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Processo nº 404/2019 Data: 09.05.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Liberdade condicional.
Pressupostos.


SUMÁRIO
1. A liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.

2. É de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social.

3. A compatibilidade da libertação condicional com a defesa da ordem e da paz social não se reconduz à previsível ausência de expressões públicas de inconformismo, mas antes, (e mais latamente), à compatibilidade da libertação condicional com a defesa da sociedade e a prevenção da prática de crimes, não sendo de se olvidar também que nos termos do art. 43°, n.° 2 do C.P.M. se prescreve que: “A execução da pena de prisão serve igualmente a defesa da sociedade, prevenindo o cometimento de crimes”.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 404/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, com os restantes sinais dos autos e ora preso no Estabelecimento Prisional de Coloane (E.P.C.), vem recorrer da decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, motivando para, a final, concluir, imputando à decisão recorrida o vício de violação do disposto no art. 56° do C.P.M.; (cfr., fls. 59 a 68 que como as que adiante se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os legais efeitos).

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Em resposta, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 74 a 75-v).

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação (cfr. fls.59 a 68 dos autos), o recorrente solicitou a revogação do douto despacho recorrido e a sua substituição pela decisão de conceder a liberdade condicional, assacando-lhe a violação do preceito no art.56º do CPM, por entender que ele reunir já todos os pressupostos.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações do ilustre Colega na douta Resposta (vide. fls.74 a 75 verso dos autos).
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No dia de hoje, constitui jurisprudência firme que a concessão da liberdade condicional depende do preenchimento cumulativo de todos os pressupostos, quer formais quer substanciais, consignados no art.56º do CPM, bastando a não verificação de qualquer um para se negar o pedido da liberdade condicional (a título exemplificativo, Acórdão do TSI no Processo n.º195/2003).
Importa recordar que a liberdade condicional não é uma medida de clemência ou de recompensa por mera boa conduta prisional, e serve na política do C.P.M. um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o recluso possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão. (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º50/2002)
Daí decorre que se, não obstante um comportamento prisional adequado, pelo passado do recluso e perspectivas de reintegração se não se formula um juízo de prognose favorável a uma regeneração e se teme pelas razões de prevenção geral. (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º225/2010)
Ainda se inculca reiteradamente que cada situação deve ser observada em concreto e caso a caso, num circunstancialismo de modo, tempo e lugar próprios, analisando de forma crítica a personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo se vai reinserir na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo ainda constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica bem como da paz e tranquilidade sociais. (cfr. Acórdãos do TSI nos Processos n.º225/2010 e n.º404/2011)
Envolvendo conceitos indeterminados de prognose, as alíneas a) e b) do n.º1 do art.56º dotam aos julgadores certa margem de livre apreciação na interpretação e na valorização, pelo que a convicção de não verificação dos pressupostos subjectivos só poderia ser neutralizado se houvesse uma exemplar e excelente evolução activa da personalidade do recluso durante a execução da prisão, e não um mero comportamento passivo cumpridor das regras básicas de conduta prisional. (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º9/2002)
No vertente caso, não há margem para dúvida de que o MMº Juiz a quo notou e avaliou positivamente o progresso da personalidade adquirido pelo recorrente durante o cumprimento da pena de prisão cujo 2/3 se completou em 11/03/2019, o que inquietou o MMº Juiz a quo consiste em se o mesmo conquistou já suficiente capacidade de não voltar a cometer crime e de conduzir a sua vida de modo socialmente responsável.
Com todo o respeito pela opinião diferente, ficamos com a imensa preocupação sentida pelos MMº Juiz a quo e ilustre colega, por virtude de o recorrente ter sido consumidor de droga. Pois, a regra de experiência mostra que é difícil abandonar o vício de consumo de droga.
Em relação à prevenção geral, o MMº Juiz a quo aponta prudentemente que “在一般預防方面,本案中被判刑人為本澳居民,其所觸的販毒罪屬嚴重犯罪,行為本身惡性極高,對社會安寧及法律秩序均構成嚴重的影響。眾所周知,毒品對人體健康的損害、完整家庭的破壞及對社會的危害性都非常嚴重,而且社會上吸毒及販毒的行為出現越趨年輕化的情況。考慮到本特區日益嚴重及年輕化的毒品犯罪,以及年輕人受毒品禍害而社會未來所造成的不良影響,普遍社會成員不能接受販賣毒品荼毒他人的被判刑人被提前釋放。”
Assim, não obstante se militarem, nos autos, umas circunstâncias favoráveis ao recorrente, mas, na esteia das persuasivas jurisprudências supra citadas, aderimos, sem reserva, à cristal preocupação do MMº Juiz a quo, no sentido de aquele ainda não preencher, por ora, os pressupostos consagrados no n.º1 do art.56º do CPM.
Com efeito, como bem observou o MMº Juiz a quo, existe ainda a séria dúvida de que o recorrente tenha já adquirido a estável capacidade de conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem ir cometer crime; e prevê-se razoavelmente que a colocação dele em liberdade nesta altura não é compatível com a paz social.
De qualquer modo, importa ter presente que é generalizadamente consabido que em termos comparativos, as sanções penais da ordem jurídica da RAEM são mais benevolentes. Daí que Macau deve tentar todo o esforço para evitar a desastre de ser destino ou “paraíso” de delinquentes.
Nesta linha de perspectiva, não podemos deixar de entender que não tem cabimento o pedido do recorrente, e não merece censura alguma o douto despacho em escrutínio, por nos se afigurar que tal despacho se mostrar plenamente conforme com o disposto no art.56º do CPM.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 82 a 83-v).

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Corridos os vistos legais dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada obstando, vieram os autos à conferência.

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Flui dos autos a factualidade seguinte (com relevo para a decisão a proferir):

– A, ora recorrente, deu entrada no E.P.C. em 13.03.2014, para cumprimento de uma pena única de 7 anos e 6 meses de prisão, resultado do cúmulo jurídico de pena que lhe foi aplicada pela prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, 1 de “consumo ilícito de estupefacientes” e 1 outro de “detenção indevida de utensilagem”;
– em 11.03.2019, cumpriu dois terços de tal pena, expiando-a em 11.09.2021;
– se lhe vier a ser concedida a liberdade condicional, irá viver com a sua família, em Macau, tencionando trabalhar como cozinheiro.

Do direito

3. Insurge-se o ora recorrente contra a decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, afirmando, em síntese, que se devia considerar que reunidos estão todos os pressupostos do art. 56° do C.P.M. para que tal libertação antecipada lhe fosse concedida.

Vejamos.

— Preceitua o citado art. 56° do C.P.M. (que regula os “Pressupostos e duração” da liberdade condicional) que:

“1. O tribunal coloca o condenado a pena de prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo 6 meses, se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
2. A liberdade condicional tem duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, mas nunca superior a 5 anos.
3. A aplicação da liberdade condicional depende do consentimento do condenado”; (sub. nosso).

Constituem, assim, “pressupostos objectivos” ou “formais”, a condenação em pena de prisão superior a seis (6) meses e o cumprimento de dois terços da pena, num mínimo de (também) seis (6) meses; (cfr. n.° 1).

“In casu”, atenta a pena única que ao recorrente foi fixada, e visto que se encontra ininterruptamente preso desde 13.03.2014, expiados estão já dois terços de tal pena, pelo que preenchidos estão os ditos pressupostos formais.

Todavia, e como é sabido, tal “circunstancialismo” não basta, já que não sendo a liberdade condicional uma medida de concessão automática, impõe-se para a sua concessão, a verificação cumulativa de outros pressupostos de natureza “material”: os previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do referido art. 56°.

Com efeito, importa ter em conta que a liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão; (cfr., v.g., J. L. Morais Rocha e A. C. Sá Gomes in “Entre a Reclusão e a Liberdade – Estudos Penitenciários”, Vol. I, em concreto, “Algumas notas sobre o direito penitenciário”, IV cap., pág. 41 e segs.).

Na esteira do repetidamente decidido nesta Instância, a liberdade condicional “é de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir óbviamente matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 21.02.2019, Proc. n.° 67/2019, de 14.03.2019, Proc. n.° 169/2019 e de 25.04.2019, Proc. n.° 339/2019, podendo-se também sobre o tema ver o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 540/16).

Assim, detenhamo-nos na apreciação de tais pressupostos de natureza material.

Ponderando na factualidade atrás retratada, poder-se-á dizer que é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, mostrando-se a pretendida liberdade condicional compatível com a defesa da ordem jurídica e paz social?

Cremos que de sentido negativo terá de ser a resposta.

De facto, ponderando no que dos autos consta, atento – em especial, nos tipos de crime pelo ora recorrente cometidos, nomeadamente, o de “tráfico de estupeficantes”, e nos prejuízos sociais e para a saúde pública que o mesmo causa, que a conduta do ora recorrente não se tratou de uma “situação pontual”, e ponderando, outrossim, na pena aplicada, na expiada e no período de pena que falta cumprir, (e que apenas atinge o seu términus em 11.09.2021, a mais de 2 anos), afigura-se-nos que há que acautelar a sua repercussão na sociedade, o que equivale a dizer que, (pelo menos, por ora), não podem ser postergadas as exigências de tutela do ordenamento jurídico, (cfr., F. Dias in “Dto Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 528 e segs.), havendo, igualmente, que salvaguardar a confiança e as expectativas da comunidade no que toca à validade da norma violada através do “restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada”, impondo-se, também por isso, uma reafirmação social mais intensa da validade das normas jurídicas violadas; (cfr., F. Dias in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 106 e o Ac. da Rel. do Porto de 10.01.2018, Proc. n.° 417/15).

Como no recente Ac. do T.R. de Évora de 05.02.2019, (Proc. n.° 669/16), se considera, importa ter em conta que “a compatibilidade da libertação condicional com a defesa da ordem e da paz social não se reconduz, restritivamente, à previsível ausência de expressões públicas de inconformismo, mas antes, mais latamente, à compatibilidade da libertação condicional com a defesa da sociedade e a prevenção da prática de crimes”, não sendo de se olvidar também que nos termos do art. 43°, n.° 2 do C.P.M. se prescreve que: “A execução da pena de prisão serve igualmente a defesa da sociedade, prevenindo o cometimento de crimes”.

Assim, em face das expostas considerações, e verificado não estando o pressuposto do art. 56°, n.° 1, al. b) do C.P.M., há que se negar provimento ao presente recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam julgar improcedente o recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça de 4 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 09 de Maio de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 404/2019 Pág. 16

Proc. 404/2019 Pág. 15