打印全文
Processo n.º 58/2019. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorridos: B e mulher C.
Assunto: Início do prazo de prescrição. Artigo 299.º do Código Civil.
Data do Acórdão: 19 de Junho de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
No âmbito de aplicação do artigo 299.º do Código Civil, o início do prazo da prescrição dá-se de maneira objectiva, independentemente do momento em que o titular do direito teve conhecimento deste.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

  I – Relatório
  B e mulher C intentaram acção declarativa com processo comum ordinário contra A pedindo a:
  1) Emissão de sentença constitutiva que produza os efeitos da declaração negocial da R. faltosa, e que, assim, declare vendida pela ré ao 1.° autor, a quota indivisa de 3/5 do direito de propriedade do prédio, sito em Macau, [Endereço (1)], descrito sob o n.º XXXX a fls. 24v do Livro X-XX da Conservatória do Registo Predial de Macau, pelo preço de MOP$6,000.00.
  2) Condenação da ré ao pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais pelo incumprimento parcial do contrato promessa de MOP$2,000,000.00 (dois milhões patacas), acresida dos juros vincendos à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
  3) Subsidiariamente, caso o pedido de execução específica não vier a ser considerado procedente, a declaração do contrato promessa de compra e venda resolvido, por incumprimento definitivo da ré, condenando-se a mesma ao pagamento de uma indemnização no valor de MOP$5,000,000.00 (cinco milhões patacas), acrescida dos juros vincendos à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
  4) Sempre reconhecendo o direito de retenção do 1.º autor no que respeita ao prédio descrito sob o n.º XXXX, a fls. 24v do Livro X-XX da Conservatória do Registo Predial de Macau, para garantia desse seu direito de crédito.
O Ex.mo Juiz, por despacho saneador-sentença, de 27 de Setembro de 2017, declarou prescritos os direitos de execução específica da promessa e indemnização, absolvendo a ré do pedido e absolveu a ré da instância quanto ao reconhecimento do direito de retenção.
Recorreram os autores B e mulher C para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) que, por acórdão de 6 de Dezembro de 2018, concedeu provimento ao recurso, revogando o despacho saneador-sentença, quanto ao julgamento da prescrição, que decidiu não estar verificada, determinando o prosseguimento dos autos quanto à execução específica da promessa.
Recorre, agora, a ré A para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando a seguinte questão:
- O Tribunal Recorrido fez uma errada interpretação e aplicação da lei ao considerar que, para se iniciar o prazo da prescrição previsto no n.º 1, primeira parte do artigo 299.º do Código Civil é exigível o conhecimento, por parte do titular do direito (parte antagónica do beneficiário da prescrição) de todos os pressupostos de que depende o seu exercício.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
1. Por contrato promessa de 13 de Novembro de 1972, que se romaniza D, prometeu vender ao 1º A o prédio sito em Macau, [Endereço (1)], descrito sob o n.º XXXX, a fls. 24v do Livro X-XX na Conservatória do Registo Predial de Macau, pelo preço total de MOP$10,000.00 (dez mil patacas) (Doc. n.º 1 e Doc. n.º 3, fls. 10).
2. O referido contrato apesar de expressar que ambas as partes entraram em acordo para os termos e condições aí expressas só foi assinado pela promitente vendedora.
3. Assim, na data da assinatura do contrato o 1.° A. já tinha pago a D a quantia total de MOP$3,500.00 (três mil e quinhentas patacas), a título de sinal e antecipação do preço (Docs. Nºs 1 e 2).
4. Na altura de celebração da promessa acima mencionada, D era titular de uma quota indivisa de três quintos (3/5) do direito de propriedade do referido prédio (Doc. n.º 3, fls. 12)
5. Os restantes dois quintos (2/5) do direito de propriedade pertenciam a E, F e G, cabendo a cada um deles, a quota indivisa de dois quinze avos (2/15) respectivamente (v. Doc. n.º 3, a fls. 11).
6. Nos termos da declaração de promessa, D, mandatou o advogado que testemunhou a mencionada declaração, Dr. H, para intentar acção no tribunal, a fim de adquirir a totalidade do direito de propriedade do prédio (v. Doc. n.º 1)
7. D declarou aí que o contrato definitivo de venda seria celebrado 30 dias após o tribunal haver proferido decisão declarando-a titular dá restante parte do direito de propriedade sobre o prédio (v. Doc. n.º 1)
8. Em 6 de Dezembro de 1976, D, representada pelo seu mandatário judicial, Dr. H, intentou no Tribunal da Comarca de Macau acção declarativa com processo ordinário, distribuída sob o n.º 122/1976 ao 1º cartório, a fim de ser declarado que havia adquirido por usucapião a totalidade do direito de propriedade do prédio (Doc. n.º 4, fotocópias extraídas dos autos de Acção Declarativa Ordinária n.º 122/1976 do 1º cartório do Tribunal da Comarca de Macau),
9. No entanto, a acção foi julgada improcedente, havendo a decisão transitado em julgado no dia 4 de Outubro de 1977 (v. Doc. n.º 4, fls. 56 e 71 v dos autos).
10. D faleceu em 10 de Dezembro de 1981 em Hong Kong (Doc. n.º 5, fotocópias extraídas dos autos de Inventário Facultativo n.º 251/1996 da 4.a Secção, do Tribunal Judicial da Comarca de Macau.
11. Até à data do seu óbito, a mesma não adquiriu os restantes 2/5 do direito de propriedade do prédio, que ainda continuam registados a favor de E, F e G (Doc. n.º 3, fls. 11).
12. Em 2014 os AA instauraram no TJB (Proc. nº CV3-14-007-CPE) processo de jurisdição voluntária contra a ré, pedindo a fixação de um prazo de 3 meses para o cumprimento por parte desta, enquanto sucessora da promitente vendedora D, da obrigação de celebração do contrato de compra e venda de 3/5 da propriedade prometida vender.
13. A ré não deduziu oposição a este pedido e o tribunal, em 25/07/2016, proferiu sentença fixando à ré um prazo de 3 meses para a outorga do contrato prometido, decisão transitada em 12/09/2016.


III - O Direito
1. As questões a apreciar
O despacho saneador-sentença declarou prescritos os direitos de execução específica da promessa e indemnização, com fundamento em o prazo ter começado a correr em 1977, com o trânsito em julgado da sentença que julgou improcedente a acção proposta pela mãe da ré, a fim de ser declarado que havia adquirido por usucapião a totalidade do direito de propriedade do prédio.
Não há divergência que o prazo de prescrição é de 20 anos.
O acórdão recorrido entendeu que o prazo de prescrição só começou a correr em 2014, ano em que os autores tiveram conhecimento do resultado do mencionado processo judicial.
A questão a decidir é, pois, a de saber quando começou a correr o prazo de prescrição: quando o direito pôde ser exercido ou só quando os titulares do direito tiveram conhecimento de que podiam exercer o direito de execução específica da promessa.

2. Momento do início do prazo da prescrição
Dispõe o artigo 299.º do Código Civil:
 “Artigo 299.º
 (Início do curso da prescrição)
 1. O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.
 2. A prescrição de direitos sujeitos a condição suspensiva ou termo inicial só começa depois de a condição se verificar ou o termo se vencer.
 3. Se for estipulado que o devedor cumprirá quando puder, ou o prazo for deixado ao arbítrio do devedor, a prescrição só começa a correr depois da morte dele ou, caso se trate de pessoa colectiva, da sua extinção.
 4. Se a dívida for ilíquida, a prescrição começa a correr desde que ao credor seja lícito promover a liquidação; promovida a liquidação, a prescrição do resultado líquido começa a correr desde que seja feito o seu apuramento por acordo ou sentença transitada em julgado”.

Vejamos, agora, o que dispõem quanto ao início do prazo de prescrição os preceitos relativos a dois institutos particulares, o enriquecimento sem causa e a responsabilidade civil extracontratual, os artigos 476.º e 491.º, n.º 1, respectivamente:
 “Artigo 476.º
 (Prescrição)
 O direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o credor teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento”.
 “Artigo 491.º
 (Prescrição)
 1. O direito de indemnização prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.
 2. …
 3. …
 4. …”
 
Assim o que resulta do cotejo dos três preceitos é o de que na norma geral do início do prazo da prescrição, cujo prazo ordinário é de 15 anos, se estatui que o prazo começa a correr quando o direito puder ser exercido, independentemente do conhecimento do direito por parte do titular, enquanto no enriquecimento sem causa e na responsabilidade civil extracontratual, o prazo só começa a correr “a contar da data em que o credor teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável” (artigo 476.º) e “a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos” (artigo 491.º, n.º 1).
Importa, ainda notar que estes dois prazos curtos, de 3 anos, cujo início depende do conhecimento do direito, por parte do titular, não prejudica a prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento ou do facto danoso. O que significa, claramente, que o início do prazo de prescrição se dá com o facto objectivo e não com o conhecimento do direito por parte do interessado.
Ou seja, se o prazo da prescrição ordinária (15 anos) já tiver decorrido a contar do enriquecimento ou do facto danoso dá-se a prescrição, mesmo que ainda não tenha decorrido o curto prazo de 3 anos a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável.
O que quer dizer que o legislador pretendeu que nas situações regra, em que o prazo é longo (15 anos), a contagem do prazo dá-se de maneira objectiva, enquanto que nos prazos curtos do enriquecimento sem causa e da responsabilidade civil extracontratual o prazo só começa a correr a contar da data em que o credor ou o lesado tiveram do conhecimento do direito que lhes compete.
É isso mesmo que explica ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO1, perante normas semelhantes do Código Civil português:
“I. O início do prazo da prescrição é um factor estruturante do próprio instituto: dele, depende, depois, todo o desenvolvimento subsequente. O Direito comparado 2documenta, a tal propósito, dois grandes sistemas:
  - o sistema objectivo;
  - o sistema subjectivo.
Pelo sistema objectivo, o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que, disso, tenha ou possa ter o respectivo credor. Pelo subjectivo, tal início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito. O sistema objectivo é tradicional3, sendo compatível com prazos longos; o subjectivo joga com prazos curtos4 e costuma ser dobrado por uma prescrição mais longa, objectiva5.
Como vimos, o sistema objectivo dá primazia à segurança e o subjectivo à justiça; a junção dos dois será a melhor solução de iure condendo.

VIII. Cumpre ainda sublinhar que, nalguns casos de prescrição, a lei portuguesa já estabelece sistemas subjectivos. É o que sucede no enriquecimento sem causa e na responsabilidade civil - artigos 482.° e 498.°/l - casos em que se prevê uma prescrição de três anos cujo início depende do conhecimento que o credor tenha dos seus direitos6.
O mesmo defende ANA FILIPA MORAIS ANTUNES7
“2. A expressão quando o direito puder ser exercido tem que ser interpretada no sentido de a prescrição se iniciar quando o direito estiver em condições (objectivas) de o titular poder exercitá-lo, portanto, desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação. O critério consagrado é, pois, o da exigibilidade da obrigação.
  …
4. O início da prescrição não é impedido pela ignorância do titular acerca da existência do direito ou da sua titularidade. Esta circunstância poderá, no entanto, relevar em matéria de suspensão do curso da prescrição”.
Concluindo, no nosso caso é irrelevante o conhecimento do titular do direito, dado estarmos no âmbito do artigo 299.º, cujo prazo ordinário era, ao tempo, de 20 anos.
Ocorreu, pois, a prescrição.
 
IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, revogam o acórdão recorrido, para ficar a subsistir a decisão do despacho saneador-sentença.
Custas pelos recorridos em todas as instâncias.

Macau, 19 de Junho de 2019.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai






     1 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Coimbra, Almedina, 2005, p. 166 a 169.
     2 Designadamente os elementos ponderados em torno da recente reforma da prescrição, na Alemanha; cf. supra, 145 e 146.
     3 Assim o artigo 2935.º do Código italiano; cf., sobre este preceito, Paolo Vitucci, La prescrizione cit., 1, 78 ss.
     4 Trata-se, como vimos, da solução alemã, após a reforma de 2001/2002 do BGB; §1991/I, 2.
     5 Ao estilo dos artigos 482.º e 498.º/1.
     6 Cf. uma aplicação em RLx 28-Abr.-1998 (Amaral Barata), BMJ 476 (1998), 473-474.
     7 ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, 2008, p. 63 a 64.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------





1
Processo n.º 58/2019

12
Processo n.º 58/2019