Proc. nº 616/2018
Recurso jurisdicional em matéria cível
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 9 de Maio de 2019
Descritores:
- Arresto
- Várias execuções sobre os mesmos bens
- Preferência resultante da penhora
- Suspensão da execução
- Reclamação de créditos
SUMÁRIO:
I – Se numa execução forem nomeados bens que estejam previamente arrestados, o arresto é convertível em penhora (art. 732º, do CPC).
II – Uma vez convertido em penhora, a data a considerar para efeitos da anterioridade a que se refere o art. 812º, nº1, do Código Civil é a do arresto, e não a da penhora resultante da conversão.
III – Essa anterioridade releva apenas para efeitos substantivos e não para se apurar qual o processo de execução que deverá ser suspenso e qual o que deverá prosseguir, quando sobre os mesmos bens pendem várias execuções, nomeadamente para os credores reclamarem os seus créditos.
IV – Para efeitos processuais, nos termos do art. 764º, nº1, do CPC, o que releva para determinar qual o processo que deve ser suspenso e aquele onde deve ser apresentada a reclamação de créditos é a data da penhora mais antiga (e respectivo registo, se incidir sobre bens imóveis).
V – Se sobre os mesmos bens incidir uma penhora, por um lado, e uma conversão de um arresto em penhora, para efeito da antiguidade a que se refere o art. 764º, nº1 citado não releva a data do arresto, mas sim a da conversão do arresto em penhora (e respectivo registo, se incidir sobre bens imóveis).
Proc. nº 616/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I - Relatório
“A有限公司”, em português “A, LIMITADA”, e em inglês “A LIMITED”,----
Nos autos de execução ordinária (CV1-16-0053-CEO) ----
Apresentou-se a reclamar créditos nos montantes de MOP$ 15.176.165,42 e de MOP$ 5.978.441,61, resultantes de empréstimos concedidos e em dívida, alegando ter o executado ter constituído a seu favor uma hipoteca voluntária sobre três fracções imobiliárias (L20; M20; O20) que ali melhor identifica.
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Também o B, SA reclamou créditos.
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O juiz titular do processo, por despacho de 31/01/2018, não admitiu a reclamação de créditos nesses autos, com o fundamento de que a penhora das referidas fracções (também a N20) fora suspensa nos correspondentes autos de execução, nos termos do art. 764º, nº1, do CPC em virtude de sobre elas ter recaído outra penhora mais antiga em outro processo (CV2-16-0226-CEO).
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Contra esse despacho, o A apresentou recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“A. Violou o despacho recorrido os artigos 758º, nº3 e 764º, nºl do CPC.
B. Nos termos do artigo 764º, nº1 do CPC, se a penhora estiver sujeita a registo é por este que a sua antiguidade se determina.
C. De acordo com o espírito da lei, o efeito retroactivo da conversão do arresto em penhora opera apenas no plano substantivo - na hierarquização da garantia, para efeitos de graduação de créditos), mas já não no plano adjectivo (para fins meramente processuais)
D. A sustação desta execução a mais não conduz do que a uma escusada repetição de actos processuais.
E. Num ordenamento processual virado para a prontidão da justiça, simplificação e aproveitamento dos actos praticados, não faz o menor sentido inutilizar processado, por vezes, longo, moroso e dispendioso, para o repetir ipsis verbis desde o início.
F. E também de acordo com a letra da lei, esta é a única interpretação que deverá prevalecer, porquanto a norma em questão alude a uma penhora efectivada posteriormente· àquela a que se deve dar prevalência.
G. Ora, a conversão do arresto em penhora não foi efectivada em data posterior a tal ocorrência, simplesmente por via dessa conversão e decorrente efeito retroactivo da mesma, aquela tornou-se ou passou a ser posterior.
H. Tudo quanto baste para concluir que o critério da anteriodade baseia-se, nas penhores já existentes, e não nas que, porventura, venham a resultar da conversão do arresto, em harmonia com o sistema e o espírito e letra da lei.
Termos em que deve ser proferido acórdão que revogue a decisão recorrida, de não admissão da reclamação de créditos do Banco Recorrente, a qual deve ser substituída por outra que a admita liminarmente, e que determine o prosseguimento dos autos, na fase de reclamação em que se encontrava, sem prejuízo da citação do credor beneficiário do arresto (posteriormente convertido em penhora), ou da reclamação de crédito espontaneamente pelo mesmo.”
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O B, apresentou resposta a este recurso, que sintetizou da seguinte maneira:
“A. Está suspensa a presente execução sobre as Fracções “L20”, “M20”, “N20” e “O20”, pois a penhora é anterior na execução que corre termos sob o n.º CV2-16-0226-CEO.
B. Não foi admitida a reclamação de créditos do Recorrente que tem garantia real sobre as fracções “L20”, “M20” e “O20, que deverá ir reclamar os seus créditos no processo n.º CV2-16-0226-CEO.
C. O Recorrente interpôs recurso do despacho que não admitiu a sua reclamação de créditos, alegando que o critério de antiguidade das penhoras apenas diz respeito às penhoras já existentes, e não às penhoras que foram precedidas de arresto.
D. Diz o artigo 764.º do CPC que, pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, suspende-se quanto a estes a execução em que a penhora tenha sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga.
E. O Recorrido procedeu ao registo do arresto sob a Apresentação n.º 63 em 23 de Novembro de 2016, posteriormente convertido em penhora e registado sob a Apresentação n.º 114 em 06 de Dezembro de 2017, pelo que foi suspensa a presente execução quanto a esses bens.
F. Está em causa o critério da antiguidade da penhora.
G. Nos termos do disposto no artigo 764.º, n.º 1 do CPC “Se a penhora estiver sujeita a registo, é por este que a sua antiguidade se determina” e nos termos do artigo 812.º do CC “tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto”.
H. A penhora por conversão do arresto, foi efectivada em 23 de Novembro de 2016 (data do registo do arresto), ou seja, em data anterior à penhora registada a favor da C Limitada, exequente nos autos principais, em 6 de Junho de 2017.
I. A execução sobre as Fracções penhoradas dever-se-á manter suspensa.
J. A Recorrente em 17 de Abril de 2018 já reclamou créditos na execução n.º CV2-16-0226-CEO.
K. Não há razões de Direito para a interposição do recurso a que ora se responde, nem para alterar a decisão tomada no douto Despacho recorrido.
Nestes termos, e nos melhores de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser o douto Despacho recorrido mantido, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 - Contra D foi movida execução ordinária a que foi atribuído o nº de distribuição nº CV1-16-0053-CEO.
2 - Nesses autos foram penhoradas as fracções “L-20”, M20”, “N20” e “O20” em 16/05/2017, cujo registo teve lugar em 6/06/2017 (fls. 31 dos autos).
3 - No TJB pendem os autos de execução com o nº CV2-16-0226-CEO instaurada pelo B contra E Limitada e D e esposa F, G e H, com base em 4 livranças subscritas pela executada e avalizadas pelo 2º e 3º executados (fls. 231 e sgs. dos autos)
4 - Previamente à instauração da execução, o B requereu a providência cautelar de arresto, que correu termos sob o nº CV2-16-0017-CPV (actual nº CV2-16-0226-CEO-A), que viria a ser decretado em 16/11/2016 (fls. 310).
5 - O arresto foi objecto de registo em 23/11/2016 (fls. 30 dos autos)
6 - Este arresto foi convertido em penhora por despacho de 13/11/2017, vindo a ser objecto de registo e conversão em penhora sobre as referidas fracções em 6/12/2017 (fls. 310).
5 - Em 31/01/2018, o juiz titular do processo de execução CV1-16-0053-CEO, a propósito das reclamações de créditos apresentadas pelo A e pelo B, proferiu o seguinte despacho:
“Uma vez que a execução sobre as fracções autónomas “L20”, “M20”, “N20” e “O20” penhoradas nos autos principais foi suspensa nos termos do artigo 764.º n.º 1 do CPC, por a penhora que incide sobre as mesmas fracções nos autos CV2-16-0226-CEO é mais antiga em relação aos presentes autos, pelo que é aí se deve reclamar o respectivo crédito.
Nestes termos, determino a não admissão da reclamação de créditos nos presentes autos.
Notifique e DN.”
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III – O Direito
1 - Está unicamente em causa apurar se o tribunal “a quo” andou bem em não admitir a reclamação de créditos no apenso aos autos de execução nº CV1-16-0053-CEO, por considerar ser mais antigo o processo de execução nº CV2-16-0226-CEO, e portanto, por dever ser por apenso a esses autos que a reclamação deveria ser deduzida, face ao disposto no art. 764º, nº1, do CPC.
Vejamos.
O art. 764º, nº1 do CPC dispõe o seguinte:
«Pendendo mais do que uma execução sobre os mesmos bens, suspende-se quanto a estes a execução em que a penhora tenha sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga; se a penhora estiver sujeita a registo, é por este que a sua antiguidade se determina».
Ora, a penhora das 4 fracções imobiliárias referente aos presentes autos ocorreu no dia 16/05/2017, sendo o registo sido efectuado no dia 6/06/2017.
Nos autos nº CV2-16-0226-CEO foram arrestados os mesmos bens em 16/11/2016, vindo o arresto a ser registado em 23/11/2016, convertido em penhora em 6/12/2017.
Portanto, como se vê, se olharmos apenas para as datas das penhoras, veremos que a da conversão do arresto em penhora é posterior à da penhora decretada no âmbito dos presentes autos.
Mas se olharmos para a data do arresto (CV2-16-0226-CEO) e a confrontarmos com a da penhora dos presentes autos (CV1-16-0053-CEO), verificaremos que aquela ocorreu primeiro e antes desta.
Então, qual delas prevalece para efeito do art. 764º, nº1?
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2 - Comece-se por dizer que, estando a penhora sujeita a registo, nos termos do art. 2º, nº1, al. m), do CRP, o que releva para apuramento da antiguidade da penhora é a data do registo (cfr. tb. arts. 723º, nº4 e 764º, nº1, “fine”, do CPC).
E quanto à questão central que nos ocupa, recordamos que ela foi já objecto de exame em outro aresto deste TSI, cujo teor transcreveremos já de seguida:
“É aqui que o art. 812º do CC presta socorro. Com a epígrafe “Preferência resultante da penhora”, o seu conteúdo é o seguinte:
1. Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.
2. Tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto.
Ora bem. Se numa execução estiverem nomeados bens que estejam previamente arrestados, esse arresto é convertível em penhora (art. 732º, do CPC).
Mas, o que importa saber é se, face ao art. 812º, nº2, do CC, a data a considerar para a averiguação de qual seja o processo de execução onde ser feita a reclamação de créditos é a data do arresto.
Na verdade, o art. 812º, nº2 citado determina que a anterioridade a considerar é a data do arresto. Mas pergunta-se anterioridade para quê? Para que efeito? Ora, a solução está no próprio artigo, não só na epígrafe, mas também no nº1. A resposta é, portanto, esta: a anterioridade releva, exclusivamente, para efeito de “preferência”, isto é, para efeito “de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior”.
Ou seja, estamos diante de um preceito legal (e não é por acaso que ele está contido no Código Civil e não no Código de Processo Civil) que apenas se preocupa com os efeitos substantivos da posição de cada um dos credores. Em caso de conflito, prevalece a data do arresto e assim o titular que o viu convertido em penhora vê triunfar a sua posição jurídico-substantiva sobre a de outro credor concorrente que tenha uma penhora1 ou uma garantia real posterior.
Mas, a solução para esse conflito de posições, que o art. 812º resolve da maneira acabada de ver, não tem nada que ver sobre o palco processual onde essa “luta” se trava. Para o Código Civil, é indiferente onde o crédito seja reclamado; o que ele dispõe é que, salvo existindo um crédito com garantia real anterior, a anterioridade do arresto, desde que convertido em penhora, confere ao seu titular preferência no pagamento da venda do bem penhorado.
Para procurar saber qual o processo onde os interessados podem exercitar os poderes e direitos substantivos que lhes advêm das penhoras, a única lei a atender é o Código de Processo Civil.
E quanto a isso, a solução está agora à vista: entre dois, ou mais, processos de execução que visam a venda dos mesmos bens penhorados, o processo prosseguirá em relação ao qual a penhora tenha sido anterior2, pois é isso o que o art. 764º, nº1 prescreve.
(…)
É esta a posição que, em direito comparado, e entre outros, decorre dos seguintes acórdãos:
- Ac. do STJ, de 3/05/2007, Proc. nº 07B747;
- Ac. da RC, de 10/03/2009, Proc. nº 285-C/2002.C1;
- Ac. da RC, de 12/09/2017, Proc. nº 6304/14;
- Ac. da RL, de 17/01/2006, Proc. nº 412/2006.
Na mesma linha de pensamento, na doutrina, ver Miguel Teixeira de Sousa, in Acção Executiva Singular, 1998, página 335.» (Ac. do TSI, de 28/06/2018, Proc. nº 312/2018).”
Continuamos a achar que esse aresto contém a solução correcta, por isso a fazemos nossa para efeito da fundamentação da resolução do presente recurso.
Ora, enquanto a penhora dos presentes autos (CV1-16-0053-CEO) foi decretada em 16/05/2017, e registada em 6/06/2017, já o arresto naqueles outros (CV2-16-0226-CEO), embora ocorrido em 16/11/2016, e registado em 23/11/2016, apenas foi objecto de conversão em penhora em 13/11/2017 e registada em 6/12/2017.
Ou seja, tanto a penhora como o registo referente aos presentes autos foram anteriores à conversão do arresto em penhora e ao seu registo naqueles outros. Dito de outra maneira, a penhora dos presentes autos é mais antiga do que a da conversão do arresto em penhora.
Ora, se a reclamação de créditos deve ser feita no processo em que a penhora é mais antiga, é neste em que nos encontramos que ela deve ser apresentada. Por conseguinte, a solução respeitante à antiguidade relevante que o art. 764º, nº1, do CPC estabelece não dá cobertura ao despacho em crise.
Razão por que o recurso procederá, devendo o Ex.mo juiz titular do processo admitir liminarmente a reclamação e determinar o prosseguimento do respectivo apenso (art. 759º, nº1, do CPC).
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho impugnado, que deve ser substituído por outro que admita liminarmente a reclamação de créditos e determine o prosseguimento do respectivo apenso.
Custas pelo recorrido B.
T.S.I., 9 de Maio de 2019
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
1 A penhora não é comummente considerada uma garantia real, mas de um acto processual que confere um efeito substantivo semelhante à garantias reais: preferência e sequela (v.g., Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 9ª ed., pág. 919; tb. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3ª ed., ver., pág. 301-302).
2 E suspende-se aquele em que a penhora foi posterior.
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