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Processo n.º 50/2019. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrida: B.
Assunto: Procuração para dispor de imóvel e celebrar negócios consigo mesmo.
Data do Acórdão: 22 de Maio de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
Anulada compra e venda (2.ª) de imóvel, celebrada por mandatário com procuração com poderes especiais do proprietário, que podia celebrar quaisquer negócios consigo mesmo, materialmente tendo comprado o imóvel a este (1.ª compra e venda), que recebeu a totalidade do preço, e tendo o mandatário recebido igualmente a totalidade do preço da 2.ª venda, justifica-se que seja este a devolver o preço ao comprador desta 2.ª transacção.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima


ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
   B, intentou acção declarativa com processo comum ordinário contra C, D, E e A, pedindo a sua condenação solidária no pagamento do valor de um determinado imóvel (MOP$5.968.200,00), bem como no pagamento dos prejuízos que alegou ter sofrido com a anulação da venda efectuada pela autora ao 4.º réu A.
  Para tanto, alegou que os 1.º, 2.º e 3.º réus obtiveram fraudulentamente a propriedade do imóvel, que o 4.º réu vendeu à autora, com procuração dos 1.º, 2.º e 3.º réus, sendo que esta venda foi entretanto anulada, tal como o negócio pelo qual os 1.º, 2.º e 3.º réus obtiveram a propriedade do imóvel.
  Por sentença de 1.ª Instância, a acção foi julgada parcialmente procedente, sendo os 1.º, 2.º e 3.º réus absolvidos dos pedidos e o 4.º réu condenado a devolver à autora a quantia do valor do imóvel e juros, improcedendo quanto ao restante pedido.
  Para tal entendeu-se que na venda do imóvel do 4.º réu à autora, o vendedor acatou na prática como o verdadeiro proprietário do imóvel e não como mero mandatário dos 1.º, 2.º e 3.º réus.
  O Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso interposto pelo 4.º réu A.
Recorre, novamente, o 4.º réu A para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando a seguinte questão:
Contrariamente ao entendimento que obteve vencimento no acórdão recorrido, na sentença proferida na acção declarativa ordinária n.º CV1-12-0001-CAO, a declaração de nulidade do negócio da transmissão do domínio útil a favor da autora encontrou o seu fundamento na falta de legitimidade da l.a co-ré e da 2.a co-ré, enquanto alienantes, para realizar a venda do imóvel.
Na economia da sentença dos autos n.º CVl-12-0001-CAO, o aqui recorrente nunca é considerado como alienante do imóvel, antes como procurador dos 3 primeiros co-réus dos presentes autos. Como tal, por assim ser, são os 3 primeiros co-réus destes autos, que deveriam ter sido condenados a restituir o preço do negócio à autora.

II – Os factos
O Tribunal de 1.ª Instância considerou provados os seguintes factos:
“Factos assentes:
- A autora é uma sociedade limitada dedicando-se à compra e venda de imóvel e à gestão de propriedade. (Ponto A) dos factos assentes)
- No dia 1 de Abril de 2011, o 4º réu, usando a procuração celebrada com os 1ª, 2ª e 3º réus que nela lhe foram delegados poderes, celebrou com a autora a escritura de compra e venda para vender, pelo valor de MOP5.968.200,00 (HK$5.800.000), à autora o domínio útil do imóvel sito na [Endereço (1)] (número de descrição: XXXX), tendo o respectivo valor de compra e venda sido recebido pelo 4º réu. (Ponto B) dos factos assentes)
- Ao mesmo tempo, a fim de obter fundos para desenvolver o domínio útil, a autora hipotecou a respectiva propriedade ao [Banco (1)] para servir de garantia dum empréstimo no valor de HK$4.000.000 (valor de garantia é de HK$4.800.000), bem como celebrou a escritura de hipoteca e procedeu ao registo de constituição de hipoteca. (Ponto C) dos factos assentes)
- No dia 27 de Junho de 2011, o dito imóvel sito na [Endereço (1)] (número de descrição XXXX) foi apreendido pelo Ministério Público. (Ponto D) dos factos assentes)
- No processo n.º CR2-12-0028-PCC do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, os 1ª, 2ª e 3º réus respectivamente foram condenados pela prática dum crime de burla. Tal caso já transitou em julgado em 7 de Janeiro de 2013 (vd. Doc. 3 anexo ao pedido no processo de providência cautelar n.º CV2-12-0011-CPV, a fls. 20 a 51 dos autos, para os efeitos jurídicos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (Ponto E) dos factos assentes)
- Os 1ª, 2ª e 3º réus, por meios fraudulentos descritos no acórdão do supracitado processo criminal, obtiveram o domínio útil da respectiva propriedade pertencente originalmente a F. (Ponto F) dos factos assentes)
- Não tendo as 1ª e 2ª rés pago qualquer valor a F (Ponto G) dos factos assentes).
- O Ministério Público, em nome de F, intentou a acção declarativa civil sob o número CV1-12-0001-CAO contra os quatro réus, a autora e o [Banco (1)]. (Ponto H) dos factos assentes)
- No supracitado processo declarativo civil, o autor F pediu que fosse anulado o negócio jurídico respeitante à alienação do domínio útil de prédio urbano do imóvel em causa às 1ª e 2ª rés feita por si através de forma de compra e venda e, mais exigiu que fossem declarados nulos o negócio jurídico respeitante à alienação à autora do domínio útil de prédio urbano do imóvel em causa feita pelas 1ª e 2ª rés através do 4º réu, bem como o negócio jurídico de hipoteca do imóvel em causa feita pela autora junto do [Banco (1)], ao mesmo tempo, também exigiu que fosse restituído a F o imóvel em causa e cancelado o registo do respectivo negócio jurídico sobre o registo predial (vd. Doc. 4 anexo ao pedido no processo de providência cautelar n.ºCV2-12-0011-CPV, a fls. 52 a 55 dos autos, para os efeitos jurídicos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (Ponto I) dos factos assentes)
- No dia 2 de Julho de 2013, foi proferida a decisão em primeira instância sobre o supracitado processo civil (decisão essa que transitou em julgado em 17 de Julho do mesmo ano), que declarou:
• Anulação dos negócios jurídicos das alienações feitas por F às 1ª e 2ª rés, através de forma de compra e venda, em 21 de Janeiro de 2011, relativas ao domínio útil de prédio urbano do imóvel sito na [Endereço (1)], ao direito de propriedade da fracção autónoma sito no [Endereço (2)] e na [Endereço (3)], bem como ao direito de propriedade da fracção autónoma [Endereço (4)] e na [Endereço (5)];
• Nulidade do negócio jurídico de as 1ª e 2ª posteriormente terem alienado ao 4º réu o domínio útil da propriedade sita na [Endereço (1)], bem como do negócio jurídico de o 4º réu ter hipotecado tal propriedade ao 5º réu;
• Ordenada a restituição pelos réus dos supracitados três imóveis ao autor.
• Autorizado o cancelamento dos registos dos respectivos negócios jurídicos sobre os registos prediais dos ditos três imóveis (vd. Fls. 221 a 226 dos autos e para os efeitos jurídicos, aqui se dá por integralmente reproduzido). (Ponto J) dos factos assentes)
Base Instrutória:
- A autora, depois de adquirido a propriedade indicada no ponto B) dos factos assentes, começou a realizar vários trabalhos sobre o desenvolvimento da propriedade, incluindo a avaliação bancária, a elaboração do projecto de construção e apresentação junto da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes dos anteprojectos e dos documentos de construção. (Reposta dada ao art.º 1.º da Base Instrutória)
- O 4º réu, a fim de obter interesses pecuniários para si, sugeriu aos 1ª, 2ª e 3º réus que fosse adquirido pelo valor de HK$3.000.000 o domínio útil do supracitado imóvel sito na [Endereço (1)]. (Reposta dada ao art.º 2.º da Base Instrutória)
- Os 1ª, 2ª e 3º réus, a fim de vender o mais cedo possível o imóvel conseguido por si através de meios fraudulentos, aceitaram o pedido do 4º réu e, no dia 9 de Março de 2011, perante o notário privado G como testemunha, celebraram procuração e delegaram poderes ao 4º réu para dispor completamente a propriedade sita na [Endereço (1)] incluindo a venda da propriedade indicada no Ponto B) dos factos assentes. (Resposta dada ao art.º 3.º da Base Instrutória)
- Tendo as 1ª e 2ª rés já recebido integralmente o valor de HK$3.000.000 pago pelo 4º réu. (Resposta dada ao art.º 3-A da Base Instrutória)
- A autora não tinha nenhum conhecimento sobre o decurso de os réus, através de meios fraudulentos, terem conseguido a propriedade em causa. (Resposta dada ao art.º 5.º da Base Instrutória)
- Se a autora, na fase de negociação sobre a celebração do contrato, soubesse o decurso de aquisição da propriedade em causa por parte dos réus, não iria adquirir tal propriedade junto dos réus. (Resposta dada ao art.º 7.º da Base Instrutória)
- A autora pagou o valor de compra e venda da propriedade em causa, as despesas para celebração de escritura pública e registo, o imposto de selo sobre a transmissão de bens imóveis, a comissão de agente imobiliário e os honorários de advogado. (Resposta dada ao art.º 8.º da Base Instrutória)
- E a fim de desenvolver a propriedade em causa, também pagou várias despesas tais como: despesa de planta do projecto, despesa de avaliação do terreno, despesa para pedido de aprovação do anteprojecto de construção apresentado junto da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, despesas destinados ao cadeado de cobre utilizado no respectivo terreno e da soldagem, aos documentos de registo sobre a construção e registo predial, à celebração da escritura pública e outros. (Resposta dada ao art.º 9.º da Base Instrutória)
- A autora já gastou um valor total de MOP221.160 e de HK$79.335. (Resposta dada ao art.º 10.º da Base Instrutória)
- A autora, para além de ter pago MOP6.189 (HK$6.000) a título de despesa para prosseguimento do supracitado empréstimo junto do [Banco (1)], ainda tinha que pagar ao mesmo banco, até Fevereiro de 2014, os juros do empréstimo e outros emolumentos, no valor total de MOP468.533 (HK$454.225,20). (Resposta dada ao art.º 11.º da Base Instrutória)
- Dado que o respectivo acto de compra e venda e a constituição da respectiva hipoteca foram declarados nulos pelo Tribunal, o que fez com que o [Banco (1)] cancelasse o supracitado empréstimo já concedido à autora e lhe exigisse que reembolsasse o empréstimo e os juros, antes de 25 de Outubro de 2013. (Resposta dada ao art.º 13.º da Base Instrutória)”

III – O Direito

1. Questões a apreciar
Há que conhecer da questão suscitada pelo recorrente.


2. Síntese dos factos pertinentes
O acórdão recorrido sintetizou assim os factos pertinentes:
Os 1.º, 2.º e 3.º réus da acção conseguiram obter para si, por meios fraudulentos, o domínio útil de um prédio urbano pertencente a F (bem como o direito de propriedade referente a outros dois imóveis, que aqui não estão em causa).
Posteriormente, venderam o domínio útil ao 4º R pelo preço de HK$ 3.000.000,00.
E o 4.º réu pelo preço de HK$ 5.800.000,00, munido de procuração com poderes para o efeito, emitida pelos referidos 1.º, 2.º e 3.º réus, alienou o referido domínio à aqui autora.
Pelo crime de burla, vieram os 1.º, 2.º e 3.º réus a ser condenados por decisão já transitada no âmbito do processo criminal nº CR2-12-0028-PCC.
O Ministério Público, em nome de F, instaurou acção declarativa civil (Proc. nº CV1-12-0001-CAO), contra os 4 réus, a aqui autora e contra o [Banco (1)], que à autora tinha concedido um mútuo no valor de 4.000.000,00, garantido por hipoteca.
Nestes autos cíveis, por sentença já transitada em julgado, foi decretada em 2/07/2013 a anulação da alienação do domínio útil e da propriedade dos prédios acima aludidos pelo F aos ali réus. Foi ainda decretada a nulidade do negócio do negócio da alienação das 1.ª e 2.ª rés ao 4.º réu, da hipoteca ao Banco e ordenada a restituição dos três imóveis ao seu titular F e ordenado o cancelamento dos registos.
Está ainda em curso o processo nº CV1-16-0005-CAO instaurado pelo 4.º réu contra as 1.ª e 2.ª rés com vista ao ressarcimento pelos prejuízos que estas lhe terão alegadamente causado.

3. Os negócios aparente e real
Formalmente, o ora recorrente, 4.º réu, vendeu o domínio útil do imóvel à autora, em nome dos 1.º, 2.º e 3.º réus. Mas, materialmente, ele vendeu-o no seu exclusivo interesse, já que a procuração que detinha dos 1.º, 2.º e 3.º réus, o habilitava a tal, tendo pago a estes a totalidade do preço da compra e venda. Face a tal procuração (fls. 28) o ora recorrente podia celebrar quaisquer negócios consigo mesmo.
Como é do conhecimento geral, este tipo de procurações é utilizado na prática negocial de Macau para alienar imóveis, sendo que o mandatário é, em termos práticos o verdadeiro proprietário, dado que quando é outorgada a procuração já pagou a totalidade do preço do imóvel ao mandante e tal procuração não pode ser revogada pelo mandante, quando o mandato é também conferido no interesse do mandatário, em face do estatuído no n.º 2 do artigo 1096.º do Código Civil.
Por outro lado, foi o 4.º réu, mandatário dos 1.º, 2.º e 3.º réus, quem recebeu para si o preço pago pela compradora, a autora.
Alega o recorrente que na economia da sentença dos autos n.º CVl-12-0001-CAO, o aqui recorrente nunca é considerado como alienante do imóvel, antes como procurador dos 3 primeiros co-réus dos presentes autos. Mas não é assim, tanto que tal sentença declarou a:
• Nulidade do negócio jurídico de as 1ª e 2ª posteriormente terem alienado ao 4º réu o domínio útil da propriedade sita na [Endereço (1)], bem como do negócio jurídico de o 4º réu ter hipotecado tal propriedade ao 5º réu (Ponto J) dos factos assentes).
Logo, bem andou o acórdão recorrido, ao confirmar a sentença de 1.ª instância que condenou o ora recorrente a devolver à autora a quantia do valor do imóvel e juros.

IV – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.
Macau, 22 de Maio de 2019.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
  
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