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Processo nº 157/2019 Data: 11.04.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Queda de passageiro em autocarro de transporte colectivo público.
Erro notório na apreciação da prova.
Decisão da matéria de facto.
Responsabilidade civil.
Culpa da lesada.
Responsabilidade objectiva ou pelo risco (da transportadora).
Contrato de Transporte.
Cláusula de incolumidade.
Obrigação de garantia.

SUMÁRIO

1. O vício de “erro notório na apreciação da prova” é um vício – próprio – da “decisão da matéria de facto”, (em que o Tribunal decide a matéria que do julgamento resultou “provada” ou “não provada”).

Se percorrendo a motivação pelo recorrente apresentada se constatar que o seu inconformismo dirige-se – não à referida “decisão da matéria de facto”, mas apenas – à “interpretação e enquadramento” que o Colectivo a quo efectuou da factualidade apurada, imperativo é concluir que a “questão” que coloca nada tem a ver com vício de “erro notório”.

2. No domínio da “responsabilidade civil extracontratual”, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito – isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, um direito ou interesse de outrem legalmente protegido – censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico – ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa – de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto.

E embora predomine a “responsabilidade subjectiva”, baseada na culpa, sancionam-se também situações excepcionais de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação, entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre.

3. Provado não estando nenhum “facto” que permita concluir que a queda da demandante no autocarro se deveu a “culpa” sua – como por exemplo podia suceder se a mesma tivesse escorregado, ou caído na sequência de descuido seu, por desequilíbrio causado pela quebra do salto alto do sapato, ou por qualquer outro motivo – e, não sendo o “acidente imputável a terceiro ou consequência de força maior estranha ao funcionamento do veículo”, impõe-se concluir pela verificação de uma situação de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, regulada no art. 496° do C.C.M..

4. Em sede do “contrato de transporte”, a obrigação para a transportadora não se esgota na “obrigação de deslocar pessoas e coisas de um local para outro mediante determinada contrapartida”, certo sendo que para além dessa obrigação principal e típica, está ainda a empresa transportadora vinculada a outras obrigações de prestação secundárias, acessórias e sem autonomia relativamente à prestação principal e a obrigações laterais, de protecção, de consideração e de cuidado com a pessoa e património da contraparte, sendo nestes deveres que se fundamenta a “cláusula de incolumidade”, que obriga a empresa transportadora a deslocar e a fazer chegar o passageiro, são e salvo, ao seu destino.

5. No “contrato de transporte”, a obrigação (essencial) do transportador não se esgota num (mero) “resultado”, (ou seja, na deslocação de pessoas e/ou coisas de um lugar para outro), sendo também uma “obrigação de garantia”, no sentido em que impende sobre o transportador o dever de zelar pela segurança do passageiro e/ou do objecto transportado, de forma a evitar que qualquer dano lhe possa advir.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 157/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. datado de 15.11.2018 – e prolatado na sequência de novo julgamento por este T.S.I. ordenado – decidiu-se:
- absolver A, arguido com os sinais dos autos, da imputada prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 3 e 138°, al. c) do C.P.M. e art. 93°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007; e
- condenar a demandada civil “COMPANHIA DE SEGUROS DA B (MACAU), S.A.”, (B保險(澳門)股份有限公司), a pagar à demandante C a quantia total de MOP$775.980,00 e juros; (cfr., fls. 380 a 386 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a demandada seguradora recorreu.

Na sua motivação de recurso – e em síntese – imputa à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “errada interpretação e aplicação da lei por violação dos art°s 496° e 498° do C.C.M.”; (cfr., fls. 428 a 449).

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Respondeu a referida demandante, pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 457 a 462).

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Adequadamente processados os autos, e nada obstando, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 381-v a 382, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Como resulta do que se deixou relatado, vem a demandada seguradora recorrer do Acórdão prolatado pelo Colectivo do T.J.B., insurgindo-se (tão só) contra o segmento decisório que a condenou no pagamento de MOP$775.980,00 a título de indemnização a favor da demandante, ora recorrida.

Diz que a decisão recorrida padece de “erro notório na apreciação da prova” e “errada interpretação e aplicação da lei por violação dos art°s 496° e 498° do C.C.M.”.

–– E começando, como parece lógico, pelo assacado “erro”, (pois que sem uma boa decisão da matéria de facto, inviável é uma adequada decisão de direito), cabe dizer que labora a recorrente em manifesto equívoco.

Com efeito, o assacado “erro notório na apreciação da prova”, (como se referiu), é um “vício – próprio – da decisão da matéria de facto”, (em que o Tribunal decide a matéria que do julgamento resultou “provada” ou “não provada”).

In casu, percorrendo a motivação pela recorrente apresentada, constata-se que o seu inconformismo dirige-se – não à referida “decisão da matéria de facto”, mas apenas – à “interpretação e enquadramento” que o Colectivo a quo efectuou da factualidade apurada.

E para se chegar a tal conclusão, basta atentar na seguinte passagem da motivação, onde a ora recorrente afirma que:

“Andou mal o Tribunal a quo ao imputar a responsabilidade civil pelos danos verificados nos autos à aqui Recorrente a titulo de responsabilidade pelo risco.
É que,
Em face da factualidade provada, conjugada com as regras de experiência comum, o Tribunal a quo teria necessariamente de ter concluído que o acidente em discussão nos autos foi imputável à Ofendida, o que afasta necessariamente a responsabilidade objectiva da aqui Recorrente.
Não o tendo feito, a decisão recorrida mostra-se inquinada do vicio de erro notório na apreciação da prova a que alude a alínea c) do artigo 400º do Código do Processo Penal.
(…)”; (cfr., fls. 433).

Nesta conformidade e afigurando-se-nos que a decisão da existência, (ou não), de uma (eventual) “responsabilidade objectiva” não constitui o vício imputado, (pois que como se consignou, é “decisão” resultante de uma “interpretação da matéria de facto dada como provada”), à vista está a solução nesta parte.

–– Continuando, e passando então para a alegada “errada interpretação e aplicação da lei por violação dos art°s 496° e 498° do C.C.M.”, vejamos.

Pois bem, como “princípio geral” em matéria de “responsabilidade civil”, (por “factos ilícitos”), prescreve o art. 477° do C.C.M. que:

“1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.

Em sede de “responsabilidade pelo risco”, e relativamente a “acidentes causados por veículos”, preceitua o art. 496° do mesmo código (e pela recorrente citado) que:

“1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
2. As pessoas não imputáveis respondem nos termos do artigo 482.º
3. Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, excepto quando, estando aquele no exercício das suas funções, o veículo não se encontre em circulação”.

Por sua vez, importa ainda atentar que nos termos do art. 498° do mesmo código, (e sob a epígrafe “exclusão da responsabilidade”):

“Sem prejuízo do disposto no artigo 500.º, a responsabilidade fixada pelos n.os 1 e 3 do artigo 496.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.

Tratando desta matéria, já teve este T.S.I. oportunidade de considerar que:

“No domínio da “responsabilidade civil extracontratual”, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito – isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, um direito ou interesse de outrem legalmente protegido – censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico – ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa – de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto; (cfr., art° 477°, n°1, 480°, n°2, 556°, 557°, 558°, n°1, do C.C.M.).
E embora predomine a “responsabilidade subjectiva”, baseada na culpa, sancionam-se também situações excepcionais de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação, entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre; (cfr., art°477°, n°2, 496° a 501° do C.C.M.)”; (cfr., v.g., o Ac. de 08.10.2015, Proc. n.° 746/2015).

Dito isto, vejamos.

Os presentes autos dão-nos – essencialmente – conta de uma “queda, que a demandante, enquanto passageira do autocarro (de transporte colectivo público) conduzido pelo arguido, sofreu”, provado estando também que a mesma queda ocorreu no momento em que o autocarro “reduziu a velocidade” em que seguia por se estar a aproximar de um sinal luminoso, e que a demandante “perdeu o equilíbrio”.

E, como se viu, entende a ora recorrente que mal andou o Tribunal a quo ao decidir pela sua condenação com base na “responsabilidade pelo risco”, pois que considera que foi a própria demandante, a “única e exclusiva culpada pela queda que sofreu”, (devendo assim dar-se aplicação ao art. 498° e não ao art. 496°), não lhe devendo assim caber qualquer dever de indemnização pelas lesões daí consequentes.

Para tal, alega, essencialmente, que a “culpa” do acidente é da (própria) demandante, pois que “provado” está que a queda que sofreu ocorreu quando a mesma caminhava dentro do autocarro, à procura de um lugar na parte de trás do mesmo, quando podia ter-se sentado em lugares prioritários vagos na parte da frente, considerando também que é aos passageiros que se impõe o dever de saber como caminham e de se agarrarem convenientemente enquanto circulam dentro de um autocarro em andamento.

Quid iuris?

Eis o que se nos apresenta adequado aqui dizer.

Pois bem, a primeira questão cremos que consiste em se saber da possibilidade de se atribuir a “culpa” da queda à própria demandante pelo facto de a mesma não ter optado por se sentar em lugares (prioritários) vagos que havia na parte da frente do autocarro – junto à porta de entrada – e ter procurado por um lugar na parte de trás, tendo acabado por cair enquanto para aí se dirigia.

Ora, em relação à referência quanto à dita “existência de lugares (prioritários) vagos na parte da frente do autocarro”, cabe desde já dizer que a mesma foi pelo Colectivo a quo (apenas) feita em sede de “fundamentação” e não aquando da sua “decisão da matéria de facto (provada)”, (elencando tal “realidade” como “facto provado”).

E, assim sendo, não constituindo “matéria de facto” (provada), não cremos que se possa – ou que se deva – avançar para uma decisão tendo-se a mesma em consideração, sendo, igualmente, e de qualquer forma, de notar, que a mesma se nos afigura irrelevante para se poder imputar qualquer culpa à demandante, até mesmo porque sendo lugares para “passageiros com prioridade”, provado não está que a demandante possuía esta “qualidade” e que aos mesmos tinha direito.

Nesta conformidade, ponderando no estatuído nos transcritos art. 496° e 498°, e apurado estando apenas que a “queda” se deu enquanto o “autocarro estava em movimento”, e enquanto a “demandante se dirigia para a parte de trás do autocarro”, à procura de um lugar para se sentar, (como, cremos, é normal suceder com qualquer outro passageiro), afigura-se-nos que adequada foi a decisão proferida.

Com efeito, no caso, e em nossa opinião, provado não está nenhum (outro) “facto” que permita concluir que a queda da demandante se deveu a “culpa” sua – como por exemplo podia suceder se a mesma tivesse escorregado, ou caído na sequência de descuido seu, por desequilíbrio causado pela quebra do salto alto do sapato, por ter tropeçado ou por qualquer outro motivo; (sobre a questão dos “danos não abrangidos”, cfr., vg., o Ac. da Rel de Coimbra de 27.02.2019, Proc. n.° 49/13) – e, não sendo o “acidente imputável a terceiro ou consequência de força maior estranha ao funcionamento do veículo”, outra solução cremos que não resta; (no mesmo sentido, cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 28.02.2019, Proc. n.° 661/2017, podendo-se também ver o Ac. de 13.09.2018, Proc. n.° 428/2018, que tratando de uma “situação próxima”, de uma idêntica queda de um passageiro num autocarro, acaba por atribuir a culpa a um terceiro, concretamente, a um peão que, atravessando subitamente a via, obriga o condutor a fazer uma travagem brusca “provocando” a dita queda).

Dest’arte, e em face das (concretas) circunstâncias em que ocorreu a “queda da demandante”, e sendo pois de concluir que os danos à mesma causados provieram dos “riscos próprios” do autocarro conduzido pelo arguido, censura não merece o decidido; (cfr., v.g., Dario M. de Almeida in “Manual de Acidentes de Viação”, 2ª ed., pág. 317 e segs., onde se considera, nomeadamente, que “A responsabilidade pelo risco, dentro desta matéria, só abrange os danos provenientes dos riscos próprios do veículo. Dentro dos pressupostos da responsabilidade civil, o dano indemnizável será aquele que estiver em conexão causal com o risco. Para traduzir esta ideia, a lei refere-se aos «danos provenientes dos riscos próprios do veículo». O dano liga-se por um nexo causal ao facto material em que se configura o risco. O dano terá de ser sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo indirecta com o facto em que se materializa o risco”, podendo-se também ver o Ac. do S.T.J. de 19.03.2019, Proc. n.° 5173/15).

Por fim, e não menos relevante, importa atentar que a “situação” em causa nos presentes autos não deixa de configurar um “contrato de transporte” tal como definido está no art. 749° do C. Comercial de Macau – como “… aquele pelo qual alguém se obriga a conduzir pessoas ou bens de um lugar para outro, mediante retribuição” – certo sendo que nos termos do seu art. 753° “O transportador apenas pode excluir ou limitar a sua responsabilidade nos termos e nas condições previstas na lei”, cabendo ainda notar que, em conformidade com estatuído no art. 758°, “O transportador é obrigado a conduzir o passageiro, são e salvo, para o lugar de destino”, (cfr., n.° 1), e que “O transportador é responsável pelos acidentes que atinjam a pessoa do passageiro e pela perda ou danos nas bagagens que lhe forem confiadas pelo passageiro, salvo se resultarem de causa que não lhe seja imputável”; (cfr., n.° 2).

Com efeito, não se pode pois olvidar que em sede do “contrato de transporte”, a obrigação para a transportadora não se esgota na “obrigação de deslocar pessoas e coisas de um local para outro mediante determinada contrapartida”, certo sendo que para além dessa obrigação principal e típica, está ainda a empresa transportadora vinculada a outras obrigações de prestação secundárias, acessórias e sem autonomia relativamente à prestação principal e a obrigações laterais, de protecção, de consideração e de cuidado com a pessoa e património da contraparte, sendo nestes deveres que se fundamenta a “cláusula de incolumidade” (em qualquer contrato de transporte), que obriga a empresa transportadora a deslocar e a fazer chegar o passageiro, são e salvo, ao seu destino; (neste sentido, cfr., v.g., Cleodon Fonseca in, “Aspectos jurídicos do contrato de transporte”, e Barros Monteiro e Tavares da Silva in, “Curso de Direito Civil – Direito das Obrigações”, 2013, pág. 379)

Na verdade, no “contrato de transporte”, a obrigação (essencial) do transportador não se esgota num (mero) “resultado”, (ou seja, na deslocação de pessoas e/ou coisas de um lugar para outro), sendo também uma “obrigação de garantia”, no sentido em que impende sobre o transportador o dever de zelar pela segurança do passageiro e/ou do objecto transportado, de forma a evitar que qualquer dano lhe possa advir; (cfr., Rodrigo Grevetti in “Contrato de transporte e responsabilidade civil”; Carlos Lacerda Barata in “Contratos de transporte terrestre: formação e conclusão” e o Ac. da Rel. de Lisboa de 21.05.2013, Proc. n.° 1114/09).

Dest’arte, também por aqui se vê que censura não merece a decisão recorrida.

Tudo visto, resta decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela demandada seguradora, com a taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 11 de Abril de 2019
José Maria Dias Azedo
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Proc. 157/2019 Pág. 18

Proc. 157/2019 Pág. 19