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Processo nº 846/2015(*) Data: 23.05.2019
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Marca.
Recurso de plena jurisdição.
Matéria nova.
“Uso sério”.
Caducidade do registo.



SUMÁRIO

1. A regra geral é a de que os recursos jurisdicionais visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova, que não foi apreciada pelo tribunal recorrido, salvo matéria de conhecimento oficioso.

2. O recurso judicial da decisão administrativa, previsto no art. 275° do Regime Jurídico da Propriedade Industrial (R.J.P.I.) é de plena jurisdição (e não de mera legalidade, como é regra nos recursos contenciosos), isto é, em que o Tribunal não se limita a anular (ou a revogar, como diz a lei) a decisão administrativa ou a mantê-la, podendo também “…alterar, total ou parcialmente, a decisão recorrida…” sendo que a sentença “…, substitui essa decisão nos precisos termos em que for proferida”; (n.° 3 do art. 279° do R.J.P.I.).

Porém, tal também não implica que no mesmo se possa invocar e pedir pronúncia sobre “matéria nova”, não submetida à apreciação do Tribunal recorrido.

3. Se o titular de uma marca registada tem o direito ao seu uso exclusivo, o certo é que sobre o mesmo recai também o dever de a usar, pois que ainda que não exista possibilidade legal de o obrigar a usar a sua marca, há porém “sanção” por falta de uso (após o registo), verificadas determinadas condições.

A utilização séria de uma marca deve ser uma utilização verdadeira, real, consistente, empenhada e genuína, com o objectivo de cumprir as funções das marcas na actividade comercial, e não apenas simulada, fingida, enganosa ou artificial, e com objectivos desviados.

O conceito de “utilização séria” é mais de ordem “qualitativa” que “quantitativa”.

É a seriedade da utilização que está em causa, não a frequência da utilização, embora a utilização frequente possa ser indiciadora da seriedade e a utilização esporádica ou acidental possa ser indiciadora da falta de tal seriedade

Considera-se “uso irrelevante”, o uso estritamente privado que não chega ao conhecimento dos meios interessados no mercado, considerando-se também que um uso meramente “simbólico”, esporádico ou em quantidades irrelevantes”, (neste último caso, não esquecendo a dimensão da empresa e o tipo de produto ou serviço), não preenche o referido requisito do “uso efectivo”.

4. O registo de uma marca caduca pela falta de utilização séria durante três anos consecutivos, salvo justo motivo.

O relator,

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Processo nº 846/2015(*)
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. julgou-se improcedente o recurso judicial interposto por A, confirmando-se a decisão da DIRECÇÃO DOS SERVIÇOS DE ECONOMIA (D.S.E.) que declarou a caducidade do registo da marca nominativa registada sob o número N/XXX89 e denominada “B”; (cfr., fls. 403 a 406-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, do assim decidido interpôs o recorrente o presente recurso, pedindo a revogação da sentença recorrida; (cfr., fls. 411 a 437).

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Adequadamente processados os autos, e nada obstando cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal a quo deu como provados os factos constantes e como tal elencados na sentença recorrida a fls. 403 a 404, (que aqui se dão como integralmente reproduzidos).

Do direito

3. A vem recorrer da sentença do Mmo Juiz do T.J.B. que confirmou a decisão da D.S.E. que, por falta do seu “uso sério”, declarou a caducidade do registo da marca nominativa registada sob o número N/XXX89 e denominada “B”.

Atento o teor das suas alegações e conclusões de recurso, colhe-se que o seu inconformismo assenta no entendimento de que o Tribunal a quo incorreu em “erro de julgamento da matéria de facto”, em concreto, por não ter dado como provado factos que em sua opinião deviam ter sido considerados provados, (ou seja, e, em síntese, que da sua parte, houve “uso sério” da marca para efeitos da declarada caducidade), e que, a final, implicariam outra decisão.

Analisados os autos, ponderados os fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida assim como os argumentos pelo recorrente agora esgrimidos no recurso que traz a este T.S.I., somos de opinião que censura não merece a sentença impugnada, sendo de se negar provimento ao presente recurso.

Eis – ainda que de forma algo abreviada – o porquê deste nosso entendimento.

–– Antes de mais, uma nota prévia.

Como cremos ser pacífico, um “recurso”, (“ordinário”, como o presente), é o meio processual (próprio) para se sindicar (do acerto de) uma decisão proferida, com o mesmo se pretendendo obter uma decisão que identifique e demonstre os (eventuais) erros da decisão recorrida apresentando uma (justificada) solução para os mesmos.

Porém, como cremos ser também óbvio, (pelo menos, em sede de um “recurso ordinário”, como é o presente), a análise da decisão recorrida terá de ser efectuada com base no que (já) constava no processo aquando da sua prolação, e não, com elementos – factos – “novos” que, como tal, não foram, (nem puderam ser), ponderados e tidos em conta na decisão proferida e recorrida, porque “inexistentes” no momento da sua prolação; (cfr., v.g., M. Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 373 e segs.).

Como em sede do Ac. do Vdo T.U.I. de 23.05.2001, (Proc. n.° 5/2001) se considerou, “Como se sabe, no nosso direito, a regra geral é a de que os recursos jurisdicionais visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova, que não foi apreciada pelo tribunal recorrido, salvo matéria de conhecimento oficioso”, podendo-se ainda ver o de 27.11.2002 (Proc. n.° 12/2002), onde se consignou que: “É pacífico que os recursos jurisdicionais visam a impugnação das decisões da 1.ª instância e não obter nova decisão sobre a questão suscitada – por isso, em princípio, não pode conhecer-se no recurso matéria que não tenha sido alegada na primeira instância”; (no mesmo sentido, cfr., também, o Ac. de 29.06.2009, Proc. n.° 32/2008).

Nesta conformidade, consigna-se desde já que se terá por (absolutamente) irrelevante toda a “matéria” – de facto – nova alegada em sede do presente recurso, e que, por isso, não será considerada em sede da sua apreciação e na decisão que se irá proferir.

Não se olvida que o presente recurso, atento o estatuído no art. 279°, n.° 3 do R.J.P.I. aprovado pelo D.L. n.° 97/99/M de 13.12 – e tal como o “recurso em matéria do direito de reunião e manifestação” previsto no art. 12° da Lei n.° 2/93/M – é um “recurso de plena jurisdição”; (cfr., v.g., os Acs. do Vdo T.U.I. de 23.10.2015, Proc. n.° 64/2015, onde se consignou que “O recurso judicial da decisão administrativa, previsto no artigo 275.º do Regime Jurídico da Propriedade Industrial (RJPI) é de plena jurisdição (e não de mera legalidade, como é regra nos recursos contenciosos), isto é, em que o Tribunal não se limita a anular (ou a revogar, como diz a lei) a decisão administrativa ou a mantê-la, podendo também “…alterar, total ou parcialmente, a decisão recorrida…” sendo que a sentença “…, substitui essa decisão nos precisos termos em que for proferida” (n.º 3 do artigo 279.º do RJPI)”).

Porém, tal também não implica que no mesmo se possa invocar e pedir pronúncia sobre “matéria nova”, não submetidas à apreciação do Tribunal recorrido.

Esclarecido que cremos ter ficado este aspecto, continuemos, passando-se ao que se apresenta como a “verdadeira questão” do presente recurso.

*

–– Da declaração de caducidade da marca “B”.

Pois bem, como resulta da sentença recorrida, a “declaração de caducidade da marca” em questão foi consequência da falta de prova por parte do ora recorrente do seu “uso sério” em Macau, por si ou por intermédio de um terceiro por si devidamente licenciado, durante o período mínimo de 3 anos.

Na verdade, (e como em aresto desta Instância de 19.04.2007, Proc. n.° 92/2007, já se ponderou, podendo-se, sobre a matéria ver também os Acs. de 14.02.2019 e de 21.02.2019, Procs. n°s 240/2017 e 482/2018), pretendendo o legislador evitar que os registos de marcas sejam ocupados por “cemitérios e fantasmas” de marcas, estatuiu-se no art. 231°, n.° 1, al. b) do Regime Jurídico da Propriedade Industrial (R.J.P.I.), aprovado pelo D.L. n.° 97/99/M, que o registo de uma marca caduca pela falta de utilização séria durante três anos consecutivos, salvo justo motivo.
De facto, se o titular de uma marca registada tem o direito ao seu uso exclusivo, o certo é que sobre o mesmo recai também o dever de a usar, pois que ainda que não exista possibilidade legal de o obrigar a usar a sua marca, há porém “sanção” por falta de uso (após o registo), verificadas determinadas condições; (cfr., v.g., L.M. Couto Gonçalves in, “Manual do Direito Industrial”, pág. 315).
In casu, entendeu-se na sentença recorrida que não houve uma utilização séria da marca em questão por um período consecutivo de 3 anos, e, à falta de justificação de tal falta de uso, concluiu-se que nenhuma censura merecia a decisão (proferida pela D.S.E.) aí objecto de recurso que, atento o estatuído no atrás citado art. 231°, n.° 1, al. b), declarou a caducidade da mesma marca.
Porém, não define a Lei, (nomeadamente, o R.J.P.I.), o que se deve entender por “utilização séria de uma marca”.
Recorrendo-se então à doutrina, verifica-se que a definição mais consensual de tal “uso sério” é a de se tratar de um “uso efectivo e real, através de actos concretos, reiterados e públicos, manifestados no âmbito do mercado de produtos ou serviços e da finalidade distintiva, entendendo-se, por sua vez, como “uso irrelevante”, o uso estritamente privado que não chega ao conhecimento dos meios interessados no mercado, considerando-se também que um uso meramente “simbólico”, esporádico ou em quantidades irrelevantes”, (neste último caso, não esquecendo a dimensão da empresa e o tipo de produto ou serviço), não preenche o referido requisito do “uso efectivo”; (cfr., v.g., L.M. Couto Gonçalves in, “Direito de Marcas”, pág. 175 e segs.).

Importa pois ter em conta que a utilização séria de uma marca deve ser uma utilização verdadeira, real, consistente, empenhada e genuína, com o objectivo de cumprir as funções das marcas na actividade comercial, e não apenas simulada, fingida, enganosa ou artificial, e com objectivos desviados.
O conceito de “utilização séria” é mais de ordem “qualitativa” que “quantitativa”.
É a seriedade da utilização que está em causa, não a frequência da utilização, embora a utilização frequente possa ser indiciadora da seriedade e a utilização esporádica ou acidental possa ser indiciadora da falta de tal seriedade.
O uso da marca é sério se for feito em conformidade com a função essencial da marca, que é distinguir bens de comércio e criar-lhes uma identidade de origem comercial, sempre perante o público relevante. E não será sério se for feito com outro objectivo, ainda que dissimulado, designadamente de conservar o registo apenas para afastar terceiros do uso do sinal que compõe a marca. O registo concede um exclusivo de utilização para distinguir, promover, publicitar, mas não concede um instrumento para apenas manter os concorrentes afastados do sinal registado ou um instrumento meramente especulativo.
De facto, os sinais distintivos do comércio têm de estar ao serviço do comércio, a exercer a sua função distintiva, não podendo o registo servir de cemitério ou prisão de sinais ou de reserva táctica de “trunfos” de especulação. Se o titular do registo não der cumprimento ao ónus que sobre si impende, sofre as legais consequências, deixa de ter a protecção do registo porque este caduca para que o sinal se liberte, em rigor, o uso do sinal não está na livre disposição do titular do registo respectivo.
O uso sério da marca é assim aquele que é feito para que a marca desempenhe a sua função que justifica a sua protecção através de um direito de exclusivo: distinguir origens comerciais. É, portanto, uma utilização perante o público consumidor da R.A.E.M., perante o qual a marca se exibe e publicita para assinalar os bens para que foi pedido o registo e não outros e numa utilização da marca íntegra e sem alteração essencial dos seus elementos (art. 232°, n.° 1, al. a) e b) do R.J.P.I.).

Como igualmente se tem considerado “O conceito “utilização séria” é composto de dois vocábulos: “utilização” e “séria”. Isto significa que o qualificativo “séria” só faz sentido quando apendiculado ao substantivo que pretende qualificar. A discussão em torno do conceito carece, portanto, e em primeiro lugar de uma situação de facto que revele uma utilização da marca (elemento a montante do conceito) e só depois se indagará se ela é séria (elemento a jusante). E a utilização deve ser feita “através de actos concretos, reiterados e públicos, manifestados no âmbito do mercado de produtos ou serviços e da finalidade distintiva e um uso meramente simbólico, esporádico ou em quantidades irrelevantes não parece preencher o referido requisito de uso efectivo, muito menos uma abstenção de uso”. Evidentemente, se o titular de uma marca não fizer dela qualquer utilização, então o problema acaba por ser muito mais grave e nem sequer precisa de apuramento sobre os elementos que possam densificar a seriedade”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 22.05.2014, Proc. n.° 39/2014, e, mais recentemente de 14.02.2019, Proc. n.° 240/2017, podendo-se sobre a matéria ver também João Pedro Costa Carvalho in “A caducidade do registo da marca por falta de uso”; João F. A. Pinto Pereira Mota in “O princípio do esgotamento do direito de marca pelo seu não uso”; Maria M. Carvalho in “O uso obrigatório da Marca Registada”).

E, aqui chegados, e como se deixou adiantado, cremos que o recuso trazido a este T.S.I. terá de ser julgado improcedente.

Com efeito, não se vislumbra nenhum “erro de julgamento da matéria de facto”.

Pelo contrário, de uma análise aos presentes autos e ao consignado da sentença recorrida – em sede de “factos provados” e “motivos da convicção” do Tribunal recorrido; cfr., fls. 403 a 404-v – nenhuma censura nos merece o decidido que, no caso, e como resulta da própria exposição aí efectuada em sede de fundamentação, demonstra uma rigorosa e correcta análise de todo o material probatório existente, tendo o Tribunal decidido em total conformidade com o que lhe era legalmente imposto em sede de “apreciação da prova”, no integral respeito pelas regras sobre o valor das provas tarifadas, regras de experiência e legis artis, e em conformidade com o “princípio da livre apreciação das provas” consagrado no art. 558° do C.P.C.M..

Assim sendo, censura não merecendo a “decisão da matéria de facto”, imperativa era a improcedência do recurso judicial para o T.J.B. interposto, e, agora, deste.

Com efeito, provada não ficou a “utilização séria da marca” em questão em Macau, pelo ora recorrente ou por terceiro agindo como seu legítimo representante, durante um período de 3 anos consecutivos.

E, como óbvio é, o “ónus da prova” em relação a tal “matéria” cabia ao ora recorrente, (cfr., art. 335° do C.C.M.), ao mesmo cabendo assim não só alegar – oportunamente – factos demonstrativos da dita “utilização séria da marca”, mas (também) oferecer provas necessárias e aptas a sustentar (com sucesso) o que alegava, sob pena de se ter de sujeitar às consequências legais que daí lhe devam resultar.

Nesta conformidade – e provado estando apenas que foi requerida a importação para Macau de produtos com a marca em questão, mas por outras (2) empresas que nada tem a ver com o ora recorrente, e que a exposição à venda do mesmo produto em Macau também lhe é alheia – vista está pois a solução para o presente recurso, já que tais factos são (manifestamente) insuficientes – irrelevantes – para se dar por verificada a utilização séria da marca por parte do ora recorrente, (ou por um seu representante legal).

Por fim, não se olvida igualmente que a caducidade do registo por falta de uso sério não opera, se comprovado estiver “justo motivo”, ou seja, quando o não uso não provém da vontade do titular, nem lhe é imputável a título de mera culpa, (como sucede em situações de “força maior”); cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 27.04.2017, Proc. n.° 722/2016).

Porém, no caso dos autos, nem sequer alegado foi qualquer “justo motivo”, pelo que, sem necessidade de mais alongadas considerações, impõe-se a decisão que segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Registe e notifique.

Oportunamente, devolvam-se os presentes autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 23 de Maio de 2019
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José Maria Dias Azedo
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Fong Man Chong
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Ho Wai Neng



(*) Processo redistribuído ao ora relator em 11.04.2019.
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Proc. 846/2015 Pág. 18

Proc. 846/2015 Pág. 19