º57/2013 e n.º81/2014)
No caso sub judice, os factos provados patenteiam, com certeza e nitidez, que “根據已證事實及載於卷宗內與被害人的通訊紀錄,上訴人會因應被害人的具體背景和需求,定出不同的詭計騙取信任,包括冒充不同身份(旅行社的員工、旅行社負責人的親屬)、訛稱不同種類的優惠(學生優惠、具期限或不具期限機票換領、以及介紹更多朋友成功購買方有折扣)。” O que cauciona seguramente a perspicácia da conclusão extraída pelo ilustre colega, no sentido de “這除了反映出「實行之方式本質上不相同」外,還反映出上訴人每次騙取不同被害人的信任時,都是重新構想、重新準備和重新安排的,相關事實顯示其慣常行騙的傾向,談不上「可相當減輕上訴人罪過之同一外在誘因」,因此,原審法院不以連續犯論處,並無不當之處。” Por isso mesmo, é fatalmente inconsistente a invocação da verificação in casu do crime continuado.
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Repare-se que «O conceito de “modo de vida” não deve confundir-se com o de “habitualidade”, conceito anteriormente adoptado e também não significa exclusividade na obtenção de proventos. Tem exactamente que ver com a forma como se desenvolve a actividade, tal como se de emprego, pluri-emprego ou emprego parcial se tratasse. Afasta-se a ocasionalidade, mas adere-se a uma ideia de carreira criminosa, ocupação de vida direccionada a esse fim.» (vide. Acórdão do TSI no Processo n.º280/2006)
Pois, tal conceito desdobra-se em duas vertentes, exigindo-se normalmente para a sua verificação, a efectivação de uma série mínima de actos da mesma natureza que, com alguma estabilidade, sejam a fonte dos proventos necessários à vida em comunidade do seu autor, seja este um modo exclusivo ou parcial de ganhar a vida. (cfr. aresto do TSI no Processo n.º280/2006)
De qual modo, o que importa é que cabe ao bom senso do Tribunal decidir se o número, forma, e circunstâncias que rodearam a prática dos crimes cometidos deve ser considerada como prática dos mesmos como “modo de vida”. (vide. Acórdãos do TSI nos Processos n.º138/2003 e n.º219/2007)
Sopesando as 19 condutas imputadas à recorrente e os antecedentes criminais em conformidade com as brilhantes orientações jurisprudenciais acima aludidas, colhemos que se verifica, no vertente caso, a circunstância consignada na alínea b) do n.º4 do art.211º do Código Penal, pelo que é sólida e inatacável a conclusão do douto Tribunal a quo que reza “故嫌犯的行為符合構成有關罪狀的主觀及客觀要件,構成生活方式之情況。”
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Os factos provados 45 a 48 e 64 a 68 bem como a condenação do Tribunal a quo demonstram inequivocamente que as entregas dos bilhetes de avião e telemóveis às 15ª e 19ª ofendidas não foram tidas em devida atenção ao calcular os concretos prejuízos de cada uma delas, e ainda se encontraram valoradas na correspondente subsunção. Daí decorre que as sobreditas entregas não podem ser enquadradas na “restituição ou reparação” previstas no art.201º do CPM, nem têm virtude atenuação especial.
Ressalvado devido respeito pela opinião diferente, e de acordo com as disposições nos arts.65º e 66º do Código Penal de Macau, afigura-se-nos que não pode aliviar a ilicitude e a culpa o argumento (da recorrente) de que “案發時上訴人只有21歲左右,年紀尚輕,對於犯罪指控已全部承認,只因另一案而欠下巨額款項,以至其於毫無選擇之情況下,繼續作出相同之犯罪,以彌補該案之被害人損失,而本案並非為著自身之利益犯罪。”
Com efeito, não se descortina, nos autos, circunstância de atenuação especial, e a graduação das penas parcelares e da correspondente pena única se mostra equilibrada.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 1550 a 1551-v).

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Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 1499-v a 1506, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).

Do direito

3. Resulta do que se deixou relatado que vem a arguida recorrer do Acórdão do T.J.B. que a condenou pela prática como autora material e em concurso real de 14 crimes de “burla (como modo de vida)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. b) do C.P.M., na pena parcelar de 2 anos e 3 meses de prisão cada, e outros 5 de “burla de valor elevado (e como modo de vida)”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 3 e 4, al. b) e 196°, al. a) do C.P.M., na pena também parcelar de 2 anos e 6 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão e no pagamento das indemnizações aí discriminadas.

Considera que a sua conduta devia integrar à prática de um (só) “crime continuado”, que verificada não está a “circunstância qualificativa” por ter cometido o(s) crime(s) “como modo de vida”, pedindo uma “atenuação especial da pena”.

Vejamos, começando pela alegada “continuação criminosa”.

Nos termos do art. 29° do C.P.M.:

“1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

E como já tivemos oportunidade de consignar:

“A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores”; (cfr. v.g., o Ac. da Rel. de Porto de 25.07.1986, in B.M.J. 358°-267, aqui citado como mera referência, e os recentes Acs. do ora relator de 28.09.2017, Proc. n.° 638/2017, de 23.11.2017, Proc. n.° 810/2017 e de 12.07.2018, Proc. n.° 534/2018).

Do mesmo modo, Maia Gonçalves, (referindo-se a idêntico artigo do C.P. Português), considera que com o preceito em questão – o art. 30° – se perfilha “o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime. (...) É claro que embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma dolosa ou culposa. Isto se deduz do uso do advérbio efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa”; (vd., “C.P.P. Anotado”, 8ª ed., pág. 268).
“Posto que para que uma conduta seja considerada delituosa se torna necessário que para além de antijurídica seja, igualmente, culposa, a culpa apresenta-se – assim – como elemento limite da unidade da infracção, pois que sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes o mesmo tipo legal de crime se torna aplicável, de onde se nos depare uma pluralidade de infracções.
Assente, então, que sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa”.

Isto é, o critério teleológico (e não naturalístico) adoptado pelo legislador na destrinça entre unidade e pluralidade de infracções, pressupõe o juízo de censurabilidade, pelo que haverá tantas infracções quantas as vezes que a conduta que o preenche se tornar reprovável.

No mesmo sentido, e em relação ao Código de 1886 afirmava já E. Correia que:

“Se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídicos e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções. Mas porque a acção, além de antijurídica, tem de ser culposa, pode acontecer que uma actividade subsumível a um mesmo tipo mereça vários juízos de censura. Tal sucederá no caso de à dita actividade corresponderem várias resoluções, no sentido de determinações de vontade, de realização do projecto criminoso”, e que “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime e às quais presidiu pluralidade de resoluções devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam considerável diminuição da culpa. Tal sucederá, quando a repetição da actividade for facilitada, de modo considerável, por uma disposição exterior das coisas para o facto”; (cfr., “Direito Criminal”, Vol. 2, págs. 201, 202, 209 e 210, e ainda em “Unidade e Pluralidade de Infracções”, pág. 338).

Por sua vez, e tratando mais especificamente da matéria do “crime continuado”, também já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar que:

“O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 28.09.2017, Proc. n.° 638/2017, de 12.04.2018, Proc. n.° 166/2018 e de 11.10.2018, Proc. n.° 716/2018).

Também por douto Acórdão de 24.09.2014, Proc. n.° 81/2014, (e com abundante doutrina sobre a questão), afirmou o Vdo T.U.I. que:

“O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, e que,
“Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”.

Aqui chegados, atenta a factualidade dada como provada que nenhuma censura merece, e como – bem – se salienta no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto, verificados cremos que não estão os necessários pressupostos legais para se poder considerar existir uma “continuação criminosa” na conduta da arguida ora recorrente.

De facto, não se vislumbra nenhuma “situação exterior” que diminua, “consideravelmente”, a sua culpa, sendo caso para se dizer que da referida factualidade dada como provada colhe-se antes uma “nova decisão” e “resolução”, com um “renovar da execução do plano” e “esforço” da arguida para “convencer” os ofendidos e conseguir levar a cabo os seus intentos de enriquecer à custa do “erro” e do património de terceiros.

Assim, há que julgar improcedente o recurso na parte em questão.

–– Diz também a arguida que verificada não devia estar a “circunstância qualificativa” prevista no art. 211°, n.° 4, al. b) do C.P.M., ou seja, a de fazer da prática dos crimes de burla “modo de vida”.

Porém, também aqui, não se vê que tenha a arguida razão.

Vejamos.

A questão já foi objecto de decisão deste T.S.I. assim como do Vdo T.U.I.; (cfr., v.g., para além dos citados no douto Parecer, os Acs. deste T.S.I. de 07.10.2004, Proc. n.° 231/2004, e o de 16.01.2014, Proc. n.° 759/2013, e os do Vdo T.U.I. de 10.10.2007, Proc. n.° 38/2007, de 26.10.2011, Proc. n.° 40/2011 e o de 22.05.2013, Proc. n.° 26/2013).

E, cremos que firme e pacífico é o entendimento de que para que se verifique a dita “circunstância”, necessário não é nem a “habitualidade” nem a “profissionalização”, bastando que se comprove a existência de uma série mínima de “burlas”, envolta numa intencionalidade que possa dar substância a um modo de vida tal como este conceito é entendido pelo comum dos cidadãos, cabendo também notar que a mesma não é incompatível com o exercício, pelo agente, de outra actividade, lícita ou não e remunerada ou não.

Ora, no caso dos autos, ponderando no “número de crimes cometidos”, (19), no “período de tempo” em que ocorreram, e ponderando também que a arguida foi igualmente condenada no âmbito dos Procs. n°s CR2-16-0270-PCC e CR3-17-0282-PCC pela prática de idênticos crimes de “burla”, cremos que evidente é a referida “intencionalidade que dá substância a um estilo de vida”, nenhuma censura merecendo assim o decidido, sendo, igualmente, de improceder, o recurso na parte em questão.

–– Quanto à(s) pena(s).

Pois bem, para cada 1 dos 19 crimes de “burla” pela arguida cometidos, cabe a pena de 2 a 10 anos de prisão; (cfr., art. 211°, n.° 4 do C.P.M.).

Nos termos do art. 40° do C.P.M.:

“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.

Em sede de determinação da pena, tem este T.S.I. entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 13.09.2018, Proc. n.° 626/2018, de 17.01.2019, Proc. n.° 1077/2018 e de 21.02.2019, Proc. n.° 5/2019).

Prescreve também o art. 66° do C.P.M.:

“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo”.

Tratando desta “matéria” tem-se entendido que a figura da “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.

Como repetidamente temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.06.2018, Proc. n.° 397/2018, de 10.01.2019, Proc. n.° 1032/2018 e de 21.02.2019, Proc. n.° 6/2019).

No caso, o dolo da arguida é directo e muito intenso, desenvolvendo e persistindo na sua conduta por um período relativamente longo, e, tendo já outras duas condenações pela prática de idênticos crimes de “burla”, não se vê como concluir que diminuta seja a ilicitude da sua conduta, a sua culpa ou a necessidade da pena.

Por sua vez, nos termos do art. 201° do C.P.M.:

“1. Quando a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for restituída, ou o agente reparar o prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
2. Se a restituição ou reparação for parcial, a pena pode ser especialmente atenuada”.

E, em nossa opinião, nem a “matéria de facto” permite que se considere que verificada está a situação prevista, sendo, igualmente, de notar, que em face do “tipo de crime”, (“burla”) aplicável também não é o referido comando legal; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 17.07.2014, Proc. n.° 304/2014 e de 18.01.2018, Proc. n.° 1142/2017).

Assim, estando as penas parcelares aplicadas pelos crimes em questão situadas (tão só) a 3 e 6 meses do seu mínimo, evidente se apresenta que nenhum motivo existe para se considerar as mesmas “excessivas”, podendo apenas pecar por benevolência.

Com efeito, e como já decidiu este T.S.I.: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).

E, como se tem igualmente entendido:

“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).

“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto da pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).

Nesta conformidade, à vista está a solução quanto à questão da(s) “medida(s) da(s) pena(s)” parcelares.

–– Quanto à “pena única” resultado do “cúmulo jurídico”, há que atentar no estatuído no art. 71° do C.P.M., que dispõe que:

“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”; (sub. nosso).

Abordando idêntica questão à ora em apreciação, e tendo em consideração o teor do n.° 1 do transcrito art. 71°, teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que:

“Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 08.03.2018, Proc. n.° 61/2018, de 11.10.2018, Proc. n.° 716/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 1160/2018).

Atento ao que até aqui se deixou exposto, (e que é de manter), e certo sendo que, in casu, em causa está uma moldura penal com um “limite mínimo de 2 anos e 6 meses”, e um “limite máximo de 44 anos de prisão”, ou melhor, por força do art. 41° do C.P.M., 30 anos, cremos que censura também não merece a pena única de 7 anos e 6 meses de prisão fixada que, em face da forte necessidade de prevenção criminal especial e geral que, no caso, se impõe, de forma alguma pode ser considerada inflaccionada.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela arguida, com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 11 de Abril de 2019

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 289/2019 Pág. 32

Proc. 289/2019 Pág. 31