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Proc. nº 1006/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 23 de Maio de 2019
Descritores:
- Compropriedade
- Uso de coisa comum
- Usucapião
- Inversão do título de posse
- Oposição

SUMÁRIO

I - Segundo o art. 1302º, nº1, do C.C., o uso de coisa comum não confere, em geral, a quem o exerce uma posse exclusiva, nem melhor, nem superior, à que pertence ao(s) outro(s) comproprietário(s).
II - Todavia, o nº2 excepciona as situações em que esse uso pode ser feito em decorrência de uma inversão do título.
III - Mas para haver essa inversão é suposto que os actos materiais praticados pelo interessado na aquisição por inversão do título de posse (cfr. art. 1187º, al. e), do CC) ilustrem uma oposição desse comproprietário contra o(s) outro(s).
IV - A oposição tem que se traduzir em actos positivos, inequívocos (materiais ou jurídicos) e categóricos de que o detentor, a partir do momento em que manifesta a oposição, está actuar como se fosse titular do direito.
V - Se não for possível a oposição, por ausência, paradeiro desconhecido ou falecimento do outro consorte, não é possível a inversão.

Proc. nº 1006/2018

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I - RELATÓRIO
A, com sede em Macau, na Rua de XX, nº XX, ----
Instaurou no TJB (Proc. nº CV3-16-0041-CAO) acção ordinária contra:
- B, solteira, maior, de nacionalidade chinesa, com última residência conhecida em Macau, no XX, n.º XX;
- Herdeiros desconhecidos de B; e
- Região Administrativa Especial de Macau
Concluiu a petição inicial, pedindo a procedência da acção e, em consequência, fosse declarada titular do direito de domínio útil do prédio urbano n.º XX da Rua de XX, descrito sob o n.º XX98, a fls. XX do Livro XX na Conservatória do Registo Predial de Macau, para todos os efeitos legais, designadamente, o de efectuar o registo do referido direito a seu favor na supramencionada Conservatória.
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Na oportunidade, foi proferida sentença, que considerou a 1ª Ré e a RAEM partes ilegítimas, absolvendo-as da instância, e julgou a acção totalmente improcedente.
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Inconformada, a autora interpôs recurso jurisdicional, em cujas alegações, formulou as seguintes conclusões:
“1. É verdade que a A. iniciou a sua posse sobre o prédio dos autos em meados do ano de 1929, como titular da quota indivisa de 30/100 do direito de domínio útil e que foi encarregue de o administrar em nome e por conta da titular da quota indivisa de 70/100, que foi quem lhe doou a referida quota indivisa de 30/100, com a obrigação de lhe entregar 70% do rendimento líquido do mesmo, i.e. o saldo líquido dos rendimentos obtidos com o prédio após deduzidas as despesas de administração, como contribuições, consertos e outras de carácter conservatório e, após a sua morte, aos seus herdeiros para “bens de sacrifício da família” [v. escritura de 29.06.1929, lavrada a fls. XX do Livro de Notas para Escrituras n.º XX do Notário Público C, junta aos autos].
2. No entanto, como provado há mais de 30 anos (conforme os registos da associação desde Outubro de 1940, apesar de não alegado e provado), nem a doadora, nem qualquer seu herdeiro comparece junto da A. para proceder ao levantamento dos referidos rendimentos líquidos.
3. A A., nos termos das regras de experiência normal, presumiu haver a doadora falecido, sem herdeiros, estando o direito vago e sem titulares e, assim, há mais de 30 anos, iniciou uma nova posse, como única dona do prédio, decidindo toda e qualquer questão a ele relativa, usando o mesmo como lhe aprouver, dando-o de arrendamento (só em seu nome e não em seu nome e na qualidade de administradora da doadora) e arrecadando a totalidade das rendas como suas, sendo por todos reconhecida como dona do prédio, sem qualquer contestação ou oposição, convicta de não estar a lesar o direito de outrém (v. (v. respostas aos quesitos 5.º a 14.º da Base Instrutória).
4. O direito só exige que o detentor faça inversão do título de posse contra aquele em cujo nome possuía, se este existir, i.e. se tiver personalidade, ou se falecido, como é o caso, contra qualquer seu representante sucessório que exista- entendimento contrário faria indevida interpretação e aplicação, dos art.s 1263.º e 1406.º, n.º 2, do C.C. de 1966, equivalentes aos art.s 1302.º, n.º 1, e 1187.º, al. e), do Código actual.
5. Se a pessoa em cujo nome a A. possuía faleceu e há muitos mais anos do que os necessários à aquisição por usucapião (cujo prazo máximo é ora de 20 anos) e, durante mais de vinte anos nunca apareceu qualquer seu representante sucessório, basta à A. iniciar uma nova posse em seu nome e interesse exclusivo e manifestar a mesma por actos materiais que o revelem e que possam ser apreendidos por terceiros interessados, como arrendar o prédio só em seu nome e arrecadar a totalidade das rendas como suas, para que seja verificável por qualquer terceiro interessado que está a exercer a posse sobre o prédio em seu nome e interesse exclusivos.
Termos em que,
Deve a decisão recorrida, ser revogada e substituída por outra que dê acolhimento às conclusões extractadas, COM O QUE SE FARÁ A HABITUAL JUSTIÇA!”
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
- A A. é uma associação reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, registada sob o n.º XX na Direcção dos Serviços de Identificação de Macau. (alínea A) dos factos assentes)
- O prédio urbano n.º XX da Rua de XX está descrito sob o n.º XX98, a fls. XX. do Livro XX na Conservatória do Registo Predial de Macau. (alínea B) dos factos assentes)
- E encontra-se inscrito sob o artigo n.º XX21 na Matriz Predial do Concelho de Macau, com o valor matricial de MOP$396.000,00 (trezentas e noventa e seis mil patacas). (alínea C) dos factos assentes)
- O prédio está cadastrado sob o n.º XXX005 na Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, tem a área de 73 m2 e as seguintes confrontações:
N - Rua de XX;
S - Rua do XX n.ºs XX (nº 2405);
E - Rua de XX, n.ºs XX (nº 1299);
W - Rua de XX, n.ºs XX (nº 1297). (alínea D) dos factos assentes)
- O direito de domínio directo do referido prédio é da Região Administrativa Especial de Macau, nos termos do contrato de aforamento formalizado por escritura de 15/06/1883 da Repartição da Junta da Fazenda, conforme definitivamente registado pela inscrição n.º XX86, a fls. XX do Livro XX na Conservatória do Registo Predial, sendo o foro anual devido pelo enfiteuta de MOP$2.131. (alínea E) dos factos assente
- O direito de domínio útil sobre o referido prédio está definitivamente registo na Conservatória do Registo Predial, nos seguintes termos:
• 70/100 a favor da R. B;
• 30/100 a favor da A., conforme inscrição nº XX67, a fls. XX. do Livro XX. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- O título de aquisição da A. é a escritura de 29/06/1939, lavrada a fls. XX do Livro da Notas para Escrituras Diversas n.º XX do Notário Público C, pelo qual, a R. B doou à A. a referida quota indivisa de 30/100 do prédio, acima identificado. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- Desde a data da doação o prédio n.º l6 da Rua de Miguel Aires foi entregue à A. e por ela administrado. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- A A. nos termos do acordado foi entregando setenta por cento dos rendimentos líquidos do prédio anualmente à doadora ou seu representante, que os levantava junto da sede da A.. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Há mais de trinta anos que ninguém comparece junto da A. para proceder ao levantamento dos referidos rendimentos. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- Desde aí a A. passou a comportar-se como única dona do prédio (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- Procedeu a obras de reparação e manutenção. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Pagou os encargos inerentes, como a contribuição predial devidos pela B, sempre que a Direcção dos Serviços de Finanças os cobrou. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)

- A A. decide toda e qualquer questão a ele relativa. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- Usando o mesmo como melhor lhe aprouver, nomeadamente, dando-o de arrendamento e arrecadando a totalidade das rendas como suas. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- E é por todos reconhecida como dona do prédio. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- Sem qualquer contestação ou oposição. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- Sem interrupção. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- Na convicção de não lesar o direito de outrém. (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
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III – O Direito
1. O caso
À autora, A, foi doado o domínio útil de 30/100 avos do prédio identificado nos autos, por B. Esta manteve os restantes 70/100 do domínio. A doação foi formalizada por escritura de 29/06/1939 e desde então a administração do prédio tem sido feita pela autora.
Pretende, agora, a autora que se lhe reconheça a titularidade do domínio útil sobre todo o prédio pela via da usucapião.
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2. A sentença
A 1ª instância decidiu que a autora demonstrou os actos materiais (corpus), bem com o animus possidendi invocado.
Contudo, considerou que, sendo ela titular de apenas 30/100 do domínio, a situação real era de compropriedade com B, titular dos restantes 70/100. E daí que, face ao art. 1302º, nº2, do CC, segundo o qual “O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”, concluiu que a posse dos 70/100 era uma posse precária e em nome de outrem.
Por tal motivo, considerou que a autora não demonstrou factos reveladores de uma oposição contra aquela co-titular para que pudesse adquirir a respectiva posse por inversão do título de posse, nos termos do art. 1187º do CC.
E por essa razão, julgou improcedente a acção.
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3. O recurso
Na presente impugnação, a autora/recorrente advoga que na situação dos autos não podia ter ocorrido inversão do título de posse. E isto pela simples razão de que, desde há mais de 30 anos, ninguém se arroga titular do direito do domínio útil para que à autora fosse, então, possível demonstrar a sua oposição com vista à inversão do título de posse. Porque ninguém compareceu durante todo este período de tempo para receber o rendimento dos 70/100, inexiste pessoa que encabece o título de compossuidor. Razão pela qual a partir dessa ocasião iniciou uma nova posse que a conduziu à aquisição pela via da usucapião, ora reclamada.
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4. Apreciando
Como resulta do art. 1302º, do Código Civil, em geral o uso de coisa comum não confere a quem o exerce posse exclusiva, nem melhor, nem superior, à que pertence ao comproprietário. Quer dizer, um tal uso, em princípio, não excede o âmbito da quota desse consorte. E porquê? Porque, tal como emerge do nº1 do mesmo artigo, o uso da coisa comum (o uso de toda a coisa) por qualquer dos comproprietários, salvo regulamento em contrário, é possível seja qualquer for a sua quota na contitularidade.
Todavia, o nº2 excepciona as situações em que esse uso pode ser feito em decorrência de uma inversão do título. Para que tal suceda, porém, é necessário demonstrar que o uso corresponde a uma posse como proprietário único ou como comproprietário de quota superior à que, segundo o título, lhe pertencia inicialmente.
Mas para haver essa inversão é suposto que os actos materiais praticados pelo interessado na aquisição por inversão do título de posse (cfr. art. 1187º, al. e), do CC) ilustrem uma oposição desse comproprietário contra o(s) outro(s). Na verdade, geralmente quando um comproprietário usa a quota do outro da coisa comum, fá-lo como possuidor precário. Mas se esse uso é feito a título de posse em nome próprio, isso significa que pretende adquirir contra o(s) outro(s) (por oposição ao outro) a parte que a este(s) pertence. Assim dispõe o art. 1190º, do CC.
Isto é, torna-se preciso que o interessado revele que a prática de actos sobre a coisa (toda ela ou sobre maior parte da que figura no título de constituição da compropriedade) não tem acontecido por mera tolerância do(s) restante(s) consorte(s), mas por via da inversão1.
Mas essa oposição deve ser manifestada de forma a que não fique dúvida de que a sua intenção é a de adquirir a quota em nome de quem a possuía. Essa intenção perante o outro, esse propósito de “oposição”, essa vontade de mostrar que quer adquirir, ou que quer ser titular do direito, deve ser manifestada junto do consorte tanto judicialmente, como extrajudicialmente. Só assim se pode falar de oposição eficaz.
A oposição tem que se traduzir, portanto, em actos positivos e inequívocos (materiais ou jurídicos) e categóricos de que o detentor, a partir do momento em que manifesta a oposição, está actuar como se fosse titular do direito (Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, pág. 98; Oliveira Ascensão, Reais, Coimbra Editora, 5ª edição, pág. 92; Na jurisprudência comparada, ver Ac. do STJ, de 8/11/2007, Proc. nº 07B3545).
E é por isso que, sem essa inversão, não é possível adquirir por usucapião (Na jurisprudência comparada, Ac. do STJ, de 24/06/2010, Proc. nº 106/06).
Dito isto, não são comparáveis as situações em que o comproprietário é vivo e contra quem é manifestada oposição ao seu direito e em que o comproprietário não é vivo, está ausente, ou é desconhecido o seu paradeiro, e contra quem não foi possível tentar a inversão do título de posse.
Queremos assim dizer que neste caso, se desde há longo tempo é ignorado se o comproprietário é vivo, o facto de ao autor não ser possível manifestar a referida oposição não releva para os termos da inversão. A inversão só é possível desde que haja actos que revelem o propósito inequívoco de inversão perante e contra o consorte. A impossibilidade de o fazer não pode equivaler à oposição, porque a lei não favorece a inversão por essa via.
A alegada “nova posse” iniciada por parte do consorte, tal como é invocada agora pelo recorrente nas alegações, não produz os pretendidos efeitos.
Valeria se tivesse havido perda da posse do primitivo comproprietário por uma das formas previstas no art. 1192º do CC, nomeadamente pela posse de outrem (que pode ser o consorte, sem necessidade de oposição) por mais de um ano (cit. art. 1192º, nº1, al. d)). Mas, nesse caso, seria necessário que a causa de pedir fosse arquitectada de modo a revelar em simultâneo:
1º - A perda de posse pelo outro comproprietário, em face de uma posse do autor durante um período superior a um ano (v. um ano e um dia); e
2º - A nova posse pelo consorte autor pelo tempo necessário à aquisição pela usucapião, contado a partir do termo daquele período (art. 1192º, nº2, do CC).
Não foi isso o que aqui aconteceu. Logo, não é possível dizer-se invertido o título de posse, tal como foi concluído na sentença impugnada.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
T.S.I. 23 de Maio de 2019

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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong



1 A inversão também se pode dar por acto de terceiro capaz de transferir a posse (v.g., o arrendatário que compra o prédio, não ao senhorio, mas a terceiro, o que faz com que ele passe a gozar de um título que lhe confere posse em nome próprio, apud P. Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, III, 2ª ed., pág. 31), mas não é dessa situação que aqui se cura.
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