Processo n.º 79/2013. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Chefe do Executivo.
Recorridas: A, B, C e D, associadas no E.
Assunto: Contrato administrativo. Normas técnicas. Directiva da União Europeia.
Data do Acórdão: 24 de Abril de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
Quando a Cláusula 8 (g) do Contrato para Operação e Manutenção da Central de Incineração de Resíduos Sólidos de Macau, celebrado entre a Direcção de Serviços de Protecção Ambiental e A, B, C e D, associadas no E, obriga à observância de normas constantes da Directiva 2000/76/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Dezembro de 2000, relativa à incineração de resíduos, no tratamento de emissões de gases poluentes gerados no curso da operação daquela Central de Incineração, está a remeter o conteúdo de regras técnicas para o texto da Directiva, sem qualquer intenção de mandar aplicar outras normas do Direito Europeu e muito menos de mandar aplicar a maneira como determinados Estados transpuseram a Directiva para o seu direito interno.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A, B, C e D, associadas no E, interpuseram recurso contencioso de anulação do despacho de 18 de Abril de 2012, do Chefe do Executivo, que lhes aplicou uma multa de MOP$87,500, por excesso de emissão de cloreto de hidrogénio (HCI) na Central de Incineração de Resíduos Sólidos de Macau.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por acórdão de 11 de Julho de 2013, concedeu provimento ao recurso, anulando o acto recorrido.
Inconformado, interpõe o Chefe do Executivo recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), tendo imputado as seguintes violações legais ao acórdão recorrido:
- O n.º 3 do Anexo III da “Directiva”, afirma que “Ao nível do valor-limite diário de emissões, os valores dos intervalos de confiança de 95% de cada resultado medido não deverão ultrapassar as seguintes percentagens dos valores-limites de emissão: ... Cloreto de hidrogénio: 40% ... ”
- A referida exigência significa de facto que os valores dos intervalos de confiança de 95% de cada resultado medido não deve ser maior do que 40% dos valores-limites de emissão de HCI, 10 mg/m3, ou seja, 4 mg/m3.
- Dada a impossibilidade de uma aplicação imediata da “Directiva” é nas legislações nacionais dos Estados-Membros da “UE” que se encontra a fórmula interpretativa.
- A Lei 17 BlmSchV alemã fornece a explicação adicional ao n.° 3 do Anexo III da “Directiva”, ao dizer claramente que “Os valores de meia hora e médios diários validados, significam que os valores devem ser determinados a partir dos valores médios de meia hora medidos após a dedução do intervalo de confiança determinado durante a calibragem”.
- A lei alemã indica inequivocamente que os valores dos intervalos de confiança têm de ser determinados por meio da realização da calibragem.
- A “EN 14181” descreve os procedimentos sobre como realizar a calibragem do equipamento de medição a ser utilizado para monitorização permanente das emissões.
- A “EN 14181” fornece as fases detalhadas para a realização da calibragem do equipamento de medição e também como deduzir a incerteza exigida para os intervalos de confiança.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
II – Os factos
O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. A, B, C e D são empresas, locais uma, internacionais outras, que se dedicam ao ramo da engenharia e ambiente.
2. No exercício da sua actividade, apresentaram-se ao concurso público lançado pelo Gabinete de Desenvolvimento de Infra-estruturas da RAEM, para a prestação de serviços de "Operação e Manutenção da Central de Incineração de Resíduos Sólidos de Macau" (o "Concurso").
3. Para o efeito, e nos termos do respectivo programa de concurso, formaram o consórcio "E" (doravante o "Consórcio"), ora Recorrente, ao qual foi, a final, atribuído o projecto objecto do Concurso.
4. Em conformidade com as normas do Decreto-Lei 63/85/M, o Consórcio e o Governo da RAEM, representado nesse acto pelo Sr. F, Director da Direcção de Serviços de Protecção Ambiental da RAEM (doravante "DSPA"), celebraram, em 14 de Maio de 2010, o "Contrato para Operação e Manutenção da Central de Incineração de Resíduos Sólidos de Macau" (doravante o "Contrato").
5. Nos termos do Contrato, nomeadamente na Cláusula 8 (g) do mesmo, o Consórcio em referência está obrigado a observar determinadas regras no tratamento de emissões de gases poluentes gerados no curso da operação da Central de Incineração de Resíduos Sólidos de Macau (doravante "CIRS"),
6. Normas essas que, in casu, são as constantes da Directiva 2000/76/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Dezembro de 2000 relativa à incineração de resíduos, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 28 de Dezembro de 2000, No. L332/91 (doravante "a Directiva"), cuja aplicabilidade ao Contrato e à operação da CIRS foi determinada no Ponto 5.1 c) das Condições Gerais do Concurso, bem como no ponto 3.3 (b) das Condições Especiais.
7. Mais ainda, nos termos da Cláusula 19 1 (c) do Contrato, a violação dos limites de emissão de gases poluentes - violação a determinar nos termos da Directiva - implica a aplicação de uma pena ao Consórcio no montante de MOP$87,500.00.
8. A DSPA solicitou ao E para proceder-se à incineração de grandes quantidades de um desperdício de Palie/ore to de Vinil (vulgarmente conhecido por PVC) na CIRS, proveniente da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Taipa.
9. O E alertou à DSPA que a grande quantidade de PVC enviada para incineração podia por em risco o nível de emissões, pelo que pediu verbalmente que enviasse, de forma fraccionada, as PVC em causa, a fim de prevenir o excesso de emissão de HCI.
10. No dia 29 de Abril de 2011, a DSPA, através do Ofício nº. XXXX/XXX/XXXX/2011, informou o Consórcio de que, na data de 17 de Fevereiro de 2011, a linha de incineração nº. 5 da CIRS havia excedido o valor médio diário limite de emissões de Cloreto de Hidrogénio (doravante "HCI"), fixadas nos termos do Ponto II.1.1. C do Anexo II à Directiva em 10 mg/m3.
11. Naquele dia, no período compreendido das 9h43 às 19h22, foi enviada 12 toneladas de PVC para incineração.
12. O valor médio registado nessa data havia sido de 11.1 mg/m3, que é um valor bruto registado no Sistema de Controlo de Distribuição (DCS), computado a partir dos valores médios a intervalo de 1 minuto, sem qualquer dedução ou adição de outros valores.
13. O Consórcio, na missiva com referência nº. XXXX-XXXXX, datada de 25 de Fevereiro de 2011, informou a DSPA de que havia existido um problema com as emissões de HCI, devido ao pedido por parte da DSPA para proceder-se à incineração de grandes quantidades de um desperdício de Palie/ore to de Vinil (vulgarmente conhecido por PVC) na CIRS, proveniente da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Taipa.
14. Além disso, na data de 9 de Maio de 2011, emitiu ainda a carta com referência nº XXXX-XXXXX, chamando atenção da DSPA, entre os outros, o facto de que as medições das emissões de HCI não haviam levado em linha de conta as normas da Directiva, maxime o seu artº 11º, nº 11 e Anexo III, porquanto os valores indicados se tratavam de valores aos quais não haviam sido aplicadas as deduções exigidas pela Directiva.
15. Em resposta, a DSPA informou de que os valores registados não estariam sujeitos a qualquer redução nos termos da Directiva por duas razões, a saber:
a) De acordo com a G – entidade que instalou a maquinaria da CIRS –, os valores registados no sistema da CIRS reflectem os valores finais de emissão; e
b) A G declarou que os níveis de incerteza na medição eram zero, pelo que não haveria lugar a qualquer subtracção dos valores indicados na Directiva.
16. Por despacho do Senhor Chefe do Executivo, de 18/04/2013, foi determinado aplicar ao E uma multa no valor de MOP$87.500,00 por excesso de emissão de HCI.
III – O Direito
1. As questões a resolver
Trata-se de saber se o acórdão recorrido incorreu nas violações legais imputadas pelo recorrente.
2. Aplicação de Directiva europeia ao contrato dos autos
O acto recorrido aplicou uma multa ao Consórcio que opera e mantem a Central de Incineração de Resíduos Sólidos de Macau, por excesso de emissão do valor médio diário de cloreto de hidrogénio (HCI), em determinado dia, valor fixado em 10mg/m3 pela Directiva.
Nos termos na Cláusula 8 (g) do Contrato para Operação e Manutenção da Central de Incineração de Resíduos Sólidos de Macau, celebrado entre a Direcção de Serviços de Protecção Ambiental e o Consórcio em referência, este está obrigado a observar determinadas regras no tratamento de emissões de gases poluentes gerados no curso da operação daquela Central de Incineração. Normas que são as constantes da Directiva 2000/76/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Dezembro de 2000 relativa à incineração de resíduos, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 28 de Dezembro de 2000, N.º L332/91, cuja aplicabilidade ao Contrato e à operação da CIRS foi determinada no Ponto 5.1 c) das Condições Gerais do Concurso, bem como no ponto 3.3 (b) das Condições Especiais.
O Consórcio veio defender que, de acordo com a mencionada Directiva, ao valor bruto apurado deviam ser aplicadas as deduções, designadamente, o Anexo III, n.º 3, segundo o qual “A nível do valor-limite diário de emissões, os valores dos intervalos de confiança de 95% de cada resultado medido não deverão ultrapassar as seguintes percentagens de emissão”, sendo essa percentagem de 40% do valor limite diário de 10mg/m3, ou seja, 4mg/m3.
O acórdão recorrido concordou com esta tese, pelo que anulou o acto recorrido, já que 40% de 11,1 mg/m3 (valor apurado) é inferior a 10mg/m3, valor limite da Directiva.
A entidade recorrida discorda, alegando que dada a impossibilidade de uma aplicação imediata da “Directiva” é nas legislações nacionais dos Estados-Membros da “UE” que se encontra a fórmula interpretativa. E que a Lei 17 BlmSchV alemã fornece a explicação adicional ao n.° 3 do Anexo III da “Directiva”, ao dizer claramente que “Os valores de meia hora e médios diários validados, significam que os valores devem ser determinados a partir dos valores médios de meia hora medidos após a dedução do intervalo de confiança determinado durante a calibragem”.
Esta tese é inaceitável.
As partes no contrato optaram por aderir, em matéria técnica, a uma directiva da União Europeia.
Como é evidente, não tiveram qualquer intenção de aplicar o Direito da União Europeia, como o fazem os órgãos jurisdicionais desta e muito menos de seguir a maneira como Estados Membros, como a Alemanha, transpuseram a Directiva em questão. Não é isso que está em causa.
Trata-se apenas de, nas matérias técnicas, seguir estritamente a Directiva e nada mais.
Como é sabido, “Nos termos do art. 288.º1, «a directiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando no entanto às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios».
Resulta desta disposição, que as directivas são actos pelos quais a Instituição competente, ao mesmo tempo que fixa aos respectivos destinatários um resultado que no interesse comum deve ser alcançado, permite que cada um deles escolha os meios e as formas mais adequadas — do ponto de vista do direito interno, da realidade nacional ou dos seus interesses próprios — para alcançar o objectivo visado”2. Isso significa - como explica MIGUEL GORJÃO-HENRIQUES3 - que o conteúdo da directiva supõe a possibilidade de diferenciações normativas do regime jurídico a estabelecer nacionalmente.
Assim, ao contrário do defendido pela entidade ora recorrente, os meios internos estaduais que transpõem as directivas para os direitos internos, não procedem à sua interpretação. Aplicam os grandes objectivos da directiva ao direito de cada Estado, como bem lhes aprouver. Daí que não faça qualquer sentido pretender aplicar o direito alemão ao caso dos autos. E, porque não o inglês, ou o português, ou o sueco?
Deste modo, na aplicação de multas por infracções dos limites de emissões de gases, há que seguir estritamente a Directiva, não como Direito Europeu, mas como norma técnica mandada aplicar pelo contrato celebrado entre as partes.
Por outro lado, não há qualquer impossibilidade de uma aplicação imediata da “Directiva”. Muitas vezes a transposição das directivas pelos Estados-Membros limita-se a uma mera tradução do texto e nada mais.
Por fim, não resulta dos factos provados que o Consórcio não tenha procedido à calibragem do equipamento, pelo que as referências da entidade recorrida à norma europeia EN 14181 são irrelevantes.
O recurso não merece provimento.
IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Sem custas.
Macau, 24 de Abril de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
1 Do Tratado da União Europeia.
2 JOÃO MOTA DE CAMPOS e JOÃO LUIZ MOTA DE CAMPOS, Manual de Direito Europeu, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 6.ª edição, 2010, p. 325.
3 MIGUEL GORJÃO-HENRIQUES, Direito Comunitário, Coimbra, Almedina, 4.ª edição, 2007, p. 279.
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