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Processo nº 287/2019 Data: 25.04.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “furto”.
Crime de “desobediência”.
Erro notório.
Reenvio.

SUMÁRIO
  Padece a decisão recorrida do vício de “erro notório” se na acta da audiência de julgamento constar que o arguido fez uso do seu “direito ao silêncio”, consignando-se no Acórdão que o Tribunal formou a sua convicção ponderando as “declarações do arguido, que confessou os factos”, e nenhum motivo existir para se considerar que tais “afirmações” constituem (mero) “lapso” ou “erro de escrita” passível de correcção nos termos do art. 361° do C.P.P.M..

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 287/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguida com os restantes sinais dos autos, respondeu em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser condenada pela prática como autora material e em concurso real de 1 crime de “furto qualificado”, p. e p. pelo art. 198°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, e 1 outro de “desobediência”, p. e p. pelo art. 312°, n.° 1, al. b) do C.P.M., na pena de 5 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico com as penas aplicadas no âmbito dos Procs. n°s CR3-17-0258-PCC e CR5-17-0363-PCS, fixou-lhe o Tribunal a pena única de 4 anos e 9 meses de prisão, condenando-a também no pagamento da indemnização de HKD$500.000,00 ao ofendido dos autos; (cfr., fls. 267 a 274-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a arguida recorreu, para imputar ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”, “violação os art°s 324°, 325° e 326° do C.P.P.M.” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 288 a 307).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 314 a 318-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Submetida a julgamento em processo comum perante tribunal colectivo, foi a ora recorrente A condenada, pela prática de um crime de furto qualificado e de um crime de desobediência, respectivamente nas penas de 3 anos e 6 meses de prisão e de 5 meses de prisão, o que, em cúmulo jurídico, redundou na pena conjunta de 3 anos e 9 meses de prisão.
Insurge-se contra o acórdão condenatório, impugnando as suas vertentes penal e civil, imputando-lhe os vícios de erro notório na apreciação da prova, violação do direito do arguido ao silêncio e de excessividade da pena, no que é rebatida pela contraminuta do Ministério Público.
Vejamos, começando pelo invocado erro notório.
É facto incontestado e incontestável que a arguida apenas prestou declarações sobre a situação individual, familiar e económica. Sobre o objecto do processo, a arguida declarou pretender manter-se em silêncio e assim se manteve rigorosamente durante toda a audiência. É o que resulta da acta, cuja conformidade não foi posta em causa.
Posto isto, uma primeira ilação se pode de imediato retirar, qual seja a de que a arguida exerceu efectivamente o seu direito ao silêncio, que não foi restringido ou perturbado por quem quer que fosse. Assim, só por equívoco pode intentar convencer de que esse seu direito foi violado.
E, no plano do erro notório, quid juris?
Está em causa a fundamentação da decisão com uma prova inexistente. Em certos ordenamentos jurídicos, como o brasileiro, vigora o entendimento de que a fundamentação com recurso a provas inexistentes acarreta a nulidade da decisão. No nosso ordenamento jurídico não está prevista, salvo melhor juízo, uma tal cominação. Crê-se que a situação, não sendo uma das mais habituais hipóteses de erro notório, deverá todavia enquadrar-se em tal vício. Na verdade, não tendo a arguida e recorrente falado sobre o objecto do processo, não podia a suposta prova resultante das suas putativas declarações ser considerada e valorada no veredicto. O lidar com declarações que não ocorreram e retirar delas uma confissão obviamente inexistente integra, salvo melhor juízo, um erro manifesto na ponderação e apreciação da prova. O tribunal labora, erradamente, na suposição de que a arguida prestou declarações, e erra igualmente ao atribuir-lhe um conteúdo confessório que manifestamente não existe.
Procede, assim, este invocado vício, com prejuízo da apreciação dos restantes fundamentos do recurso e da decisão da causa nesta instância, e obrigando ao reenvio do processo para novo julgamento.
Em suma, na procedência do suscitado vício de erro notório na apreciação da prova, deve conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o douto acórdão recorrido e reenviando-se o processo, nos termos do artigo 418.° do Código de Processo Penal, para novo julgamento”; (cfr., fls. 418 a 419).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 268 a 270, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).

Do direito

3. Vem a arguida recorrer do Acórdão que a condenou pela prática como autora material e em concurso real de 1 crime de “furto qualificado”, p. e p. pelo art. 198°, n.° 2, al. a) do C.P.M., na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, e 1 outro de “desobediência”, p. e p. pelo art. 312°, n.° 1, al. b) do C.P.M., na pena de 5 meses de prisão, e que em cúmulo jurídico com as penas aplicadas no âmbito dos Procs. n°s CR3-17-0258-PCC e CR5-17-0363-PCS, lhe fixou a pena única de 4 anos e 9 meses de prisão, condenando-a também o pagamento da indemnização de HKD$500.000,00 ao ofendido dos autos.

Assaca ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”, “violação os art°s 324°, 325° e 326° do C.P.P.M.” e “excesso de pena”.

Ponderando nas “questões” colocadas, atento o que dos autos consta, assim como ao teor do Acórdão recorrido, evidente se nos apresenta que se incorreu no assacado “erro notório”.

Com efeito, na “acta de julgamento” consta que a arguida exerceu o seu “direito ao silêncio” (em relação à matéria dos autos), verificando-se, que em sede de fundamentação exposta no Acórdão recorrido se refere que a arguida “confessou os factos”; (cfr., fls. 264 e 270).

Ora, razão alguma existindo para se não dar fé ao que da “acta de julgamento” consta, e, atento, em especial, ao que se consignou no dito Acórdão, nenhum motivo havendo para se considerar que em causa está um (mero) “lapso” de escrita passível de correcção nos termos do art. 361° do C.P.P.M. – note-se que tal nem foi requerido, nem pelo Tribunal a quo terá sido assim entendido, já que, a ser “erro de escrita” poderia também ter procedido à sua “correcção” ex-ofício antes da remessa dos autos a esta Instância – visto está que não se pode manter o decidido.

Aliás, e como em “situação semelhante” já decidiu este T.S.I.:

“O facto de o tribunal sentenciador recorrido ter fundado a sua livre convicção sobre os factos imputados ao arguido recorrente em sede do tipo legal de tráfico de menor gravidade do art.o 11.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, na realmente inexistente “confissão integral e sem reservas” dos factos deste delito pelo recorrente, faz padecer a sua decisão condenatória do vício de erro notório na apreciação da prova do art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal”; (cfr., o Ac. de 18.01.2018, Proc. n.° 312/2016).

Com efeito, e como – bem – se nota do douto Parecer que se deixou transcrito, “O lidar com declarações que não ocorreram e retirar delas uma confissão obviamente inexistente integra, salvo melhor juízo, um erro manifesto na ponderação e apreciação da prova. O tribunal labora, erradamente, na suposição de que a arguida prestou declarações, e erra igualmente ao atribuir-lhe um conteúdo confessório que manifestamente não existe”.

Nesta conformidade, há que dar por verificado o imputado vício de “erro notório” que, porque por este T.S.I. insanável, implica o reenvio do processo para novo julgamento sobre toda a matéria do processo, (cfr., art. 418° do C.P.P.M.).

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, decretando-se o reenvio dos autos para novo julgamento.

Sem tributação.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 25 de Abril de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 287/2019 Pág. 10

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