Proc. nº 207/2018
Recurso contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 9 de Maio de 2019
Descritores:
- Erro sobre os pressupostos de facto
- Sanção administrativa
SUMÁRIO:
I - O erro nos pressupostos de facto só releva, enquanto vício autónomo, no âmbito de uma actividade discricionária.
II - No âmbito de uma actividade vinculada, se a Administração erra na base de facto em que se fundamentou, esse vício de erro sobre os pressupostos de facto deixa de valer por si próprio, ou autonomamente, para arrastar a decisão para uma invalidade que deriva de uma má aplicação da norma, gerando um vício de violação de lei.
III - Os arts. 63º, nº6 e 88º, nº2, al. 4), da Lei nº 7/2008 partem de uma condição sine qua non, que é a de existir uma relação de trabalho entre duas partes, «empregador» e «trabalhador», nos moldes em que estas figuras se definem no art. 2º, als. 1) e 2), da citada Lei.
Proc. nº 207/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
“A”, pessoa colectiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, registada sob o nº XXX nos Serviços de Identificação, com sede em Macau na XXX, -----
Recorreu contenciosamente para o Tribunal Administrativo (Proc. nº 1238/15-ADM) ----
Do despacho de 21/09/2015 do Director da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL) ----
Que lhe indeferiu o recurso hierárquico necessário, interposto da multa aplicada pelo Chefe do Departamento da Inspecção do Trabalho pela prática da infracção administrativa, prevista no artigo 88º nº 2, alínea 4) da Lei nº 7/2008.
Por sentença de 21/11/2017 foi o recurso contencioso julgado improcedente.
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É contra essa decisão que ora vem o A interpor recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“A) A sentença em crise que confirma a sanção administrativa aplicada à recorrente por não ter emitido o recibo a que alude o n.º 6 do artigo 63º da Lei das Relações de Trabalho (LRT), desconsiderou factos provado nos autos que comprovam que a situação da vida real, objecto do acto administrativo sancionatório, foi a inversa.
B) Ou seja, a docente em regime de aquisição de serviços, avençada, não forneceu à recorrente os recibos Mod. M7, previstos no artigo 15º nº1 do Regulamento do Imposto Profissional, obrigação a que estava adstrita pelo contrato de aquisição e serviços que negociou em Agosto de 2012 com a recorrente.
C) Os recibos Mod. M7 tinham que ser entregues pela docente à recorrente por cada pagamento realizado por esta, relativo à sua prestação de serviços para leccionação de módulos de português como língua estrangeira (PLE), de acordo com o estabelecido no artigo 15º nº1 do RIP.
D) Tal recusa implica para as profissões liberais e técnicas a sujeição à multa prevista no artigo 61º, nº1 do RIP.
E) A docente estava inscrita na Direcção dos Serviços de Finanças no 2º Grupo do Imposto Profissional, como professora, o que fez por sua iniciativa, em regime de profissão técnica/liberal, no período em que prestou serviço no A entre os anos 2012 e 2013. Facto que só podia ser comprovado pela própria ou por aquela Direcção de Serviços, máxime pela Repartição de Finanças de Macau, prova requerida pela ora recorrente na petição de recurso, em virtude de tal informação lhe ter sido negada pela DSF, com fundamento na mesma estar sujeita ao regime de protecção de dados.
F) A professora declarou sob juramento, no Tribunal de Base de Macau, na audiência de julgamento de contravenção laboral que se inscreveu como professora, profissão técnica, do 2º Grupo do Imposto Profissional, o que também poderia ter sido provado testemunhalmente no recurso contencioso, conforme peticionado.
G) E declarou igualmente no processo de investigação na DSAL, que estava inscrita nas Finanças - à pergunta da inspectora se estava inscrita como profissional liberal/técnica, obrigada a emissão de recibos M/7, esta respondeu que estava inscrita na DSF. (cf. Doc. nº4 da Petição de Recurso)
H) A douta sentença recorrida nunca averiguou esta contradição. A entidade inpectiva manteve desde o início do processo administrativo tal facto fora da investigação, nunca perguntando aos Serviços de Finanças se a docente estava neles inscrita como profissional liberal/técnica, do 2º Grupo do Regulamento do Imposto Profissional, somente pediu informação à DSF, por ofício, se a docente estava ou não inscrita em nome do A em sede de Imposto Profissional, sendo a resposta daqueles serviços negativa. (cf. Doc. nº1, ora junto a estas alegações mas constante do processo Administrativo)
I) Tal regime, adoptado voluntariamente pela docente, impunha a obrigação de emitir um recibo Modelo M7 do RIP, por cada pagamento feito pelo A, tal como fizeram todos os outros seus colegas em contrato de prestação de serviços, relativamente às quantias recebidas da recorrente, nos termos da tabela de prestação de serviços em vigor no A (cf. Processo Administrativo, a fls. 13 a 31, a fls. 33 a 35, a fls. 37 a 60 e a fls. 39, 40 e 41).
J) Com uma resposta da DSF que contemplava somente uma parte da realidade, se contentou a entidade fiscalizadora e o Tribunal a quo.
L) O Tribunal a quo não valorou factos documentalmente provados pela recorrente, deixando de conhecer e avaliar factos determinantes da situação fiscal real da docente prestadora de serviço, mas não só, não valorou factos atinentes ao concreto modo da prestação de serviço pela docente, nomeadamente o período diário de prestação do trabalho, máxime o número de horas lectivas diárias, o modo da prestação, com ou sem subordinação jurídica, com ou sem autonomia técnica, se era ou não uma prestação de resultado, por módulos, e consequentemente objecto de um valor remuneratório em função dos módulos executados de ensino de PLE, o regime de substituição em caso de ausência, a existência ou não de um regime de exclusividade na prestação da função docente no estabelecimento de ensino da recorrente.
M) O horário a tempo parcial exercido pela docente prestadora de serviço, a forma descontinuada da prestação do trabalho docente, em 2 períodos separados no tempo, a que corresponderam 2 contratos de prestação de serviços diferenciados, são factos que indiciam e confirmam uma prestação de serviço docente a tempo parcial, de forma descontínua e sem ser em total regime de exclusividade, incompatível com o regime jurídico vigente em Macau para o contrato de trabalho subordinado a tempo integral.
N) Ora, todos estes factos arguidos e provados nos autos laborais, constantes do processo de recurso contencioso, eram passíveis de serem comprovados pelo Tribunal a quo, e, se dúvidas restassem, poderia ter feito uso do seu poder inquisitório, para aferir de factos determinantes dos pressupostos de punibilidade da ora recorrente.
O) Não é a recorrente que se encontra em falta, mas sim a docente ao não entregar o recibo modelo M7, conforme obriga o nº 1 do artigo 15º do RIP, relativo a todos os prestadores de serviço em regime de profissão técnica/liberal.
P) A professora prestou serviço no A, ora recorrente, por dois períodos distintos e separados no tempo, de 3 de Setembro de 2012 a 25 de Janeiro de 2013 e de 18 de Fevereiro de 2013 a 28 de Junho de 2013, a tempo parcial, sem trabalhar no horário integral vigente no estabelecimento de ensino da recorrente, 36 horas semanais, para os docentes com contrato de trabalho subordinado, perfazendo somente uma média de 4,5 horas por dia, sem exclusividade nos períodos em que também leccionou na City University, facto que levou a docente avençada a recusar a proposta formulada pela recorrente de assinar um contrato de trabalho a prazo certo.
Q) Verificados fados indiciadores da existência de um contrato de prestação de serviços e afastados os indícios de existência de um contrato de trabalho subordinado a tempo integral, por documentos e declarações constantes dos autos do processo administrativo, não se encontram provados nos autos os elementos essenciais, integrantes do conceito de contrato de trabalho subordinada em regime de tempo integral, e consequentemente os pressupostos de punibilidade da ora recorrente.
R) Admitindo, por mero amor ao raciocínio, ter existido um contrato de trabalho em regime de peri time com a referida professora, este não estaria sujeito às regras do contrato de trabalho subordinado, nos termos do artigo 3º nº3 da Lei 7/2008 - LRT - Lei da Relações de Trabalho.
S) Aos contratos de part time, executados em regime de tempo parcial, não se aplicam as regras da Lei da Relações de Trabalho aprovada pela Lei nº7/2008, nem as repectivas normas fiscais - os trabalhadores em part time não podem ser inscritos na DSF como trabalhadores por conta de outrem, só podem ser inscritos os trabalhadores com contrato de trabalho a tempo integral, e a
R) Admitindo, por mero amor ao raciocínio, ter existido um contrato de trabalho em regime de part time com a referida professora, este não estaria sujeito às regras do contrato de trabalho subordinado, nos termos do artigo 3º nº3 da Lei 7/2008 - LRT - Lei da Relações de Trabalho.
S) Aos contratos de part time, executados em regime de tempo parcial, não se aplicam as regras da Lei da Relações de Trabalho aprovada pela Lei nº 7/2008, nem as repectivas normas fiscais - os trabalhadores em part time não podem ser inscritos na DSF como trabalhadores por conta de outrem, só podem ser inscritos os trabalhadores com contrato de trabalho a tempo integral, e a entidade patronal não está adstrita à obrigação constante do nº6 do Artigo 63º da LRT.
T) O regime específico do contrato a tempo parcial está a aguardar a produção de regulamentação específica, por parte do Governo ou da Assembleia Legislativa, tendo a entidade administrativa recorrida feito uma interpretação contra legem do regime estabelecido na Lei nº 7/2008, em matéria de trabalho a tempo parcial, que levou à aplicação ilegal da sanção administrativa à ora recorrente.
U) Mesmo que se entenda que a professora prestou serviço no A em regime de tempo parcial, não podia, segundo o direito vigente em Macau, ser inscrita nas Finanças pelo ora recorrente.
V) Na verdade, quer em regime de prestação de serviços, tal como efectivamente foi exercida a actividade da docente, quer na hipótese de contrato de trabalho a tempo parcial, que discordamos, mas concedemos, por amor ao raciocínio, a recorrente não estava obrigada por nenhuma norma legal a emitir recibo, nos termos do artigo 63º, nº6 da LRT, nem se pode considerar que o seu comportamento se subsumiu à norma punitiva do artigo 88º nº2, alínea 4) da Lei nº 7/2008 - LRT, nem alguma vez foi sancionada pela DSF conhecedora da situação, pelo facto de não ter inscrito a docente em sede do RIP, no regime de trabalhador por conta de outrem.
W) A sentença em crise não consegue provar a existência de indícios caracterizadores do regime do contrato de trabalho subordinado conforme melhor fundamentado no corpo destas alegações, nomeadamente porque inexiste uma prestação continuada de trabalho, existem dois contratos distintos de prestação de serviços e contratação por módulos de leccionação, com início e termo fixados, não existe por parte da docente o cumprimento de horário integral praticado pelos trabalhadores do quadro permanente da recorrente, existe liberdade da docente no modo de execução da prestação da função docente, sujeita a manuais gerais de ensino praticado na instituição de ensino da recorrente.
X) Que equivalem ao Caderno de Encargos dos Contratos de Prestação de Serviços, com liberdade na forma de orientar as aulas, sem hierarquia e subordinação jurídica, sem receber ordens de qualquer chefia, tão somente indicações gerais do conteúdo dos módulos que tem que leccionar, participando voluntariamente e ocasionalmente em reuniões de coordenação de actividades, com os restantes professores e a Coordenadora do Centro de Língua Portuguesa. Nas ausências a docente é responsável por encontrar o seu substituto, o que é impensável acontecer num contrato de trabalho subordinado - o fim do contrato é completar integralmente o ensino das matérias dos módulos de ensino adjudicados.
Y) A sentença ora em crise não tem factos que sustentem a existência dos pressupostos de facto e de direito que imputem à recorrente a infracção administrativa prevista no nº6 do artigo 63º da LRT e punida nos termos do nº2, 4) do artigo 88º da mesma lei.
Z) A sentença do tribunal a quo, face aos factos provados nos autos, deveria ter declarado inexistente o acto administrativo que aplicou a multa à recorrente, por absoluta falta de pressupostos de facto e de direito, ou se assim o não entendesse, anulado o mesmo por vício de violação de lei, ordenando a devolução à recorrida do valor da multa por ela liquidada, com juros de mora até ao integral pagamento.
TERMOS EM QUE, e nos mais de direito que V.Exas doutamente suprirão, deve o V. Tribunal ad quem revogar a sentença recorrida e substituí-la por uma sentença que declare o acto sancionatório inexistente e de nenhum efeito, por absoluta falta de pressupostos de facto e de direito em que se funda, e, se assim não entender, que seja declarada a sua anulação por vício violação de lei, conforme peticionado, assim se fazendo a merecida JUSTIÇA.”.
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A DSAL respondeu ao recurso, concluindo a sua peça alegatória da seguinte forma:
“1. A entidade recorrida concordou plenamente com a fundamentação do MM.º juiz do Tribunal Administrativo na sentença recorrida.
2. O recorrente referiu que no presente caso se trata de um contrato de prestação de serviços ou contrato a tempo parcial, não se aplica a Lei das Relações de Trabalho, por consequência, não tem obrigação de emissão de notas de abono e desconto.
3. Mesmo que contratasse trabalhadores com horas de trabalho relativamente poucas ou através de contrato a termo, o empregador deveria cumprir as obrigações do empregador em conformidade com a Lei n.º 7/2008.
4. De acordo com as provas produzidas no caso, as aulas do queixoso foram organizadas pelo recorrente, o horário e o local de aulas foram determinados pelo recorrente, os livros para aula e o conteúdo pedagógico foram fornecidos e determinados pelo recorrente; além disso, o queixoso tinha pedido ao recorrente a redução das aulas das duas turmas no desempenho das suas funções, mas não obteve a autorização do recorrente e teve que continuar a concluir o curso, e o recorrente também continuou que na falta do queixo, iria procurar outro docente para concluir o respectivo curso. Evidentemente, o queixoso prestou trabalho sob a autoridade e direcção do recorrente no desempenho das suas funções, daí, a relação estabelecida entre as partes é relação de trabalho subordinado e não a relação de prestação de serviços a que se referiu o recorrente.
5. Face ao exposto, de acordo com as provas produzidas, o recorrente estabeleceu a relação de trabalho subordinado com o queixoso, mas não cumpriu a obrigação de emissão de notas de abono e desconto ao queixoso, violando o disposto no art.º 63.º n.º 6 da Lei das Relações de Trabalho, pelo que, a decisão de sanção aplicada pela entidade recorrido ao recorrente não deve ser anulada por inexistência de erro no pressuposto de sanção a que se referiu o recorrente.
6. A entidade recorrida entende que deve manter a sentença do MM.º juiz do Tribunal Administrativo e indeferir o presente recurso.”
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“Inconformado com a sentença de 21 de Novembro de 2017, do Mm.º Juiz do Tribunal Administrativo, exarada a fls. 76 e seguintes dos autos, que julgou improcedente o recurso contencioso interposto contra a decisão de 21 de Setembro de 2015, do Director dos Serviços para os Assuntos Laborais, dela vem recorrer jurisdicionalmente o A, para o que alinha os fundamentos condensados nas conclusões da sua alegação de fls. 91 e seguintes.
Está em causa saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento na decisão das questões da inexistência jurídica e da violação de lei por erro nos pressupostos em que o recorrente ancorara o recurso contencioso.
Não cremos que o acto administrativo sindicado padecesse de inexistência jurídica. Da sua análise resulta que ele evidencia os elementos essenciais típicos do acto administrativo, à luz do artigo 110.º do Código do Procedimento Administrativo, como observou a sentença impugnada, e nomeadamente aqueles que a doutrina considera imprescindíveis para assegurar a existência do acto, quais sejam, a decisão com um determinado conteúdo ou sentido, o destinatário e o autor e respectiva assinatura - cf. Mário Esteves de Oliveira e outros, Código do Procedimento Administrativo Comentado, Almedina, em nota ao artigo 123.º do Código do Procedimento Administrativo português de 1991.
Já quanto à violação de lei, por erro nos pressupostos, inclinamo-nos para a sua verificação.
Na verdade, a entidade administrativa puniu o recorrente A, mediante aplicação da Lei das Relações de Trabalho (Lei n.º 7/2008 - artigos 63.º, n.º 6, e 88.º, n.º 1, alínea 9), sem apurar se a relação entabulada entre este e a trabalhadora B era uma relação de trabalho de tempo integral, ou apenas de tempo parcial, como alegara subsidiariamente o recorrente, o que aliás também não resulta esclarecido na matéria de facto seleccionada no âmbito da sentença recorrida. E essa constatação era imprescindível para se poder aplicar ao caso a Lei das Relações de Trabalho, já que o seu artigo 3.º remete para legislação especial, ainda não publicada, o trabalho a tempo parcial, que, por isso, escapa do âmbito de aplicação daquela Lei.
Elementos entretanto juntos ao processo, nomeadamente a informação dada pela Direcção dos Serviços de Finanças (fls. 139) e a decisão transitada em matéria contravencional laboral (fls. 142 e seguintes) vêm corroborar a inexistência de uma relação de trabalho a tempo integral, apontando aliás para uma relação contratual a tempo parcial.
Daí que não estivessem reunidos os pressupostos para aplicação, no caso, da sanção administrativa que foi imposta ao recorrente, havendo erro de julgamento na avaliação de tal vício imputado ao acto administrativo. Apenas mais uma nota, quanto à possibilidade de aplicação da Lei das Relações de Trabalho às situações de trabalho a tempo parcial, enquanto não for publicada a legislação especial a que alude o artigo 3.º da Lei 7/2008. É defensável a aplicação dos princípios da lei geral, na ausência de lei especial reguladora do trabalho a tempo parcial, e cremos ser essa a orientação jurisprudencial que tem vingado. O que não parece curial é que essa aplicação envolva normas de direito sancionatório, como sucedeu, o que afronta os princípios de direito penal, particularmente o princípio da legalidade, e o regime geral das infracções administrativas, que o artigo 79.º da Lei das Relações de Trabalho manda observar nesta matéria.
Ante o exposto, propendemos para a revogação da sentença recorrida, por incorrecto julgamento do vício de violação de lei por erro nos pressupostos, e para a sequente anulação do acto contenciosamente impugnado.”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
1- Durante o período compreendido entre 1 de Setembro de 2012 e 28 de Junho de 2013, B prestava seus serviços ao A-A (ora recorrente), como professora de língua portuguesa (vide fls.6, 14 a 32 do PA volume 1).
2- B trabalhava no local e segundo o horário definido pelo recorrente nos cadernos de encargo, nos períodos definidos para as formações do A (vide fls.6, 69, 112, 114, 116 do PA volume 1).
3- No exercício das suas actividades, B seguia obrigatoriamente o plano de estudos estabelecido pelo recorrente e utilizava livros que o recorrente tem para o ensino da língua portuguesa (vide fls. 119 do PA volume 2).
4- Em 1 de Dezembro de 2014, B apresentou a queixa junto da DSAL, pelo facto de que o recorrente, sendo sua entidade patronal, não lhe passou o recibo do pagamento que se reportava ao período em que ela exercia a sua actividade (vide fls.2 do P.A, volume 1).
5- Na sequência das diligências então desenroladas, foi determinada, em 12 de Junho de 2015, pelo despacho da Chefe Substituta do Departamento de Inspecção do Trabalho da DSAL, exarado na informação n.º 6384/DIT/PRIS/2015, a aplicação ao recorrente de uma multa de MOP5,000.00 pela violação do art.63.º n.º 6 da Lei n.º 7/2008 (vide fls. 181 a 182 do P.A, volume 1).
6- Em 29 de Junho de 2015, foi emitida ao recorrente a notificação n.º 66/R/2015, da supradita decisão (vide fls. 185 do P.A, volume 1).
7- Em 21 de Agosto de 2015, da supradita decisão foi interposto o recurso hierárquico necessário junto da DSAL, em que se pugnou pela falta da prova da infracção que lhe foi imputada e pela ausência de subordinação jurídica com a queixosa, elemento esse necessário para a qualificação da relação jurídica laboral. Mas o seu recurso não mereceu deferimento (vide fls. 220 a 232 e 236 a 240 do P.A, volume 1).
8- Em 30 de Setembro de 2015, foi notificada ao recorrente a decisão que indeferiu o recurso hierárquico necessário e que manteve a sanção da multa anteriormente aplicada (vide fls. 242 a 243 do P.A, volume 1).
9- Em 1 de Dezembro de 2015, da decisão acima referida foi interposto o presente recurso contencioso.
Acrescentamos ainda os seguintes factos, em resultado dos elementos dos autos:
- Por sentença proferida em Processo de Contravenção Laboral nº LB1-15-0023-LCT do TJB, o A foi condenado pela prática de uma contravenção (negação parcial do direito da recorrida à remuneração base).
- O TSI, em recurso jurisdicional (Proc. nº 812/2015), concedeu provimento ao recurso e absolveu o A da imputada contravenção laboral em apreço, por considerar que não havia elementos para sustentar que o contrato que ligava a aqui recorrente ao A era de trabalho a tempo inteiro, mas sim parcial, não sendo considerada aplicável o regime da Lei nº 7/2008.
- Entre 1/09/2009 e 8/10/2012 B esteve inscrita na DSF como trabalhadora por conta de XX (fls. 139).
- E entre 1/07/2013 até Julho de 2018 como trabalhadora por conta própria (fls. 139).
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III – O Direito
1- Introdução
O acto administrativo sindicado puniu, como se viu, o A em multa no montante de MOP5,000.00 pela prática da infracção administrativa prevista e punida pelos arts .63.º n.º 6 e 88º, nº2, al. 4), da Lei n.º 7/2008.
O A impugnou no Tribunal Administrativo tal despacho, acometendo-o de “erro nos pressupostos de facto” e “de direito”.
O primeiro vício traduzir-se-ia no errado circunstancialismo fáctico que esteve na base da sanção administrativa. Isto é, a situação de facto não era aquela que o acto tomou como verdadeiro.
O segundo vício consistiria na aplicação de norma que não se adequaria ao caso, por inexistir infracção administrativa.
Ora bem. Verdadeiramente, o que está em causa é saber se a situação da recorrente era de emprego numa relação de trabalho por conta de outrem, se diferentemente representava o exercício de uma actividade liberal e por conta própria. E para se apurar esta conclusão, os factos têm que ser apurados com precisão e não podem ser deturpados.
Consoante a conclusão a que se chegue quanto à factualidade pertinente, assim se alcançará aquela outra a respeito da eventual violação da norma invocada no acto. Isto quer dizer que os vícios, ao fim e ao cabo, confluem num só, já que se os factos não forem aqueles que estiverem na base fundamentante do acto sindicado, então o que a DSAL teria efectuado seria uma má aplicação do direito. O erro nos pressupostos de facto só releva, enquanto vício autónomo, no âmbito de uma actividade discricionária. No âmbito de uma actividade vinculada, se a Administração erra na base de facto em que se fundamentou, esse vício de erro sobre os pressupostos de facto deixa de valer por si próprio, ou autonomamente, para arrastar a decisão para uma invalidade que deriva de uma má aplicação da norma, gerando um vício de violação de lei (entre outros, os Acs. do TSI, de 20/02/2014, proc. nº 525/2008 e de 29/10/2015, Proc. nº 94/2015).
Razão pela qual conheceremos desta questão unificada.
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2- Do recurso
Teria agido bem, ou mal, a DSAL ao apelar, no acto sancionador, ao disposto nos arts. 63º, nº6, e 88º, nº2, al. 4), da Lei nº 7/2008?
A sentença considerou que sim, que andou bem.
O art. 63º, nº6 dispõe que:
“O empregador é obrigado a entregar ao trabalhador um recibo do pagamento, do qual conste:
1) Identificação do empregador;
2) Nome do trabalhador e categoria profissional;
3) Número de beneficiário do Fundo de Segurança Social ou eventuais números atribuídos ao trabalhador por força da lei;
4) Período a que a remuneração corresponde;
5) Modalidades da remuneração discriminadas de forma articulada;
6) Descontos efectuados; (destaque nosso)
7) Montante líquido a receber.”
E o art. 88º, nº2, al. 4) prescreve que o empregador é punido com multa de $ 1000,00 (mil patacas) a $5.000,00 (cinco mil patacas) por cada trabalhador em relação ao qual se verifica infracção, que emitir recibo de pagamento sem as menções obrigatórias, previstas no nº6 do art. 63º.
Ora, o art. 63º citado parte de uma condição sine qua non, que é a de existir uma relação de trabalho entre duas partes, «empregador» e «trabalhador», nos moldes em que estas figuras se definem no art. 2º, als. 1) e 2), da citada Lei.
Mas, isso implica que haja uma relação entre ambos, que se caracterize por um vínculo dominado por poderes de autoridade e direcção do empregador sobre o trabalhador. Só nessas circunstâncias - de relação jurídico-laboral subordinada -, se estará perante um contrato de trabalho “por conta de outrem”.
Então, é de perguntar se Maria de Fátima era empregado/trabalhador do A ou era trabalhador independente e por conta própria.
A DSAL não diligenciou junto de quem a podia ajudar a dissecar essa relação. E acabou por admitir que aquela professora era trabalhadora por conta do A, sem sequer saber se a relação era a “tempo parcial” ou a “tempo inteiro”.
E o que se impõe notar é que se Maria de Fátima era empregada do A tinha este, enquanto entidade patronal, que emitir recibo de pagamento periódico (em função do período de referência da remuneração base acordado entre as partes: cfr. art. 62º, nº2, cit. dip.). Mas se a actividade era prestada em regime de actividade liberal, e por conta própria, então, era a docente quem tinha a obrigação formal de emitir o recibo Modelo M7, com menção do respectivo número fiscal, de todas as importâncias recebidas dos seus clientes a título de remuneração, provisão, adiantamento ou qualquer outro (art. 15º, nº1, do Regulamento do Imposto Profissional aprovado pela Lei nº 2/78/M, de 25 de Fevereiro).
Acontece que a informação da DSF de fls. 139 revela que no período de tempo considerado no acto a docente não era empregada do A, antes exercia uma “actividade por conta própria”, sujeita ao 2º grupo, e como tal inscrita nas Finanças para efeito de imposto profissional (cfr. arts. 10º e sgs. do Regulamento acima citado).
Esta informação documental apresentada pela DSF está, aliás, em linha com o teor da decisão judicial tomada no âmbito da impugnação da contravenção laboral que deu origem ao Proc. nº LB1-15-0023-LCT, de cuja sentença condenatória o A recorreu com pleno êxito, já que o TSI, no aresto de 21/06/2018, também entendeu que não estava provada a figura de um contrato de trabalho a tempo inteiro, mas antes para factualidade que “aponta [para] a existência de uma relação de trabalho a tempo parcial” (fls. 142-148).
Quer isto dizer, portanto, que a situação de facto real não era aquela que o acto tomou por certo ou verdadeiro.
Acresce dizer que, ainda que se estivesse perante uma relação laboral de tempo parcial, o art. 3º, nº3, al. 3), da Lei nº 7/2008 mandaria regulá-la por legislação especial. E, mesmo que se entenda aplicável essa Lei enquanto não fosse aplicada a referida “legislação especial”, seria de julgar que o regime sancionatório não poderia ser aplicado nesse âmbito, sem ofensa dos princípios da legalidade e da tipicidade das infracções administrativas, o que, de resto, parece estar contido na previsão do art. 79º da Lei citada.
A sentença foi sensível à norma do art. 1079º do Código Civil, que julgou ser aplicável à situação vertente. Mas, não deixou de referir que a posição da recorrente acerca dos factos não tem o “mínimo suporte nos autos” (pág. 7 da sentença). Pois bem, agora o TSI está em condições de dizer que há elementos nos autos que se encarregam de demonstrar que a docente estava “colectada “ no 2º grupo, que é destinado a actividade exercida por conta própria (art. 14º do Regulamento do Imposto Profissional).
Em suma, não podia a DSAL aplicar as referidas disposições da Lei nº 7/2008, porque a situação de facto não se enquadrava na previsão legal invocada. Ao fazê-lo cometeu o vício de violação de lei. A sentença ao subscrever essa posição incorreu na mesma violação.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença e, em consequência, anulando o acto sindicado.
Sem custas.
T.S.I., 9 de Maio de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa
207/2018 18