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Processo n.º 32/2019. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A
Recorrido: B.
Assunto: Contradição da matéria de facto a que se refere o n.º 4 do artigo 629.º do Código de Processo Civil. Prova dos factos compreendidos na declaração. Confissão. Litisconsórcio voluntário. Ampliação do recurso a requerimento do recorrido no recurso para o TUI, relativamente a fundamento em que decaiu no recurso para o TSI. Artigo 590.º do Código de Processo Civil.
Data do Acórdão: 24 de Abril de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
   I – A contradição a que se refere o n.º 4 do artigo 629.º do Código de Processo Civil refere-se à decisão sobre a matéria de facto. Se os factos provados apontam para uma solução jurídica diferente da gizada na sentença, não há que anular a decisão de facto, mas alterar a sentença quanto ao mérito.
   II – Tendo, as 1.ª e 2.ª rés aceitado na contestação que emitiram um documento que lhes é desfavorável, mas estando em causa um litisconsórcio, mesmo que apenas voluntário, a confissão das 1.ª e 2.ª rés não releva relativamente à 3.ª ré, nos termos do n.º 2 do artigo 346.º do Código Civil, pelo que não se podem considerar provados os factos compreendidos na declaração, com fundamento no disposto no n.º 2 do artigo 370.º do Código Civil.
   III – O disposto no artigo 590.º do Código de Processo Civil aplica-se aos fundamentos do recurso para o TSI, por analogia.
   
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
B intentou acção declarativa com processo comum ordinário contra C, D e A, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de MOP$18,388,899.00 e juros de mora vencidos e vincendos.
Por sentença do Ex.mo Presidente do Tribunal Colectivo, foi a acção julgada improcedente, por falta de prova dos factos que constituíam fundamento da acção.
Recorreu o autor para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) que, por Acórdão de 13 de Setembro de 2018 anulou oficiosamente a sentença, “por padecer do vício de contradição”, tendo invocado o disposto no n.º 4 do artigo 629.º do Código de Processo Civil.
Tal contradição assentaria no seguinte:
1.º aspecto - Aceitando-se a veracidade dos docs. de fls. 86 a 93, que demonstram que o recorrente chegou a depositar e levantar fichas juntos das 1.ª e 2.ª rés, então não se percebe a razão da decisão final, que julgou totalmente improcedente o pedido: eis uma contradição entre a decisão e as provas e os factos considerados assentes pelo tribunal a quo.
2.º aspecto - Na resposta ao quesito 8.º, diz o tribunal que as testemunhas ouvidas não chegaram a precisar os pontos perguntados. Mas o tribunal deveria valorar o depoimento da testemunha com os documentos juntos aos autos, nos termos do n.º 2 do artigo 370.º do Código Civil.
Nas respostas aos quesitos 25.º a 27.º, o teor dos docs., de fls. 113 e 114 demonstra que o autor efectuou vários depósitos, o mesmo se diga da resposta ao quesito 18.º: o tribunal deveria analisar prudentemente o teor de fls. 117.
Nas respostas aos quesitos 38.º, 39.º e 42.º justifica-se lançar mão do disposto no artigo 477.º do Código de Processo Civil.
Se perante o quadro fáctico e jurídico descrito pelo tribunal a quo a tese do autor ficou provada (depósitos e saldos na conta do autor), o que resta é a versão contada pelo autor. Mas não foi nesse sentido a sentença, eis uma contradição insanável.
Recorre, agora, a ré A, para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:

Na sua alegação, requereu o autor a ampliação do recurso, tendo invocado o disposto no artigo 590.º do Código de Processo Civil.
- O Tribunal a quo errou ao aplicar o artigo 370.º n.º 2 do CC aos factos compreendidos nos documentos de fls. 113 e 114 dos autos, sem considerar devidamente as limitações que o dispositivo previsto no artigo 346.º n.º 2 do CC impõem à capacidade confessória das partes, em particular da 1.ª e 2.ª Rés.
- É a dinâmica resultante do litisconsórcio que limita a capacidade confessória da 2.ª Ré e a legitimidade da confissão constante dos documentos de fls. 113 e 114 dos autos conforme o disposto no artigo 346.º n.º 2 do CC que retira a eficácia da confissão feita no âmbito do litisconsórcio necessário, ao passo que no âmbito do litisconsórcio voluntário limita os efeitos dessa confissão aos interesses do litisconsorte confitente.
- Mesmo que se considere que a relação das partes passivas da presente demanda seja apenas adjectivável nos moldes de um litisconsórcio voluntário, a confissão pelo litisconsorte - 2.ª Ré - através dos documentos constantes de fls. 113 e 114, não obstante eficaz, vê os seus efeitos restringidos ao seu interesse.
- A prova plena do documento particular quanto aos factos compreendidos nas declarações atribuídas ao seu autor, na medida em que sejam contrárias aos interesses do declarante, restringe-se ao âmbito das relações entre o declarante e o declaratário, ou seja, quando invocadas por este contra aquele. Deste modo, os factos contidos no documento particular hão-se considerar-se provados na medida em que, como declaração confessória, possam ser invocados pelo declaratário contra o declarante. Relativamente a terceiros - os não sujeitos da relação jurídica a que respeitam as declarações documentadas, in casu a Recorrente 3.ª Ré - a eficácia probatória plena terá de ceder para ficar a valer apenas como elemento de prova a apreciar livremente.
  - Em suma, não sendo aplicável à prova documental constante dos autos a disposição prevista no artigo 370.º n.º 2 do CC que consagraria força probatória plena aos factos compreendidos em tal prova, e sendo, por consequência, tal prova livremente apreciável pelo Tribunal de julgamento, não se vislumbra qualquer contradição entre a decisão e as provas e os factos considerados assentes pelo Tribunal Judicial de Base, inexistindo, por essa razão, o erro de julgamento de facto que sustenta a decisão recorrida, não devendo por essa razão ser a decisão alcançada pelo Tribunal Judicial de Base ser anulada.

II – Os factos
O Tribunal de 1.ª Instância considerou provados os seguintes factos:
A)
  O Autor reside na República Popular da China e, pelo menos, durante o ano de 2012 visitou Macau, diversas vezes, para frequentar os casinos que operam no Território.
B)
  As 1.a e 2.a Rés são sociedades comerciais constituídas e registadas em Macau, cujo objecto social é a promoção de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, estando, para o efeito, devidamente licenciadas pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 18 a 38 e 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
C)
  A 3.a Ré é uma sociedade comercial constituída e registada em Macau, cujo objecto social é, entre outros, instalar, operar e gerir jogos de fortuna ou azar e outros jogos em casino, sendo subconcessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar em casinos em Macau, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 39 a 52 e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
D)
  No âmbito da sua actividade comercial a 3a R. opera o Casino E instalado no Hotel sito em Macau, na Estrada da Baia de Nossa Senhora, S/N, Taipa.
E)
  As 1.a e 2.a Rés celebraram contratos de promoção de jogo com a 3.a Ré e, ao abrigo dos mesmos, exerceram a respectiva actividade nas instalações de casinos operados e explorados por esta, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 53 a 79 e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
F)
  Ao abrigo dos referidos contratos de promoção de jogo, a 1a R. exerceu a sua actividade, pelo menos, durante o período compreendido entre 14 de Fevereiro de 16 de Março de 2012 nos pits n.ºs XXX e XXX, correspondentes às salas "F" e "G", respectivamente, ambas sitas no nível 1 do Casino E.
G)
  Ao passo que a 2a R. exerceu a sua actividade, pelo menos, durante o período compreendido entre 14 de Fevereiro de 16 de Março de 2012 nos pits n.os XXX e XXX, correspondentes às salas "H" e "I", respectivamente, ambas sitas no nível 1 do casino E.
H)
  O Autor frequentou o Casino E, pelo menos, nos dias compreendidos entre 25 de Fevereiro e 2 de Março de 2012.
I)
  No casino A, o Autor era cliente da sala de jogo VIP D sita no E Club.
J)
  A 2.a Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 29.11.2012, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD 17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 86 a 93 e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
L)
  A 3.a Ré recebeu em 25 de Março de 2012, uma missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 ao abrigo do disposto no artigo 29° (sic) do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 94 a 96 e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
M)
  A 1.a Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 13.06.2013, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 154 a 161 e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
N)
  Posteriormente, a 3.a Ré recebeu nova missiva do A. solicitando o reembolso do montante de HKD17.853.300,00 em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 162 a 165 e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
O)
  Foi instaurado no Tribunal Judicial de Base um processo crime que correu termos sob o n.° CR2-10-0196-PCC, em que foi entidade acusadora o Ministério Público, em que foram Arguidos J e K, e no qual a 1a e 2a RR. se constituíram Assistentes e onde figura como ofendido o A., em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 112 a 153 e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
  10.º
  
A 3.ª ré tinha contratado as 1.ª e 2.ª rés para promover jogos de fortuna ou azar nos seus casinos.


III – O Direito

1. Questões a apreciar
Há que conhecer das questões suscitadas pela recorrente.


2. Contradição na decisão de facto
No recurso para o TSI, o autor recorreu, além do mais, da decisão sobre a matéria de facto. Não interessa agora se o fez devidamente, isto é, se obedecendo ao disposto no disposto no artigo 599.º do Código de Processo Civil.
O acórdão recorrido, oficiosamente, anulou a sentença, dizendo haver contradições, tendo invocado o disposto no n.º 4 do artigo 629.º do Código de Processo Civil. Ora, a contradição a que se refere esta norma, refere-se à decisão sobre a matéria de facto, mas o acórdão recorrido fundamentou-se em contradição entre a decisão final e as provas e os factos considerados assentes pelo tribunal a quo. Na tese do acórdão recorrido, aceitando-se a veracidade dos docs. de fls. 86 a 93, que demonstram que o recorrente chegou a depositar e levantar fichas juntos das 1.ª e 2.ª rés, então não se percebe a razão da decisão final, que julgou totalmente improcedente o pedido: eis uma contradição entre a decisão e as provas e os factos considerados assentes pelo tribunal a quo, diz o acórdão recorrido.
Quer dizer, o acórdão recorrido considerou provados certos factos (que a sentença de 1.ª instância considerou não provados) e diz não se perceber a decisão final que julgou improcedente o pedido. Ora, a ser assim, o que deveria ter feito era ter alterado a decisão final. Não havia qualquer contradição na decisão de facto, nem se tratava da nulidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil, aliás não invocada pelo acórdão recorrido.
Por outro lado, considerou o acórdão recorrido:
Se perante o quadro fáctico e jurídico descrito pelo tribunal a quo a tese do autor ficou provada (depósitos e saldos na conta do autor), o que resta é a versão contada pelo autor. Mas não foi nesse sentido a sentença, eis uma contradição insanável.
Também aqui não existe nenhuma contradição. Se a tese do autor ficou provada (quadro fáctico e jurídico), então deveria o acórdão recorrido revogar a sentença e julgar a acção procedente.
Prossigamos.
  Na tese do acórdão recorrido, face ao facto da alínea J) da matéria assente (A 2.a Ré recebeu uma missiva do Autor, datada de 29.11.2012, tendo em vista o reembolso da quantia de HKD 17.853.300,00, em conformidade com o teor dos documentos juntos a fls. 86 a 93 e aqui se dão por integralmente reproduzidos), está provado o montante reclamado pelo autor, uma vez que as 1.ª e 2.ª rés não chegaram a impugnar estes factos nem impugnaram a veracidade dos documentos em causa, face ao disposto no n.º 2 do artigo 370.º do Código Civil.
  Ora, dispõe o artigo 370.º do Código Civil:
Artigo 370.º
(Força probatória)
 1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
 2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
 3. Se o documento contiver notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras, emendas ou outros vícios externos, sem a devida ressalva, cabe ao julgador fixar livremente a medida em que esses vícios excluem ou reduzem a força probatória do documento.
 
Ensina MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA1 que os factos desfavoráveis compreendidos na declaração consideram-se plenamente provados “se a declaração for dirigida à parte contrária ou a quem a represente; não perante terceiros”.
Ora, como é evidente, estando em causa um litisconsórcio, mesmo que apenas voluntário, a confissão (admissão dos factos nos articulados) das 1.ª e 2.ª rés não releva relativamente à 3.ª ré, nos termos do n.º 2 do artigo 346.º do Código Civil (a confissão feita pelo litisconsorte é eficaz, se o litisconsórcio for voluntário, embora o seu efeito se restrinja ao interesse do confitente; mas não o é, se o litisconsórcio for necessário), pelo que o acórdão recorrido não poderia ter considerados provados os factos em causa com fundamento no disposto no n.º 2 do artigo 370.º do Código Civil.
Da mesma forma, a confissão ficta, por falta de contestação não releva quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestamte impugnar [alínea a) do artigo 406.º do Código de Processo Civil], independentemente de ser litisconsórcio voluntário ou necessário2 e a falta de impugnação de factos na contestação também não releva se não for admissível confissão sobre eles (n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Civil), como era o caso, tratando-se de litisconsórcio, nos termos já vistos.
Procede o recurso.

3. Ampliação do recurso a requerimento do autor, ora recorrido
Dispõe o artigo 590.º do Código de Processo Civil:

Artigo 590.º
(Ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido)
 1. Se forem vários os fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
 2. Pode ainda o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnada pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.
 3. Na falta dos elementos de facto indispensáveis à apreciação da questão suscitada, pode o tribunal de recurso mandar baixar os autos, a fim de se proceder ao julgamento no tribunal onde a decisão foi proferida.

Não é de todo evidente a pretensão do autor, ora recorrido.
Se o ora recorrido quer impugnar a decisão da 1.ª instância (se forem vários os fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu), é evidente que a pretensão está votada ao insucesso, dado que esta deveria ter sido suscitada no recurso para o TSI.
Se o ora recorrido entende que a norma se aplica aos fundamentos do recurso para o TSI, por analogia, o que está certo3, a pretensão também soçobra, na medida em que o acórdão recorrido não julgou nenhum fundamento de recurso improcedente, pelo que o vencedor não decaiu em nada, pressuposto de aplicação do n.º 1 do artigo 590.º do Código de Processo Civil. Não chegou a conhecer do mesmo por ter anulado a decisão oficiosamente.
Improcede a ampliação do âmbito do recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido:
A) Concede-se provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido, devendo este conhecer do mérito do recurso, se nada obstar a tal;
B) Indefere-se a ampliação do âmbito do recurso, requerida pelo ora recorrido.
Custas pelo ora recorrido.
Macau, 24 de Abril de 2019.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
  
     1 MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 858 e 859.
2 RITA BARBOSA DA CRUZ, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 830.

     3 Cfr. o acórdão do TUI, de 11 de Novembro de 2008, no Processo n.º 36/2008 e VIRIATO LIMA, Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, Macau, 2018, 3.ª ed., p. 716.
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