Processo n.º 50/2016. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrida: B.
Assunto: Procedimentos cautelares. Princípio da proporcionalidade.
Data do Acórdão: 22 de Maio de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
No âmbito dos procedimentos cautelares o juiz deve observar sempre o princípio da proporcionalidade entre as medidas a adoptar e os interesses que se visam acautelar, que o Código de Processo Civil consagra no n.º 1 do artigo 326.º, ao mencionar a providência concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado e no n.º 2 do artigo 332.º, quando estatui que a providência pode, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A instaurou procedimento cautelar não especificado contra C, D e B.
Por sentença do Ex.mo Juiz do Tribunal Judicial de Base (TJB), foi decretada a seguinte providência:
(i) as requeridas de, por qualquer forma prometerem alienar ou onerar, alienarem ou onerarem, a qualquer título, património da 3ª Requerida, nomeadamente os imóveis indicados na al. L) dos Factos Provados e o de deliberarem a promessa de venda e de oneração e/ou a venda e oneração de bens que integram as quotas resultantes da divisão e cessão da quota anteriormente detida pelo marido da Requerente na 3ª Requerida;
(ii) as requeridas de deliberarem a distribuição de lucros da 3ª Requerida, nomeadamente resultantes dos proveitos auferidos em resultado do arrendamento dos referidos imóveis;
(iii) as requeridas de, por si, ou através dos gerentes/administradores da 3ª Requerida, de quaisquer representantes legais, mandatários, etc., movimentarem contas bancárias desta, com excepção do que seja estritamente necessário para a gestão corrente desta.
(iv) as 1ª e 2ª requeridas de prometerem ceder e/ou onerar e de cederem e/ou onerarem as quotas que actualmente detêm na 3ª Requerida.
A 3.ª requerida B deduziu oposição.
Realizada audiência foi proferida decisão mantendo as providências decretadas.
Recorreu 3.ª requerida B para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), que concedeu parcial provimento ao recurso e:
- Levantou as proibições impostas nas alíneas I, II e II da sentença e absolveu do pedido a 3.ª requerida;
- Converteu as proibições impostas na alínea IV da sentença no arrolamento da quota social que E detinha na 3.ª requerida, alienada às 1.ª e 2.ª requeridas.
Recorre, agora, a requerente A para este Tribunal de Última Instância (TUI), defendendo que:
- O que está em causa é a anulação de um negócio de cessão de uma quota equivalente a 99% do capital social da Recorrida e as medidas cautelares destinadas a assegurar a eficácia do direito da Recorrente em obter essa anulação.
- E isso é assim uma vez que, a consequência da anulação do negócio de cessão da quota (e recorde-se que tanto a primeira instância, como o TSI reconheceram como indiciariamente demonstrados os requisitos de que a mesma depende) consiste, por força do disposto, no n.º 1 do artigo 282.º do Código Civil (CC), na obrigação de restituição das partes à situação anterior ao negócio.
- Isto significa, nomeadamente, por um lado que as actuais sócias da Recorrida, a 1.ª e 2.ª Requeridas, perderiam essa qualidade e também que a participação social em apreço teria de ser reposta na mesma situação em que se encontravam aquando da celebração do negócio anulado.
- É esta a consequência de tal regime do qual resulta muito linearmente que quaisquer actos ou negócios praticados à sombra de um negócio anulado são também eles inválidos.
- Reconhecendo-se (como o fizeram as decisões proferidas em primeira instância e no TSI) o direito potestativo da Recorrente à anulação do negócio de cessão de quota efectuado pelo seu marido e tendo esta anulação como consequência a cessação retroactiva de todos os efeitos jurídicos do negócio (ineficácia em sentido amplo), com o retorno à situação jurídica e de facto que existiria se não fosse a sua celebração, e assente que está o periculum in mora, a decisão do TSI é contraditória pois o que, na prática, acaba por fazer é, embora reconhecendo o direito da Recorrente à anulação, revogar as medidas cautelares que se destinavam precisamente a assegurar a consistência desse direito, impossibilitando que a situação de facto que existia antes da transmissão inválida possa manter-se inalterada, até decisão final.
- Assim, no confronto entre o direito da Recorrida em realizar o seu objecto e o direito da Recorrente, este tem de prevalecer em face da necessidade de se assegurar que a situação de facto existente anteriormente à realização do negócio anulado não seja alterada, de modo a que a quota objecto da cessão inválida mantenha intactos todos os direitos patrimoniais à mesma inerentes à data dessa cessão.
- Aqui está em causa uma participação social equivalente a 99% do capital social da Recorrida que, por força do regime de bens da Recorrente com o seu marido (alienante de tal quota), também lhe pertence.
- O argumento de que o direito da Recorrida à realização do seu objecto social deve, prevalecer por ela constituir uma entidade distinta, é dificilmente defensável no presente caso.
- Por outro lado, a realização por parte da Recorrida dos actos abrangidos pelas providências cuja restauração se pretende constituiria um verdadeiro abuso do direito.
- E também no instituto da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva.
- Por último, há que salientar que se, por um lado, a não extensão das medidas cautelares à Recorrida é de molde a causar graves prejuízos ao direito da Recorrente e que acima já se demonstraram, o contrário está por demonstrar.
- A Recorrida não logrou provar quaisquer prejuízos concretos e líquidos que a providência cautelar em apreço lhe pudesse vir a causar, nem sequer que tais prejuízos resultam do facto de a Recorrida ficar alegadamente impedida de exercer a sua actividade social.
- Com efeito, os bens imóveis da Recorrida identificados nos autos, único património que foi possível identificar na sua titularidade, está nesta situação há mais de 27 anos!
II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
A. A requerente é casada com E, tendo ambos contraído matrimónio em 09 de Março de 1979, na cidade de Foshan, na província de Cantão do Interior da China.
B. No âmbito do referido casamento, a requerente e E não celebraram qualquer convenção ante ou pós-nupcial destinada a fixar o regime de bens do casal, nem efectuaram posteriormente o registo em Macau.
C. Em 06 de Maio de 2015, a requerente instaurou contra E um procedimento cautelar de arrolamento, nos termos do art. 368º n.º 1º do Código Do Processo Civil, destinado a arrolar bens comuns sob a administração deste, tendo já intentado a acção de divórcio (de que o arrolamento constitui um apenso) a qual corre termos pelo Juízo de Família e Menores sob o n.º de processo FM1-15-0105-CDL.
D. No âmbito do decretamento do aludido arrolamento, a requerente tomou conhecimento do facto de E ter cedido a sua quota, com o valor nominal de MOP$99.000,00, correspondente a 99% do capital social, que este detinha na 3ª requerida.
E. Por acordo de 27 de Março de 2015, E declarou proceder à divisão da sua quota na 3ª requerida em duas quotas distintas, com os valores nominais de MOP$79.000,00 e MOP$20.000,00 que o mesmo declarou ceder a favor da 1ª e 2ª requeridas respectivamente, tendo sido efectuado o registo dessa aquisição junto da Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis através das apresentações n.ºs XX.XX/XXXXXXXX e XX.XX/XXXXXXXX.
F. Por já não se encontrar na titularidade do E, o Tribunal indeferiu o arrolamento sobre a quota deste na 3ª requerida nos termos que constam do despacho de fls. 292 proferido no âmbito dos aludidos autos de arrolamento.
G. A 3ª requerida foi constituída por F e G, com um capital de MOP$100.000,00, através de escritura pública exarada em Macau em 13 de Novembro de 1980, a fls. 98 do livroB-XXX do lº Cartório Notarial de Macau.
H. E adquiriu a quota que detinha na 3ª requerida através de sucessivos negócios de divisão e cessão de quotas titulado por escrituras de 11 de Maio de 1993, 24 de Setembro de 1993 e 06 de Maio de 1994, exaradas repetitivamente a fls. 146 do livro X, fls. 49 do livro XX e fls. 107 do livro XX todas do cartório do notário privado H.
I. A divisão e a cessão da quota que E detinha na 3º requerida favor das 1ª e 2ª requeridas foi efectuada sem o consentimento e sem o conhecimento da requerente.
J. A requerente não teve qualquer intervenção no contrato de divisão e cessão da quota, nem dele teve conhecimento.
K. A requerente nunca deu o seu consentimento à referida divisão e cessão da quota quer antes, quer depois da celebração do respectivo acorda.
L. Pertencem à 3ª requerida as seguintes fracções autónomas: BR/C, CR/C, DR/C, ER/C, FR/C, GR/C, HR/C, IR/C, JR/C, KR/C, LR/C, MR/C, NR/C, OR/C, PR/C, QR/C, RR/C, SR/C, TR/C, e ainda 7/51 avos da fracção com a designação AR/C para estacionamento automóvel, todas situadas no rés-do-chão do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º XXXXX.
M. O valor matricial das referidas fracções perfaz um total de MOP$19.885.820,00.
N. A 1ª e 2ª requeridas são sociedades constituídas e com sede numa jurisdição estrangeira.
O. À data do seu casamento a requerente e E tinham nacionalidade chinesa.
P. Foram colocados à venda ou para arrendamento no mercado imobiliário os imóveis acima referidos, registados em nome da 3ª requerida.
III – O Direito
1. As questões a resolver
As questões a resolver são as suscitadas pela recorrente.
2. As proibições impostas à 3.ª requerida pelo TJB
No procedimento cautelar dos autos estão em causa algumas sequelas do litígio patrimonial entre duas pessoas unidas pelo casamento, em processo de divórcio.
A requerente instaurou contra o marido procedimento cautelar de arrolamento, destinado a arrolar bens comuns sob a administração deste.
No âmbito do decretamento do aludido arrolamento, a requerente tomou conhecimento do facto de o marido ter procedido à divisão da sua quota na 3ª requerida em duas quotas distintas, que o mesmo declarou ceder a favor das 1ª e 2ª requeridas.
Por já não se encontrar na titularidade do E, o Tribunal indeferiu o arrolamento sobre a quota deste na 3ª requerida.
Então, a requerente, alegando ir pedir, na acção principal, a anulação dos negócios de divisão e cessão de quotas, realizados sem a sua autorização, propôs a presente providência, com vista a que fossem paralisados os efeitos destes negócios e a proibição de serem alienados ou onerados os imóveis que são o único activo da 3.ª requerida e, portanto, da quota em questão que corresponde a 99% do capital social.
Tanto a sentença de 1.ª Instância como o acórdão recorrido consideram que se verificavam os pressupostos para a concessão da providência, isto é, a aparência do direito da requerente à anulação da divisão e cessão da quota do casal na 3.ª requerida e o justificado receio da sua lesão no decurso do processo principal.
O acórdão recorrido entendeu, também, que mesmo que as 1.ª e 2.ª requeridas estivessem de boa-fé na aquisição das quotas na 3.ª requerida, era provável o sucesso da acção de anulação dos negócios, face ao disposto no artigo 284.º do Código Civil, o que a 3.ª requerida – única das requeridas que interveio no processo – não contestou.
Não obstante, o acórdão recorrido, negou as proibições que respeitavam à 3.ª requerida, com o argumento de que esta é uma entidade distinta dos sócios, pelo que a requerente não tem legitimidade (substantiva) para proibir a sociedade comercial de praticar actos de disposição e oneração dos bens integrantes do seu património social.
Afigura-se-nos que este argumento não é procedente.
Como alega a requente, ora recorrente:
A consequência da anulação do negócio de cessão da quota consiste, por força do disposto, no n.º 1 do artigo 282.º do Código Civil, na obrigação de restituição das partes à situação anterior ao negócio.
Isto significa que as actuais sócias da Recorrida, a 1.ª e 2.ª Requeridas, perderiam essa qualidade e também que a participação social em apreço teria de ser reposta na mesma situação em que se encontravam aquando da celebração do negócio anulado, já que actos ou negócios praticados à sombra de um negócio anulado são também eles inválidos.
A ser decretada a anulação da cessão de quota a própria nomeação do actual administrador da Recorrida e que é a fonte legal da sua capacidade para praticar os actos e negócios cuja proibição foi revogada pelo TSI seria inválida e ineficaz o que, naturalmente, tornaria inválidos e ineficazes em relação à Recorrente todos os actos por ele praticados.
Os efeitos da anulação só podem ser obviados com a inclusão da 3.ª Recorrida nas medidas cautelares a que as suas sócias (1.ª e 2.ª Requeridas) se encontram sujeitas.
Em contrário, pode argumentar-se não ser justo afectar a possibilidade de uma sociedade, com personalidade distinta dos sócios, como é de sua natureza, poder praticar os normais actos do seu objecto social, ou seja, comprar e vender imóveis.
Mas contra isto pode contrapor-se que não se está perante uma sociedade (a 3.ª requerida) em que o marido ou ex-marido da requerente é um mero sócio. Nesta sociedade, ele detinha uma quota com o valor correspondente a 99% do capital social, havendo outro sócio com uma quota com o valor correspondente a 1% do capital social. Quer isto dizer, que o interesse da 3.ª requerida se confundia com o interesse do marido ou ex-marido da requerente.
Foi esta quota com o valor correspondente a 99% do capital social que o marido ou ex-marido da requerente dividiu em duas e cedeu às 1.ª e 2.ª requeridas, sociedades registadas num paraíso fiscal, pelo que não é possível saber quem as controla efectivamente.
Ora, foi o acórdão recorrido que considerou:
“In casu, foi demonstrado que numa altura em que a ora requerente já intentou a acção de divórcio contra o seu marido E e justamente na véspera da muito provável dissolução do laço matrimonial, E alienou a quota social equivalente a 99% do capital social da sociedade B às 1ª e 2ª requeridas, ambas sociedades constituídas nas Ilhas Virgens Britânicas, cujos sócios se desconhecem através do sistema do registo comercial na RAEM.
Ora, tendo em conta o próprio divórcio litigioso, com a inerente situação de conflito entre os cônjuges, as regras de experiência ensinam que a divisão e a posterior alienação da quota social a favor de terceiros não se ocorreram por mera coincidência temporal, mas sim dessas ocorrências podemos tirar ilação de que muito provavelmente a alienação da quota social às duas sociedades comerciais registadas fora da RAEM em si não é um negócio-fim, mas sim um negócio-meio a fim de alcançar a finalidade de ocultar ou dissipar a quota social em causa”.
Temos de aceitar estas ilações extraídas por Tribunal com poder de cognição da matéria de facto.
Por outro lado, alega a recorrente, sem oposição neste recurso, que não se configura prejuízo para a 3.ª requerida, dado que há 27 anos que não compra nem vende imóveis, mantendo desde essa data os 19 imóveis que lhe pertencem.
Deste modo, podemos concluir que, só com as restrições à actividade da 3.ª requerida, determinadas pelo TJB, será possível garantir que o direito da requerente deixe de ter consistência prática enquanto a acção principal não for decidida, o que está de acordo com o princípio da proporcionalidade entre as medidas a adoptar e os interesses que se visam acautelar no âmbito dos procedimentos cautelares, que o Código de Processo Civil consagra no n.º 1 do artigo 326.º, ao mencionar a providência concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado e no n.º 2 do artigo 332.º, quando estatui que a providência pode, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar1.
Procede, assim, o recurso.
III – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido na parte em que revogou a sentença de 1.ª Instância, para ficar a subsistir esta.
Custas pela 3.ª requerida.
Macau, 22 de Maio de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1 ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, Coimbra, Almedina, III vol., 4.ª edição, 2010, p. 246.
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