Processo n.º 27/2019. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrida: B.
Assunto: Impedimento de juiz. Recurso de revisão. Documento novo.
Data do Acórdão: 24 de Abril de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
O juiz que proferiu sentença de 1.ª instância não está impedido, face ao disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 311.º do Código de Processo Civil, de participar no recurso jurisdicional de indeferimento liminar de recurso de revisão da sentença, com fundamento na alínea c) do artigo 653.º do Código de Processo Civil.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório e factos provados
a) B intentou acção declarativa com processo comum ordinário contra A, pedindo a declaração de que os dados pessoais do proprietário de 2 fracções autónomas identificadas são: o réu A, casado com a autora B, sob o regime de bens supletivo da Lei do Casamento da República Popular da China.
b) A acção foi julgada procedente, tendo a sentença, que foi proferida pelo Juiz-Presidente do Tribunal Colectivo, Dr. C, em 26 de Abril de 2013, transitado em julgado.
c) Nessa sentença diz-se o seguinte:
“Concretamente, os factos deram como provados que a Autora e o Réu procederam ao registo de casamento em Xinhui de Jiangmen da China em 30 de Dezembro de 2004, na altura, ambas as partes não escolheram o regime de bens após o casamento.
Em 11 de Janeiro de 2005, o Réu adquiriu em Macau duas fracções autónomas através da celebração da escritura pública de compra e venda, e na altura, o Réu declarou que o seu estado civil era solteiro.
Em 2007, o Réu pediu à Autora para alterar o regime matrimonial de bens, e posteriormente, em 5 de Março, ambas as partes celebraram um “acordo de bens do casal” no Cartório Notarial do Distrito de Xinhui da Cidade de Jiangmen da China, no qual ambas as partes declararam que os bens adquiridos por cada um dos cônjuges antes e depois do registo do casamento são pertença daquele que os adquiriu, não podendo nenhum dos cônjuges interferir na utilização e no funcionamento dos bens pessoais do outro. Quaisquer perdas e lucros com os bens são dos seus titulares, nada tendo a ver com o outro”.
Em Maio de 2011, a Autora verificou que o Réu declarou ser solteiro quando celebrou em Macau a escritura pública de compra e venda das duas fracções autónomas.
Conforme os factos acima referidos, qual é o verdadeiro estado civil da Autora e do Réu? Se o alegado “acordo de bens do casal” celebrado por ambas as partes em 5 de Março de 2007 é válido e, em caso positivo, se o mesmo tem efeitos retroactivos?
Vamos agora resolver cada uma das questões acima referidas.
Conforme os elementos constantes dos autos, a Autora e o Réu procederam ao registo de casamento em Xinhui de Jiangmen da China em 30 de Dezembro de 2004 e ambas as partes não escolheram o regime matrimonial de bens. Conforme o artigo 17.º da Lei do Casamento da República Popular da China1, os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do casamento são considerados bens comuns do casal, tendo ambos os cônjuges direito igual aos bens comuns do casal.
Face a isso, podemos afirmar que o estado civil do Réu do presente processo A quando celebrou a escritura pública em Macau para adquirir dois imóveis em 11 de Janeiro de 2005, era necessariamente casado, cujo cônjuge era a Autora B, sendo o regime de bens após o casamento de ambas as partes o regime supletivo da Lei do Casamento da República Popular da China.
Porém, por outro lado, os factos também provaram que depois de ser residentes de Macau, a Autora e o Réu procederam à alteração do regime matrimonial de bens no interior da China. Daí, pode-se ver que a referida relação jurídica refere-se ao regime jurídico fora da RAEM, pelo que, entendo que devem ser aplicadas as normas de conflitos previstas no Código Civil de Macau para resolver a referida questão.
Em primeiro lugar, quanto à questão se a forma do referido “acordo de bens do casal” preenche os dispostos legais, o artigo 35.º n.º 1 do Código Civil de Macau dispõe que “a forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio; é, porém, suficiente a observância da lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, salvo se a lei reguladora da substância do negócio exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o negócio seja celebrado no exterior.”
Em princípio, a forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio, pelo que, caso o referido acordo seja celebrado para regular os bens em Macau, a referida declaração negocial deve observar a forma exigida pela lei de Macau.
Embora haja situação excepcional na segunda parte do n.º 1 do aludido artigo 35.º, isto é, a forma da declaração negocial também é suficiente a observância da lei em vigor no lugar em que é feita a declaração, caso a lei reguladora da substância do negócio exija que o negócio deve observar a determinada forma, o negócio deve observar tal determinada forma, sob pena de nulidade ou ineficácia por falta de requisito formal.
Pelos acima expostos, dado que o referido acordo foi celebrado para regular os bens em Macau, a declaração negocial deve ser feita de acordo com a forma exigida pela lei de Macau. Ao abrigo do artigo 1578.º n.º 3, em conjugação com o artigo 1574.º do Código Civil de Macau, é rigorosamente previsto que as convenções pós-nupciais só são válidas quando sejam celebradas por escritura pública.
Daí, pode-se vislumbrar que o “acordo de bens do casal” celebrado pelos Autora e Réu no Cartório Notarial de Xinhui da Cidade de Jiangmen da China não foi lavrado por escritura pública, tratando-se, de facto, apenas de um documento particular, pelo que, tal acordo é nulo por falta de requisito formal.
Caso a parte tenha opinião diversa do aludido entendimento, mesmo que seja considerado válido tal “acordo de bens do casal” celebrado no Cartório Notarial de Xinhui da Cidade de Jiangmen da China, é impossível que tal acordo produza efeitos retroactivos, cujos fundamentos são os seguintes.
Ao abrigo do artigo 52.º n.º 1 do Código Civil de Macau, “A admissibilidade, substância e efeitos das convenções pós-nupciais e das modificações feitas pelos cônjuges ao regime de bens, legal ou convencional, são reguladas pela lei competente nos termos do artigo 50.º.”
O artigo 50.º n.º 1 do Código Civil de Macau dispõe que “Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.”
Dos factos resulta que ao celebrar o “acordo de bens do casal” no Cartório Notarial do Distrito de Xinhui da Cidade de Jiangmen da China, ambas as partes já passaram a ser residentes de Macau (cfr. documento a fls. 15 dos autos), pelo que, conforme o artigo 1578.º n.º 2 do Código Civil de Macau, “a convenção pós-nupcial produz efeitos entre os cônjuges a partir do dia da sua celebração, sendo nula qualquer estipulação em contrário”.
Agora é hora de decidir.
No caso vertente, a Autora pede que seja declarado que o estado civil do Réu A na aquisição dos dois imóveis em causa “era casado, cujo cônjuge era a Autora B e ambas as partes contraíram o casamento sob o regime da comunhão de adquiridos.”
Os factos provaram que a Autora e o Réu procederam ao registo de casamento em Xinhui de Jiangmen da China em 30 de Dezembro de 2004, não tendo escolhido o regime matrimonial de bens. Segundo o artigo 17.º da Lei do Casamento da República Popular da China, os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do casamento são considerados bens comuns do casal e ambos os cônjuges têm direito igual aos bens comuns do casal.
Na nossa óptica, o “acordo de bens do casal” celebrado pelos Autora e Réu no Cartório Notarial de Xinhui de Jiangmen da China pode ser considerado nulo por falta de requisito formal, pelo que, devem ser julgados procedentes os fundamentos da Autora, declarando que o estado civil do Réu A na celebração, em Macau, da escritura pública da aquisição dos dois imóveis [Endereço (1)], em 11 de Janeiro de 2005 era casado, cujo cônjuge era a Autora B e ambas as partes contraíram o casamento sob o regime de bens supletivo da Lei do Casamento da República Popular da China e não meramente sob o regime da comunhão de adquiridos previsto no Código Civil de Macau”.
d) Em 8 de Janeiro de 2016, o ora recorrente (réu da acção) interpôs o recurso de revisão contra a autora da acção.
e) O recurso foi indeferido liminarmente pelo Tribunal de Primeira Instância, em 4 de Março de 2016, com os seguintes fundamentos:
No presente recurso de revisão, o Recorrente A (Réu do processo principal) pensando que apresentando um certificado emitido pela Secretaria Notarial de Xinhui da Cidade de Jiangmen da Província de Guangdong, China em 09/11/2015, seria documento suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, que por sua vez, veio nos termos do artº653º, al. c) do CPC, interpor recurso de revisão contra B (Autora do processo principal).
Nos termos do artº 653º, al. c) do CPC:A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão “Quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que a decisão foi proferida, sendo o documento suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida” .
Vimos que de acordo com a disposição legal supracitada, para interpor recurso de revisão à decisão transitada em julgado é preciso preencher duas condições abaixo indicadas:
1. Apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que a decisão transitada em julgado foi proferida.
2. Sendo o documento suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
Não obstante o Recorrente ter interposto recurso de revisão no prazo legal (nos termos do artº 655º e 656º, al. b) do CPC), porém, salvo o devido respeito, o presente Tribunal entende que o fundamento de recurso apresentado pelo Recorrente não preenche os requisitos previsto no artº 653º, alínea c) do CPC.
De facto, no processo principal (fls.221 a 225 dos autos) o Tribunal julgou procedentes os fundamentos da Autora por duas razões:
1) O acordo de Bens do Casal” celebrada entre a Autora e o Réu na Secretaria Notarial de Xinhui da Cidade de Jiangmen da Província de Guangdong, China, não foi redigida na forma de certificado notarial, de facto, é apenas um documento particular, por isso, na situação de falta dos elementos formais, esta convenção não tem validade.
2) Se bem que considere válida este acordo, mas como a Autora e o Réu aquando assinaram tal acordo já eram residentes de Macau, pelo que nos termos do artº 1578º, nº 2 do CC, tal acordo pós-nupcial só produz efeitos entre os cônjuges a partir do dia da sua celebração, qualquer estipulação contrária é nula, dado que ambas as partes na altura da celebração do casamento não escolheram regime matrimonial de bens, pelo que, o réu aquando adquiriu [Fracção (1)] e [Fracção (2)], o seu estado civil devia ser casado segundo o regime subsidiário de bens do direito matrimonial da RPC.
Sem dúvida que o acórdão da acção principal baseou-se essencialmente no 1º fundamento que julgou improcedente em relação ao Recorrente e procedente em relação à Recorrida, a fundamentação da decisão foi baseada no “acordo de bens do casal” celebrado entre a Autora e o Réu na Secretaria Notarial de Xinhui da Cidade de Jiangmen da Província de Guangdong, China, carece dos elementos formais pelo que foi considerada invalido.
Contudo, não significa que tal certificado alegado pelo Recorrente emitido pela Secretaria Notarial de Xinhui da Cidade de Jiangmen da Província de Guangdong, China, em 09/11/2015 e que foi obtido nessa mesma data, se apresente como documento de que a parte não tivesse podido fazer uso no processo em que a decisão foi proferida, e que seja documento suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
Razão porque, primeiro, este documento emitido pela Secretaria Notarial de Xinhui da Cidade de Jiangmen da Província de Guangdong, trata-se apenas de um comprovativo que o Recorrente e a Recorrida, nessa data assinaram o “Acordo de Bens do Casal”, este certificado notarial é um documento comprovativo que serve para complementar o teor, a redacção e a forma. De facto, se o Recorrente deseja usar este documento comprovativo para questionar 1º fundamento da decisão recorrido, isto é, questionar que no acórdão considerou que a “Convenção Matrimonial de Bens” não é certificado notarial, então devia e podia fazê-lo no processo principal, designadamente, depois de proferido o acórdão que não se conforma, podia no prazo legal interpor recurso ordinário, nomeadamente podia juntar tal documento complementar no recurso ordinário para servir de fundamento e de prova.
Porém, o recorrente não o fez, mesmo depois de aceite o seu recurso, ele próprio retirou-se (vide fls. 233 a 234 e 240 a 241), desistindo do recurso ordinário por si interposto e dos meios devidos para apresentar as suas (outras) provas, a fim de provar que tal convenção é um certificado notarial e para poder questionar o conteúdo do acórdão (designadamente o 1º fundamento da decisão). Assim sendo, entendemos que o Recorrente tem de aceitar o resultado de que foi ele que não continuou com o recurso ordinário contra o acórdão.
Além disso, não obstante o Recorrente ter alegado que enquanto estava a aguardar a decisão do processo principal (antes do transitado em julgado o acórdão recorrido), dirigiu-se à referida Secretaria Notarial para requerer a emissão desse documento comprovativo complementar para interpor recurso ordinário, que entretanto, na altura foi recusado por tal Secretaria, mas depois em 09/11/2015 foi-lhe emitido esse documento, do nosso entendimento, suponhamos que foi provado que durante o decurso da decisão, de facto foi devido à referida Secretaria, o Recorrente não conseguiu obter atempadamente tal documento comprovativo complementar e poder aproveitá-lo, contudo não significa que o recorrente permite usar este documento obtido à posteriori para fazer uso no processo em que a decisão foi proferida, como documento suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
Razão porque, se bem que este documento comprovativo complementar fosse aceite, o mais que poderia suceder é talvez ilidir o 1º fundamento da decisão do acórdão transitado em julgado, ou seja, ilidir a afirmação de que o “Acordo de Bens do Casal” não pertence a certificado notarial, mas isto não é suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
Nos termos do artº 653º, al. c) do CPC “decisão em sentido mais favorável” é preciso produzir efectivamente efeito, isto é, fazer com que a parte vencedora absoluta da acção se transforme em parte vencida total ou parcial da acção, ou o pedido do autor que foi totalmente rejeitado se transforme em pedido totalmente ou parcialmente procedente (no pedido reconvencional do réu surge a mesma situação), não basta dizer de forma vaga, simplesmente invocar certo fundamento da decisão para se tornar “mais favorável”.
Por isso, mesmo que decretasse o “Acordo de Bens do Casal” preenche os requisitos formais e é válida, contudo ainda temos o 2º fundamento da decisão constante no acórdão transitado em julgado que é suficiente para julgar procedente o pedido da Autora, assim sendo, o Recorrente seria derrotado na mesma por causa do 2º fundamento da acção principal, portanto a posição do Recorrente como parte vencida no acórdão que julgou procedente o pedido da recorrida (autora da acção principal) não vai modificar nem diminuir por causa disso, razão porque a Recorrida continua absolutamente vencedora e o Recorrente mantém absolutamente vencido.
Com base nos fundamentos supracitados, salvo sempre o muito devido respeito por opinião diferente, dado que o recurso de revisão interposto pelo Recorrente evidentemente não corresponde com o previsto no artº 653º, al. c) do CPC, pelo que nos termos do artº 660º, nº 2 do CPC, o presente Tribunal indefere imediatamente o requerimento do recurso de revisão por ser manifesto que não há fundamento para o referido recurso.
f) O réu interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal de Segunda Instância;
g) No TSI, o recorrente pediu a declaração de impedimento do Relator, Dr. C, que indeferiu o requerimento com os seguintes fundamentos:
“Vem o recorrente pedir que seja declarado o meu impedimento nos termos do artigo 311.º n.º 1 alínea e) e do artigo 312.º n.º 2 do Código de Processo Civil.
Salvo o devido respeito por opinião diversa do recorrente, não concordo com o pedido do recorrente.
Apesar de eu ter proferido o acórdão do Tribunal a quo quando exercia funções nos Tribunais de primeira instância, o objecto do presente recurso cinge-se apenas à questão sobre o requisito do recurso de revisão, ou seja, é de considerar se os documentos apresentados pelo recorrente são ou não suficientes para modificar o acórdão a quo em sentido mais lhe favorável (cfr. artigo 653.º alínea c) do Código de Processo Civil).
Dado que nunca tomei posição sobre a questão acima referida, o pedido de declaração do meu impedimento formulado pelo recorrente não está em conformidade com a lei, devendo ser indeferido.
h) O recorrente reclamou para a Conferência, que manteve a decisão do Relator, com os seguintes fundamentos:
A questão a conhecer desta conferência é a de saber se a aludida causa referida pelo recorrente constitui a situação do impedimento do juiz previsto no artigo 311.º n.º 1 alínea e) do Código de Processo Civil.
Ao abrigo do artigo 311.º n.º 1 alínea e) do Código de Processo Civil, “O juiz está impedido de exercer as suas funções quando se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz, quer proferindo a decisão recorrida quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso”.
Referem claramente Cândida da Silva Antunes Pires e Viriato Manuel Pinheiro de Lima2: “não há impedimento se o juiz do recurso foi o juiz do processo na instância inferior mas se limitou a proferir decisões que não estão em causa ou não têm ligação com a questão que se debate no recurso.”
Para o presente processo, apesar de o Relator ter proferido o acórdão do Tribunal a quo quando exercia funções nos Tribunais de Primeira Instância, o objecto do presente recurso cinge-se apenas à questão sobre o requisito do recurso de revisão, ou seja, é de considerar se os documentos apresentados pelo recorrente são ou não suficientes para modificar o acórdão do Tribunal a quo em sentido mais lhe favorável (cfr. artigo 653.º alínea c) do Código de Processo Civil).
De facto, quando o fundamento for julgado procedente, a decisão objecto de revisão, isto é, o acórdão do Tribunal a quo só é revogada, e em seguida, profere-se nova decisão das questões do processo original (artigo 662.º alínea b) do Código de Processo Civil).
Dado que o Relator nunca tomou posição sobre a aludida questão (do recurso de revisão), a causa de declaração do impedimento deste invocada pelo recorrente não está em conformidade com a lei, devendo a reclamação ser julgada improcedente, mantendo-se a decisão proferida pelo Relator.
i) O recorrente interpôs recurso para o Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- Tanto nas alegações do recurso de revisão, como nas alegações do recurso principal, o recorrente suscitou as questões controvertidas, isto é, se o “acordo de bens do casal” em causa pode ser considerado nulo por falta de requisito formal e se tal acordo tem efeito retroactivo.
- Quanto às referidas questões controvertidas, o Relator tinha tomado posição em 26 de Abril de 2013.
- O recorrente entende que não é adequado que o Relator do processo de recurso principal conhece agora da questão sobre o requisito do recurso de revisão, uma vez que o conhecimento desta questão envolve necessariamente as questões de direito já conhecidas no acórdão de primeira instância.
III – O Direito
1. Questões a apreciar
Há que conhecer das questões suscitadas pelo recorrente.
2. Fundamentos da sentença da acção
A sentença de 1.ª Instância da acção foi chamada a decidir se o réu A era casado com a autora B e qual o regime de bens do casamento, defendendo a autora que este era o regime de bens supletivo da Lei do Casamento da República Popular da China. Tudo para efeitos de inscrição destes dados no registo predial de duas fracções autónomas.
A sentença concluiu que as partes eram casadas entre si aquando da aquisição das duas fracções autónomas no regime de bens supletivo da Lei do Casamento da República Popular da China. Mas, que, posteriormente, procederam, no Interior da China, à alteração do regime de bens do casamento. Mais decidiu a sentença que este acordo de alteração do regime de bens do casamento é nulo, por se aplicar à sua forma a lei de Macau, que exige a celebração por escritura pública, sendo que o acordo não foi lavrado por escritura pública, mas por mero documento particular. Deste modo, a sentença decidiu que as partes eram casadas entre si no regime de bens supletivo da Lei do Casamento da República Popular da China.
3. Fundamentos do recurso de revisão
O recurso de revisão, de que emerge o presente recurso jurisdicional, interposto de indeferimento de impedimento do Relator do TSI, foi deduzido com fundamento na alínea c) do artigo 653.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe:
“Artigo 653.º
(Fundamentos)
A decisão transitada em julgado só pode ser objecto do recurso de revisão com os seguintes fundamentos:
a) …
b) …
c) Quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que a decisão foi proferida, sendo o documento suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;
d) …
e) …
f) …
g) …”
O réu da acção interpôs recurso de revisão, apresentando um documento novo, emitido pela Secretaria Notarial de Xinhui, da Cidade de Jianmen, Província de Cantão, alegadamente, para provar que o acordo de alteração do regime de bens do casamento foi celebrado por escritura pública, alegando que não o pôde apresentar no decurso da acção, porque aquela Secretaria Notarial recusou a emissão do documento em tempo, só o tendo feito após trânsito em julgado da sentença.
Quer isto dizer que no recurso de revisão e no recurso jurisdicional interposto do despacho de indeferimento liminar da respectiva petição, se debatem duas questões:
- Se o recorrente apresentou no recurso de revisão documento de que não tivesse conhecimento ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que a decisão foi proferida;
- Se esse documento é suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente no recurso de revisão, parte vencida na acção.
4. Impedimento de juiz
Estabelece o artigo 311.º do Código de Processo Civil:
Artigo 311.º
(Casos de impedimento do juiz)
1. O juiz está impedido de exercer as suas funções quando:
a) …
b) …
c) …
d) …
e) Se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz, quer proferindo a decisão recorrida quer tomando de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso;
f) …
g) …
h) …
2. …
Sobre o fundamento da inibição do juiz em recurso de decisão que tenha proferido, explica ALBERTO DOS REIS3:
“Qual é o fundamento desta inibição?
Dizem alguns: é a consideração de que o amor próprio exerce sobre o espírito a mesma influência nefasta que o afecto, o ódio, o interesse. A parte arriscar-se-ia a perder injustamente a demanda só porque o juiz, não podendo vencer o seu amor próprio, persistiria no erro já cometido (Ricci, Commento al. Codice di procedura civil, vol. 1.º, pág. 256).
…
É que, mesmo quando o juiz é pouco acessível ao sentimento doentio de amor próprio excessivo, não convém que o segundo exame da causa seja obra do mesmo magistrado. Se não se corre o risco de o juiz manter a decisão anterior por influência de amor próprio, corre-se o risco de a manter em consequência da prevenção que a opinião anterior naturalmente constitui.
Por outras palavras, se o amor próprio representa um exagero de personalidade e portanto uma manifestação anormal, a predisposição para reproduzir um juízo já emitido constitui uma tendência perfeitamente normal e com que se deve contar.
Por outro lado, submeter o julgamento do recurso ao próprio magistrado que proferiu a decisão recorrida é eliminar praticamente o segundo grau de jurisdição, ou pelo menos enfraquecê-lo sensívelmente”.
Pois bem, o Dr. C participou no processo onde foi interposto o recurso de revisão, mas não proferiu a decisão recorrida, que é o despacho de 4 de Março de 2016.
Por outro lado, também não tomou posição sobre as questões suscitadas no presente recurso jurisdicional, que são, como se disse:
- Se o recorrente apresentou no recurso de revisão documento de que não tivesse conhecimento ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que a decisão foi proferida;
- Se esse documento é suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente no recurso de revisão, parte vencida na acção.
Ou seja, na sentença de 1.ª Instância, proferida pelo Dr. C, que se pretende revogar, não se discutiu se o documento novo – que não existia no processo quando foi proferida a sentença - prova que o acordo de alteração do regime de bens do casamento foi celebrado por escritura pública e, por conseguinte, também não se discutiu, pela própria natureza das coisas, se o mesmo é suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente no recurso de revisão, parte vencida na acção.
Logo, não há impedimento a que o Dr. C intervenha no recurso jurisdicional do despacho de 4 de Março de 2016.
Finalmente, ao contrário do que alega o recorrente, no recurso de revisão não se vai discutir se o acordo de bens do casal tem efeito retroactivo.
Essa questão de direito, por interpretação dos artigos 1578.º, n.º 2, 50.º, n.º 1 e 52.º, n.º 1, do Código Civil de Macau, ficou decidida com o trânsito em julgado da sentença e não é um documento novo – que se destina a provar factos - que a vai modificar, como é óbvio.
IV – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Macau, 24 de Abril de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1 Artigo 17.º da Lei do Casamento da República Popular da China
Os seguintes bens adquiridos pelos cônjuges na constância do casamento são considerados bens comuns do casal:
(1) Salários, prémios;
(2) Receita proveniente da produção e da exploração;
(3) Receita proveniente da propriedade intelectual;
(4) Bens doados ou sucedidos por herança, salvo os casos previstos no artigo 18.º n.º 3 da presente Lei;
(5) Outros bens que devem ser considerados como bens comuns.
Ambos os cônjuges têm direito igual aos bens comuns do casal.
2 Código de Processo Civil de Macau: Anotado e Comentado, Vol. II, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2008, página 257.
3 ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 1.º, p. 399 e 400.
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