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Processo nº 234/2019 Data: 02.05.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “usura para jogo – agravada – pela exigência ou aceitação de documento”.
Erro notório na apreciação da prova.



SUMÁRIO

  Padece a “decisão da matéria de facto” do vício de “erro notório na apreciação da prova” se se apresentar contrária às regras de experiência.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 234/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, como autor da prática de 1 crime de “usura para jogo”, p. e p. pelo art. 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 2 anos; (cfr., fls. 174 a 182 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, recorreu o Ministério Público, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “violação do princípio da livre apreciação da prova” e “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a condenação do arguido como autor de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelo art. 13°, n.° 1 e 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., como acusado tinha sido; (cfr., fls. 188 a 193-v).

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Respondeu o arguido, pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 195 a 201).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“O Ministério Público interpôs o presente recurso do acórdão de 16 de Janeiro de 2019, exarado no processo CR3-17-0340-PCC, que condenou o arguido A na pena principal de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, pela co-autoria de um crime de usura para jogo, previsto e punível pelo artigo 13.°, n.° 1, da Lei 8/96/M, de 22 de Julho, com referência ao artigo 219.°, n.° 1, do Código Penal.
O arguido estava acusado, além do mais, de um crime de usura para jogo com exigência ou aceitação de documentos, da previsão dos artigos 14.° e 13.° daquela Lei 8/96/M, porquanto, nos termos do libelo acusatório, por exigência do arguido e doutro indivíduo não identificado, o ofendido B entregara ao arguido, como garantia de um empréstimo de HKD 50.000,00 (cinquenta mil Hong Kong dólares), o seu Bilhete de Identidade, da República Popular da China, bem como um cartão ATM e um telemóvel.
Todavia, e para o que na economia do presente recurso interessa, o acórdão viria a dar como não provado que o ofendido tenha entregado o seu Bilhete de Identidade da RPC, um cartão ATM e um telemóvel ao arguido como garantia do empréstimo e que o arguido apreendeu o documento de identificação do ofendido como garantia do empréstimo. Daí que tenha considerado não preenchido o elemento típico exigência ou aceitação de documentos e haja declinado punir o arguido nos moldes daquele artigo 14.°, fazendo-o por reporte à moldura do tipo-base do artigo 13.° da Lei 8/96/M.
É contra este entendimento que se insurge a Exm.a colega recorrente, que imputa ao acórdão recorrido ofensa ao princípio da livre convicção, erro notório na apreciação da prova e violação do artigo 14.° da Lei 8/96/M.
Cremos que lhe assiste razão na questão do erro notório na apreciação da prova, permitindo-nos dar aqui por reproduzida a sua pertinente argumentação nessa parte.
Na verdade, e salvo melhor juízo, não vislumbramos que a prova produzida possa caucionar o veredicto de “não provado” assinalado à matéria de facto supra-referida, relativa à garantia do empréstimo, particularmente no que respeita ao Bilhete de Identidade da RPC de que era portador e titular o ofendido.
É insofismável que o ofendido, num depoimento verosímil, lógico e com alguma riqueza de pormenor afirmou inequivocamente que o arguido e pessoal que o acolitava exigiram o seu Bilhete de Identidade da RPC, o seu telemóvel e um cartão ATM como garantia do empréstimo de HKD 50.000,00, exigência que ele aceitou. E, com base nesse depoimento, o tribunal deu como provado o empréstimo e a exigência. Mas o mesmo depoimento verosímil, lógico e com alguma riqueza de pormenor já não serviu para o tribunal dar como provada a entrega da garantia ao arguido, nomeadamente do Bilhete de Identidade da RPC.
Ora bem, não foi produzida prova que contrariasse ou sequer abalasse o depoimento do ofendido, e o certo é que o tribunal não analisa criticamente as provas de forma a explicar por que razão não deu crédito a parte do depoimento do ofendido, sendo evidentemente insuficiente para tal o dizer-se que o teor do VCD não corrobora o alegado pelo ofendido. O facto de não se conseguir identificar, através do visionamento do vídeo, os concretos objectos que o ofendido entregou ao arguido não implica que se dê como não provada essa parte da versão do ofendido. O testemunho é um meio de prova válido – chama-se, até, à prova testemunhal a rainha das provas – que se impõe se não for contraditado ou posto em xeque por outras provas e o tribunal não tiver fundamentos para questionar a veracidade do depoimento. O visionamento do vídeo e a realidade que ele transmite pode constituir um complemento probatório, que servirá para reforçar o depoimento, confirmando-o, ou que poderá pôr o depoimento em xeque, abalando-o. No caso, o vídeo até confirma o depoimento do ofendido, evidenciando a entrega, por parte deste, de certos objectos. A circunstância de não se conseguir identificar, no visionamento, com exactidão os objectos que são entregues não é determinante para se fazer apelo a dúvidas, posto que o depoimento do ofendido não apresenta desfasamentos, incongruências ou anomalias de discurso que permitam pôr em causa a veracidade das ocorrências que reporta, e certo é, como já se disse, que o acórdão não avança qualquer razão concreta para não conferir crédito a parte do depoimento do ofendido.
O direito probatório não impõe o exaurimento da prova ao ponto de exigir a certeza da irrefutabilidade dos factos, nomeadamente por dupla prova para confirmação dos depoimentos através de gravação vídeo das ocorrências que eles reportam…
Temos, assim, que a conclusão que o tribunal se permitiu extrair, relativamente à dúvida sobre a retenção do Bilhete de Identidade do ofendido, além de não se mostrar consentânea com as declarações deste, cujo teor não foi posto em causa, atenta mesmo, em certa medida, contra as máximas da experiência, pois não intui que aquelas declarações até se mostram corroboradas pelo vídeo.
Cremos, em suma, que procede o invocado erro notório na apreciação da prova.
Posto isto, coloca-se a dúvida acerca da necessidade do reenvio do processo para novo julgamento. Por nós, afigura-se que o processo contém os elementos necessários à decisão da causa neste tribunal de recurso, o que passará por alterar a matéria de facto, dando como provados os pontos 6 e 19 da acusação, este último na parte em que imputa ao arguido a retenção do documento de identificação do ofendido como garantia do empréstimo.
Ante o exposto, o nosso parecer vai no sentido do provimento do recurso, com alteração daqueles pontos da matéria de facto e da condenação principal proferida em primeira instância, de molde a que o arguido seja condenado por um crime de usura com exigência de documentos, da previsão do artigo 14.°, com referência ao artigo 13.°, n.° 1, da Lei n.° 8/96/M, em pena que não exceda os 3 anos de prisão, não repugnando à manutenção da suspensão da execução da pena pelos fundamentos aduzidos no acórdão recorrido”; (cfr., fls. 264 a 266).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 176-v a 178-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Como se deixou relatado, vem o Ministério Público recorrer do Acórdão prolatado pelo T.J.B., insurgindo-se contra a decisão de condenação do arguido A, como autor da prática de 1 crime de “usura para jogo”, p. e p. pelo art. 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M..

Em síntese, e como já se deixou relatado, é de opinião que incorreu o Colectivo a quo em “violação do princípio da livre apreciação da prova” e “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a condenação do arguido como autor da prática 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelos art°s 13°, n.° 1 e 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., (como acusado estava).

Vejamos, (e certo sendo que o vício de “erro” ocorre quando se violam “regras sobre o valor da prova tarifada”, “regras de experiência” e “legis artis” – cfr., v.g., o Ac. de 07.06.2018, Proc. n.° 376/2018 e de 24.01.2019, Proc. n.° 1048/2018 – muito não se mostrando de dizer).

Pois bem, prescreve o art. 13° da Lei n.° 8/96/M que:

“1. Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial para si ou para terceiro, facultar a uma pessoa dinheiro ou qualquer outro meio para jogar, é punido com pena correspondente à do crime de usura.
2. Presume-se concedido para jogo de fortuna ou azar a usura ou mútuo efectuado nos casinos, entendendo-se como tais para este efeito, todas as dependências especialmente destinadas à exploração de jogos de fortuna ou azar, bem como outras adjacentes onde se exerçam actividades de carácter artístico, cultural, recreativo, comercial ou ligadas à indústria hoteleira.
3. A conduta do mutuário não é punível”.

Por sua vez, estatui o seguinte art. 14° da mesma Lei que:

“Se o crime previsto no artigo anterior for praticado com aceitação ou exigência dos respectivos devedores de documento de identificação nos termos da alínea c) do artigo 243.º do Código Penal de Macau, para servir de garantia, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.

No caso, estando o arguido acusado da prática de 1 crime de “usura para jogo – agravada – pela exigência do documento de identificação do devedor”, p. e p. pelos art°s 13° e 14° da Lei n.° 8/96/M, foi o mesmo apenas condenado com referência ao referido art. 13° por provado não ter resultado que ocorreu efectiva exigência e entrega pelo devedor do seu documento de identificação, ou seja, do seu Bilhete de Identidade da R.P.C..

E, lendo-se o Acórdão prolatado e ora recorrido, cremos que a razão está do lado do ora Recorrente, pois que cremos que na parte em questão – onde se deu como “não provada” a “exigência e entrega do Bilhete de Identidade do ofendido”, incorreu o Colectivo a quo no imputado vício de “erro notório”.

Com efeito, (como – bem – se salienta do douto Parecer que antecede), e antes de mais, importa ter presente que tal “exigência e entrega do Bilhete de Identidade” foi denunciada e declarada pelo próprio ofendido, e ainda que a gravação da ocorrência não permita confirmar que de entre os objectos pelo ofendido entregues se incluía o aludido Bilhete de Identidade, o certo é que não o afasta.

E, dest’arte, constatando-se que foram tais “realidades” ponderadas pelo Colectivo a quo na decisão que proferiu, afigura-se-nos que a mesma viola as “regras de experiência e normalidade das coisas”, pois que, sabendo-se como são “negociados” e “processados” estes “empréstimos para jogo” em Macau, provado estando que a dita “entrega do Bilhete de Identidade” constituía uma das “condições” para a sua concessão, e que aquelas (condições) foram (todas) pelo ofendido aceites antes da sua consumação, visto está que se incorreu no assacado vício de “erro notório” que, porque por esta instância insanável, (por falta de “renovação de prova” que não foi requerida), implica, necessariamente, o reenvio dos autos para novo julgamento da referida matéria nos termos do art. 418° do C.P.P.M..

Nada mais havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, ordenando-se o reenvio do processo nos exactos termos consignados.

Custas pelo arguido recorrido com a taxa de justiça de 4 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor do arguido no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 02 de Maio de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 234/2019 Pág. 14

Proc. 234/2019 Pág. 13