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Processo n.º 109/2014. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: C.
Recorrido: D.
Assunto: Enriquecimento sem causa. Causa justificativa.
Data do Acórdão: 30 de Abril de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
Se a prestação do autor, com vista à tomada de quota em sociedade a constituir, inserida num contrato, não foi correspondida pelo réu, tinha causa justificativa, pelo que não existe enriquecimento sem causa, sem prejuízo de poder ter havido incumprimento contratual.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
C intentou acção declarativa com processo comum ordinário contra D, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de MOP$1.000.000,00 e juros, a título de enriquecimento sem causa.
Por sentença do Ex.mo Presidente do Tribunal Colectivo, foi a acção julgada procedente, tendo declarado resolvido o contrato celebrado entre autor e réu e condenou este a restituir ao autor a quantia de MOP$1.000.000.
Recorreu o réu D para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) que, por Acórdão de 20 de Março de 2014:
- Declarou nula a sentença, por violação do disposto nos artigos 571.º, n.º 1, alínea d), 563.º, n.º 3 e 564.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, com fundamento em esta ter declarado resolvido o contrato, quando os factos alegados na petição inicial apontavam para o enriquecimento sem causa e por ter ido além do que podia;
- E conhecendo do objecto do mérito do recurso, nos termos do n.º 1 do artigo 630.º do Código de Processo Civil, concluiu não proceder a acção com fundamento no enriquecimento sem causa e absolveu o réu do pedido.
Recorre, agora, o autor C para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- Deveria ter sido confirmada a sentença de 1.ª Instância, já que utilizou os factos articulados pelo autor para declarar resolvido o contrato;
- Mesmo que se entendesse que não existiam factos para condenar o réu com fundamento no incumprimento contratual e declarar resolvido o contrato, deveria o acórdão recorrido tê-lo condenado com fundamento no enriquecimento sem causa.

II – Os factos
O Tribunal de 1.ª Instância considerou provados os seguintes factos:
- O A. trabalhou, desde 12 de Julho de 1983 e até meados de 1992, na sociedade comercial denominado “E” exercendo as funções de secretário, na secção de vendas. (A)
- Desde 1992 e até hoje, o A. passou a trabalhar na F. (B)
- Desde a altura em que iniciou funções nessas sociedades e até meados de 2009, o A. trabalhou sob as ordens e direcção do R., que foi até meados de 2009 o sócio maioritário destas empresas. (C)
- Em 31 de Agosto de 2002, o A efectuou o primeiro pagamento da referida quota entregando, para tal ao R, o montante de HK$360.000,00 (D)
- Em 2 de Abril de 2003, o A entregou ao R HK$640.000,00. (E)
- Em data não apurada de 2002, o R falou com o A e alguns colegas de trabalho deste propondo-lhe a compra de quotas duma das variadas sociedades de que este alegava ser sócio maioritário. (1º)
- O R explicou ao A que os negócios relativos ao comércio de mercadorias no Delta do rio das Pérolas estavam a correr muito bem e com um crescimento muito rápido, pelo que era uma excelente ideia investir nas sociedades comerciais que operavam neste tipo de actividade. (2º)
- O R informou o A que era sócio de várias sociedades comerciais de responsabilidade limitada e, uma vez que o A já era seu funcionário há vários anos, lhe tencionava vender parte das quotas de uma dessas sociedades por um preço muito vantajoso aceitando, inclusive, caso ele não tivesse a totalidade do capital imediatamente disponível, que o pagamento do preço fosse efectuado em prestações. (3º)
- Foi dito pelo R ao A que a ideia seria cada um dos seus funcionários optar pela compra de quotas duma das variadas sociedades comerciais de que o R alegava ser sócio maioritário, e mais tarde, após a cessão de quotas ser formalizada, constituir-se-ia uma empresa “holding” denominada por “G” para controlar todas estas sociedades comerciais. (4º, 21 º e 22º)
No caso do A, o R propôs que ele compraria um quota das sociedades comerciais de que o R era sócio, correspondente a 3% do valor do capital da alegada empresa holding “G”, tendo o A aceite comprar pelo preço de HK$1.705.995,75 (5º e 6º)
- Uma vez que o A. trabalhava para o R e nele depositava a sua total confiança nunca suspeitou que nessa oferta pudesse haver qualquer irregularidade. (7º)
- Após a conversa tida com o A, o R teve outras reuniões com outros trabalhadores da mesma empresa, subordinados do R, para os convencer a participar no mesmo negócio, ou seja, comprar parte das quotas das empresas dele. (9º)
- Em virtude da relação existente de patrão-empregado, o A nunca se apercebeu de que algo estava errado, embora considerasse estranho nunca ser marcada a data para formalizar a cessão de quotas, bem como a constituição da empresa “holding”. (10º)
- O R. nunca entregou ao A. quaisquer lucros, embora sempre dissesse a todos os “compradores” que estava a ter muitos lucros e que os negócios iam muito bem. (11º)
- A partir do início do ano de 2009 quando começou a saber que o R pretendia vender a sua quota na sociedade comerical F, local onde o A. trabalhava este começou a insistir com o R para que se formalizasse a cessão de quotas prometida e a constituição da sociedade comercial “G” (12º)
- Durante muitos meses o R respondeu ao A que estava à espera que todos terminassem os seus pagamentos para formalizar, apenas de uma vez, todos os documentos. (13º)
- O A. convencido da veracidade dos argumentos apresentados pelo R e ainda pelo facto de continuar a trabalhar para este aceitou esperar mais um tempo. (14º)
- Em Dezembro de 2010, depois de ter contactado com os seus colegas que também estavam a pagar em prestações as quotas das “empresas” do R. descobriu que alguns deles já tinham terminado os seus pagamentos ou até desistido destes e se encontravam também à espera que o R. formalizasse a cessão de quotas. (15º e 27º)
- O A. e os restantes colegas que tinham aceite comprar as quotas das “empresas” do R. começaram a descobrir de que algo estava errado. (16º)
- A sociedade comerical “G” nunca existiu. (17º)
- O A. e os seus colegas entraram em contacto com o R. para que este lhes devolvesse o dinheiro por eles entregue. (18º)
- O R. ainda tentou insistir com o A. a esperar mais tempo mas não foi aceite pelo último, tendo o R. deixado até de responder aos telefonemas do A. e a todas as tentativas que este fez para o contactar e mantém na sua posse o dinheiro do A. (19º)
- Até à presente data, o autor ainda não pagou o remanescente no valor de HK$1.705.996,00. (20º).



III – O Direito

1. Questões a apreciar
Há que conhecer das questões suscitadas pelo recorrente.


2. Nulidade da sentença
O autor fundamentou a acção no enriquecimento sem causa, apenas. Nunca invocou qualquer incumprimento contratual que fosse causa de resolução de contrato e, por isso, nunca declarou resolvido o contrato, por declaração dirigida à outra parte e, assim, não pediu ao Tribunal que considerasse ter o contrato sido resolvido.
Salvo naqueles casos em que a lei impõe que seja o tribunal a decretar a resolução do contrato, como é, por exemplo, o caso da resolução do contrato de locação fundada na falta de cumprimento por parte do locatário (artigo 1017.º, n.º 2, do Código Civil), a resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte (artigo 430.º, n.º 1, do Código Civil), podendo fazer-se judicialmente se houver conflito entre as partes1.
A resolução opera-se por meio de declaração unilateral, receptícia do credor.2
Ora, o autor nunca declarou resolvido o contrato e também nunca pediu ao tribunal que declarasse resolvido o contrato, pelo que a sentença praticou, igualmente, a nulidade prevista nos artigos 564.º, n.º 1 (condenação em objecto diverso do que foi pedido), norma invocada pelo acórdão recorrido, e 571.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil, já que os factos alegados pelo autor não permitiam tal convolação oficiosa.
Concluindo, a sentença de 1.ª instância incorreu na nulidade, por condenação em objecto diverso do que foi pedido e por excesso de pronúncia.

3. Enriquecimento sem causa
O enriquecimento sem causa é uma fonte de obrigações, impondo a restituição daquilo com que alguém se locupletou, sem haver causa para tal. É isso que dispõe o artigo 467.º do Código Civil, inserido na Secção IV, epigrafada Enriquecimento sem causa, do Capítulo II (Fontes das obrigações) do Título respeitante às Obrigações em geral:
Artigo 467.º
(Princípio geral)
 1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
 2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.

A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos3:
- Um enriquecimento, ou seja, a obtenção de uma vantagem patrimonial;
- A falta de causa justificativa do enriquecimento, ou porque a nunca tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, deixou entretanto de a ter;
- Que o enriquecimento tenha sido obtido à custa daquele que pretende a restituição.
No caso dos autos não se põe em dúvida o enriquecimento do réu, à custa do empobrecimento do autor.
Resta saber se este enriquecimento carece de causa justificativa.
Como ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA4:
“A causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe serve de fonte.
Assim, sempre que o enriquecimento provenha de uma prestação, a sua causa é a relação jurídica que a prestação visa satisfazer. Se, por exemplo, A entrega a B certa quantia para cumprimento de uma obrigação e esta não existe - ou porque nunca foi constituída, ou porque já se extinguiu ou porque é inválido o negócio jurídico em que assenta - deve entender-se que a prestação carece de causa.
Em termos análogos, se o devedor paga ao cedente, depois de efectuada a cessão, mas antes de aquele a conhecer (cfr. o art. 583.°), ou se o devedor paga ao credor, depois de o fiador o haver feito, mas sem avisar o devedor (cfr. o art. 645.°), deve entender-se que a prestação origina um enriquecimento sem causa justificativa, porque a relação jurídica que ela visava extinguir já não existia na titularidade do accipiens, uma vez que a cessão e o pagamento feito pelo fiador produzem imediatamente os seus efeitos nas relações entre cedente e cessionário, por um lado, e entre credor e fiador, por outro”.
Se a narrativa descrita na petição inicial correspondesse à realidade, parece que haveria falta de causa justificativa para o enriquecimento do réu, já que o autor alegava que lhe foi prometido uma quota de 3% numa sociedade alegadamente existente, mas que não existia efectivamente.
Mas, como refere o acórdão recorrido, não foi isso que aconteceu, “O que se provou foi que os pagamentos parcelares feitos pelo autor se destinavam, não a pagar o valor de uma cessão de quota daquela sociedade (que, efectivamente, não existia), mas pagar uma quota do capital de uma das várias sociedades comerciais de que o R. alegava ser sócio maioritário, montante que iria corresponder a 3% do valor do capital de uma futura empresas a criar, uma “holding” que controlaria todas aquelas de que o Réu era sócio juntamente com os pretensos adquirentes sociais (incluindo o autor), e que se designaria “G”.
Ou seja, o que poderá ter havido é incumprimento do réu, mas daqui não resulta que a prestação do autor não tivesse causa justificativa. Poderá ter havido incumprimento contratual, mas não enriquecimento sem causa.
Ora, como não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, nos termos do artigo 468.º do Código Civil, havendo incumprimento, deveria o autor ter-se socorrido dos meios legais postos à disposição do credor para lograr ser ressarcido.
Assim, atenta a natureza subsidiária da obrigação por enriquecimento sem causa, teria sido prudente alegar este instituto em juízo como causa de pedir e pedido subsidiários.
Improcedem, pois, o recurso e a acção.

IV – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
Macau, 30 de Abril de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
  
     1 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 4.ª edição, 1987, vol. I, p. 412.
     2 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Almedina, Coimbra, 7.ª edição, Vol. II, p. 108.

     3 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código…, Vol. I, p. 454 a 457.
     4 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código…, Vol. I, p. 455.

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