Processo nº 453/2019 Data: 30.05.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime(s) de “burla”.
Crime de “falsificação de documento”.
Crime de “simulação de crime”.
Concurso real de crimes.
Crime continuado.
Burla como “modo de vida”.
Pena.
Cúmulo jurídico.
SUMÁRIO
1. No que toca aos crimes de “burla” e de “falsificação”, importa considerar que são distintos (e autónomos entre si) os bens jurídicos tutelados pelas normas do art. 211° e 244°, visando proteger aquele o “património” e, este, a “fé pública do documento” ou a “verdade intrínseca do documento enquanto tal”, pelo que, preenchendo a conduta do arguido os elementos típicos de ambos os crimes, deve o mesmo ser condenado pela sua prática em concurso (real) de crimes.
2. O conceito de “crime continuado” é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, sendo que a não verificação de qualquer um dos seus pressupostos impõe o seu afastamento.
O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
3. Para se considerar que o arguido faz da burla “modo de vida” necessário não é nem a “habitualidade” nem a “profissionalização”, bastando que se comprove a existência de uma série mínima de “burlas”, envolta numa intencionalidade que possa dar substância a um modo de vida tal como este conceito é entendido pelo comum dos cidadãos, cabendo também notar que a mesma não é incompatível com o exercício, pelo agente, de outra actividade, lícita ou não e remunerada ou não.
4. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art 65°, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.
5. Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente.
O relator,
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Processo nº 453/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em audiência colectiva no T.J.B. respondeu A, arguido com os restantes sinais dos autos, vindo a ser condenado pela prática como autor material e em concurso real de:
- 10 crimes de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. b) do C.P.M., nas penas parcelares de 2 anos e 3 meses, 2 anos e 6 meses e 2 anos e 9 meses de prisão;
- 5 crimes de “burla”, (com atenuação especial), p. e p. pelo art. 211°, n.° 4, al. b), 201°, n.° 1 e 67°, n.° 1, al. a) e b) do C.P.M., nas penas parcelares de 1 ano e 9 meses de prisão;
- 4 crimes de “falsificação de documento”, p. e p. pelo art. 244°, n.° 1, al. a) do C.P.M., na pena de 7 meses de prisão cada; e,
- 1 crime de “simulação de crime”, p. e p. pelo art. 330°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 5 meses de prisão;
- Em cúmulo jurídico, na pena única de 9 anos de prisão, assim como no pagamento das indemnizações discriminadas no Acórdão do T.J.B.; (cfr., fls. 1081 a 1111-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, vem o arguido recorrer, apresentando em sede da sua motivação de recurso as conclusões seguintes:
“1 - Entende o recorrente que, no que diz respeito aos factos praticados pelo recorrente sobre os ofendidos B, C, D e E, não devia ter sido condenado, em simultâneo e concomitantemente, pelos crimes de burla qualificada e de falsificação de documento, sob pena de violação do princípio de ne bis in idem.
2 - A falsificação dos documentos em causa é meio necessário para a prática dos crimes de burla sobre esses mesmos ofendidos;
3 - Considerando que o crime de falsificação de documento tem uma punição mais leve, é absorvido pelo crime de burla, cuja punição é relativamente mais severa, razão pela qual, os quatro crimes de falsificação de documento pelos quais o recorrente foi condenado não são autonomamente puníveis.
4 - Agindo diversamente, o acórdão recorrido, nessa parte violou a lei, mormente, as normas contidas nos artigos 1°, 211° n.° 4 alínea b) e 244° n.° 1 alínea a) do Código Penal de Macau.
5 - Nos termos da lei penal, quem faz da burla modo de vida, tem como consequência jurídico-penal uma punição bem mais severa, sendo, pois, aquela, uma circunstância que qualifica o crime de burla. O mesmo se verifica em relação ao crime de furto.
6 - Considerando que os factos criminosos foram cometidos durante um período de tempo relativamente curto, num lapso de pouco mais de 10 meses (de 11/2016 a 9/2017), a motivação por detrás do seu empreendimento criminoso – movido pelo desejo de arranjar dinheiro para ajudar pagar a dívida de jogo do seu pai que estava sendo incomodado diariamente pelos usurantes –, e o facto de ter emprego estável e lícito naquele mesmo período de tempo,
7 - Dificilmente é de concluir que estejamos perante um quadro de circunstancialismo fáctico coadunável com o perfil de um burlão profissional.
8 - A circunstância qualificativa em questão tem subjacentes a demonstração da manutenção de um padrão de vida, uma ideia de profissionalização, de dependência e reiteração de um modo de viver patente em todas as actuações típicas ou uma ideia de exclusividade de vida e de unicidade do meio de subsistência.
9 - Não ocorre, no caso, um substracto factual que permita o preenchimento do conceito de modo de vida.
10 - Razão pela qual o acórdão recorrido, nessa parte, está eivado do vício de violação de lei – a norma contida no artigo 211 ° n.° 4 alínea b) do Código Penal.
11 - Concomitantemente, pelos mesmos fundamentos supra, a decisão recorrida, nessa mesma parte, encontra-se eivada do vício de erro notório na apreciação da prova, consignado na alínea c) do n.° 2 do artigo 400° do CPPM.
12 - Os factos assentes tornam patentes ao Tribunal “a quo” a conclusão necessária de que estamos perante o cometimento de 1 crime continuado de burla, já que estão preenchidos os requisitos enunciados no n.° 2 do artigo 29° do Código Penal.
12 - Com efeito, constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
13 - Agindo diversamente, o acórdão recorrido, nessa parte em que não condenou o recorrente pela prática de 1 crime continuado de burla, violou a lei, a norma constante do n.° 2 do artigo 29° do Código Penal de Macau.
14 - Na óptica do recorrente, as penas parcelares e a global resultante da operação de cúmulo jurídico são severas em demasia e desproporcionais.
15 - No que diz respeito às penas parcelares aplicadas aos 10 crimes de burla, com excepção da penas especialmente atenuadas aplicadas aos 5 crimes de burla, elas são severas em demasia.
16 - Considerando a situação de primo-delinquência, a confissão integral e sem reserva assumida, e o pagamento das indemnizações a 5 ofendidos, e,
17 - A motivação por detrás dos seus crimes – dinheiro para pagamento da dívida de jogo contraída pelo pai que estava sendo incomodado pelos usurantes;
18 - Deviam merecer do Tribunal “a quo” uma maior sensibilidade e benevolência na fixação das respectivas pelas parcelares, reduzindo as penas parcelares de prisão de 2 anos 9 meses para 2 anos 3 meses, as de 2 anos 6 meses para 2 anos 2 meses, e as de 2 anos 3 meses para apenas 2 anos, cada.
19 - Relativamente aos 4 crimes de falsificação de documento, as penas parcelares de 7 meses de prisão são excessivas, deviam ser reduzidas para 6 meses de prisão cada.
20 - Em cúmulo jurídico, deve ser aplicada ao recorrente uma pena global única de 7 anos 6 meses de prisão.
21 - Agindo diversamente, o acórdão recorrido, nessa parte, violou a lei, as normas contidas nos artigos 40°, n.os 1 e 2, e 65°, n.os 1, 2, alíneas c), d) e e), todos do Código Penal de Macau”; (cfr., fls. 1117 a 1127).
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Respondendo, pugna o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 1129 a 1131-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.1116 a 1127 dos autos, o recorrente solicitou sucessivamente a absolvição dos quatro crimes de falsificação de documento, e a convolação dos crimes de burlas para um crime continua deste crime e a declaração da inexistência in casu do “modo de vida”, ou redução tanto das penas parcelares como da única.
Antes de mais, subscrevemos as concisas explanações do ilustre Colega na douta Resposta (cfl. fls.1129 a 1131 verso).
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1. Da arguição de concurso aparente
O recorrente arrogou que a condenação dele na prática dos quatro crimes de falsificação infringia o “princípio de ne bis in idem” bem como os preceitos nos arts.211º e 244º do Código Penal, em virtude de que tais falsificações são meios necessários para a prática dos correspondentes quatro crimes de burla e, assim, se verificarem o concurso aparentes.
Repare-se que a doutrina e jurisprudência vêm sedimentando, de molde praticamente unânime, que o bem jurídico subjacente ao crime de burla é substancialmente distinto do tutelado pelo crime de falsificação, e o art.211º evidencia que os seus n.º3 e n.º4 não referem à falsificação.
À luz da regra de experiência, podemos colher que a falsificação de documento não é elemento componente ou imprescindível da “astúcia” contemplada no n.º1 do art.211º supra, por sua vez, o êxito do recorrente na prática dos remanescentes crimes de burla mostra indubitavelmente o descabimento da conclusão 2 da Motivação em exame.
Tudo isto cauciona-nos a concluir que o cometimento do crime de falsificação não faz parte do crime de burla, nem é forma característica ou típica deste crime, sendo assim e de acordo com a douta doutrina (Teresa Beleza: Direito Penal, 1º volume, 2ª ed. 1984, p.532 e ss.), endentemos com tranquilidade que não há relação de consumpção entre estes dois crimes, pese embora in casu as falsificações sejam meio, e as burlas constituam fim.
Em esteira da doutrina e jurisprudência pertinentes (cfr. Acórdão do Venerando TUI no Processo n.º42/2016, Manuel Lela-Henrique: Anotação e Comentário ao Código Penal de Macau, Vol. I, CFJJ 2018, pp.383 e ss.), temos por certeza de que não existe relação de especialidade nem a de subsidiariedade entre os mesmos dois crimes.
Chegando aqui, não podemos deixar de entender que no vertente caso, os quatro crimes de falsificação imputados ao recorrente não são consumidos ou absorvidos pelos correspondentes crimes de burla, deste modo, não há concurso aparente, mas sim concurso real e efectivo.
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2. Da invocação do crime continuado e da inexistência do modo de vida
O recorrente assacou ainda a ofensa do preceito na alínea b) do n.º4 do art.211º do Código Penal, bem como o erro notório na apreciação de prova e a violação do disposto no n.º2 do art.29º deste Código, pugnando pela condenação num único crime de burla continuado e simultaneamente pela expurgação da circunstância agravante de “modo de vida”.
2.1. Tomando como ponto de partida a disposição no n.º2 do art.29º do CPM, o Alto TUI assevera reiteradamente que (vide. Acórdãos tirados nos Processos n.º78/2012, n.º57/2013 e n.º81/2014): O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito. E afirma que “O fundamento do crime continuado radica na considerável diminuição da culpa do agente, determinada por uma actuação no quadro de uma mesma solicitação exterior.” (cfr. Acórdão no Processo n.º25/2013)
Para os devidos efeitos, importa sobretudo ter presente a prudente orientação de que “Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior.” (vide. Acórdãos nos Processos n.º57/2013 e n.º81/2014)
Perfilhando essas iluminativas jurisprudências, acompanhamos a judiciosa e proficiente análise do Tribunal a quo que apontou: “在本案中,根據已證明的事實可見,從2017年2月至2017年9月期間,十五次作出欺騙合共十五名被害人金錢的行為,其中四次嫌犯透過假冒他人的簽名,並利用載有假冒他人的簽名的文件欺騙四名被害人金錢。嫌犯每次作出有關詐騙及偽造文件的行為時,都是針對不同的被害人作出,犯罪的決意都不同,故沒有任何一個外在誘因驅使下,引致嫌犯不得已地進行續後的多次犯罪。因此,本院認為不存在嫌犯的過錯因外在情況而變得相當減輕,故不符合構成連續犯罪的前提。”
Com efeito, os factos dados por provados pelo Tribunal a quo cujas exactidão e firmeza não foram impugnadas pelo recorrente patenteiam inequivocamente que as armadilhas foram planeadas propositadamente por ele tendo em vista a particularidade de cada um dos ofendidos, portanto variavam caso a caso, daí flui que não havia nenhuma “situação exterior” capaz de diminuir consideravelmente a culpa do recorrente.
2.2. Interessa ter na mente que “O conceito de "modo de vida" não deve confundir-se com o de "habitualidade", conceito anteriormente adoptado e também não significa exclusividade na obtenção de proventos. Tem exactamente que ver com a forma como se desenvolve a actividade, tal como se de emprego, pluri-emprego ou emprego parcial se tratasse. Afasta-se a ocasionalidade, mas adere-se a uma ideia de carreira criminosa, ocupação de vida direccionada a esse fim.” (vide Acórdão do TSI no Processo n.º280/2006)
Bem, a circunstância de “modo de vida” desdobra-se em duas vertentes, exigindo-se normalmente para a sua verificação, a efectivação de uma série mínima de actos da mesma natureza que, com alguma estabilidade, sejam a fonte dos proventos necessários à vida em comunidade do seu autor, seja este um modo exclusivo ou parcial de ganhar a vida (vide Acórdão do TSI no Processo n.º219/2007). De outro lado, afigura-se-nos inteligente a jurisprudência consolidada que inculca (vide. Acórdãos do TSI nos Procs. n.º193/2003 e n.º231/2004): Para que se verifique a circunstância qualificativa do artº211º, nº4, al.b) – “modo de vida” – necessário não é nem a “habitualidade” nem a “profissionalização”. Basta que se comprove a existência de uma série mínima de “burlas”, envolta numa intencionalidade que possa dar substância a um modo de vida tal como este conceito é entendido pelo comum dos cidadãos.
De qualquer modo, ganha firmeza a orientação jurisprudencial que afirma: A prática do crime de burla, previsto e punível pela alínea b) do n.º4 do art.211.º do Código Penal (o agente fazer da burla modo de vida) não é incompatível com o exercício, pelo agente, de outra actividade, lícita ou não, remunerada ou não. (vide Acórdão do TUI no Processo n.º40/2011)
No caso sub judice, o douto Tribunal a quo deu como provado que desde o início de 2016, o recorrente deixou de ter emprego e rendimento estáveis, e no período de Fevereiro a Setembro de 2017 ele tinha praticado quinze (15) burlas, conseguindo obter para ele próprio o enriquecimento ilegítimo e, deste modo, causar prejuízo patrimonial aos 15 ofendidos.
Ora bem, tudo isto aconselha-nos a colher que o enriquecimento patrimonial derivado das supramencionadas burlas constituía a principal fonte do rendimento do recorrente, por isso, sufragamos, mais uma vez, a cautelosa e acertada conclusão extraída pelo Tribunal a quo, no sentido de que naquele período, o recorrente fazia da burla modo de vida.
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3. Do pedido da redução das penas parcelares e da única
Em sede de sustentar o seu pedido da redução das penas parcelares e única, o recorrente invocou as disposições nos arts.40º e 65º do Código Penal, e alegando ser delinquente primário, a confissão integral e ainda o motivo por detrás das suas condutas criminosas.
Repare-se que aferidas à luz dos parâmetros prescritos nos arts.65º e 66º do Código Penal, nenhuma das circunstâncias arrogadas pelo recorrente se dispõe da virtude de atenuação especial, e no nosso prisma, não se descortina, nos autos, circunstâncias de atenuação especial.
Bem, a nossa leitura do douto Acórdão em escrutínio deixa-nos a firme impressão de que o douto Tribunal a quo valorou, adequada e equilibradamente, todas as circunstâncias favoráveis ao recorrente, sobretudo as dotadas da força legal de atenuação especial da pena.
Nesta linha de perspectiva, e ao abrigo das molduras penais, não podemos deixar de concluir que as penas parcelares e a única são não só benevolentes, mas também necessárias para a realização das finalidades da punição, por isso fica descabido o referido pedido da redução.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 1140 a 1142-v).
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Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 1092 a 1103, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Resulta do que se deixou relatado que vem o arguido recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou nos termos já explicitados, considerando, se bem ajuizamos, que não devia ser condenado como autor dos crimes de “burla” e de “falsificação” em “concurso real”, que a sua conduta devia (apenas) integrar à prática de um (só) “crime continuado” de “burla”, que verificada não está a “circunstância qualificativa” de ter cometido o(s) crime(s) de burla “como modo de vida”, pedindo, também, a “redução das penas aplicadas”.
Identificadas que assim (parece que) ficam as “questões” colocadas e a tratar, vejamos.
–– Antes de mais, e seja como for, não se deixa de consignar que no “ponto 11° e 12°” das suas “conclusões”, refere-se o recorrente ao vício de “erro notório na apreciação da prova”.
Porém, como se apresenta evidente, e para além de nada alegar a tal respeito, nenhum motivo existe para se dar tal vício por verificado, já que, no fundo, o verdadeiro inconformismo do recorrente situa-se ao nível da “qualificação jurídica”, não vislumbrando também nós qualquer desrespeito a qualquer regra sobre as provas de valor tarifado, regra de experiência e legis artis; (cfr., v.g., sobre o vício em questão, o Ac. deste T.S.I. de 30.05.2019, Proc. n.° 350/2019).
–– Dito isto, comecemos pela questão de saber se os crimes de “burla” e “falsificação” estão numa relação de “concurso real”.
Ora, como por várias vezes já decidiu este T.S.I.:
“No que toca aos crimes de “burla” e de “falsificação”, importa considerar que, são distintos (e autónomos entre si) os bens jurídicos tutelados pelas normas do artº 211º e 244º, visando proteger aquele o “património” e, este, a “fé pública do documento” ou a “verdade intrínseca do documento enquanto tal”, pelo que, preenchendo a conduta do arguido os elementos típicos de ambos os crimes, deve o mesmo ser condenado pela sua prática em concurso (real) de crimes”; (cfr., v.g., o Ac. de 05.06.2003, Proc. n.° 76/2003, de 13.10.2011, Proc. n.° 534/2011 e de 23.11.2017, Proc. n.° 810/2017).
Motivos não havendo para não se manter o assim entendido, visto está que há que julgar improcedente esta parte do pretendido com o recurso.
Continuemos.
–– Nos termos do art. 29° do C.P.M.:
“1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
E como já tivemos oportunidade de consignar:
“A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores”; (cfr. v.g., o Ac. da Rel. de Porto de 25.07.1986, in B.M.J. 358°-267, aqui citado como mera referência, e os recentes Acs. do ora relator de 28.09.2017, Proc. n.° 638/2017, de 23.11.2017, Proc. n.° 810/2017 e de 12.07.2018, Proc. n.° 534/2018).
Do mesmo modo, Maia Gonçalves, (referindo-se a idêntico artigo do C.P. Português), considera que com o preceito em questão – o art. 30° – se perfilha “o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime. (...) É claro que embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma dolosa ou culposa. Isto se deduz do uso do advérbio efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa”; (vd., “C.P.P. Anotado”, 8ª ed., pág. 268).
“Posto que para que uma conduta seja considerada delituosa se torna necessário que para além de antijurídica seja, igualmente, culposa, a culpa apresenta-se – assim – como elemento limite da unidade da infracção, pois que sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes o mesmo tipo legal de crime se torna aplicável, de onde se nos depare uma pluralidade de infracções.
Assente, então, que sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa”.
Isto é, o critério teleológico (e não naturalístico) adoptado pelo legislador na destrinça entre unidade e pluralidade de infracções, pressupõe o juízo de censurabilidade, pelo que haverá tantas infracções quantas as vezes que a conduta que o preenche se tornar reprovável.
No mesmo sentido, e em relação ao Código de 1886 afirmava já E. Correia que:
“Se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídicos e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções. Mas porque a acção, além de antijurídica, tem de ser culposa, pode acontecer que uma actividade subsumível a um mesmo tipo mereça vários juízos de censura. Tal sucederá no caso de à dita actividade corresponderem várias resoluções, no sentido de determinações de vontade, de realização do projecto criminoso”, e que “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime e às quais presidiu pluralidade de resoluções devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam considerável diminuição da culpa. Tal sucederá, quando a repetição da actividade for facilitada, de modo considerável, por uma disposição exterior das coisas para o facto”; (cfr., “Direito Criminal”, Vol. 2, págs. 201, 202, 209 e 210, e ainda em “Unidade e Pluralidade de Infracções”, pág. 338).
Por sua vez, e tratando mais especificamente da matéria do “crime continuado”, também já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar que:
“O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 28.09.2017, Proc. n.° 638/2017, de 12.04.2018, Proc. n.° 166/2018 e de 11.10.2018, Proc. n.° 716/2018).
Também por douto Acórdão de 24.09.2014, Proc. n.° 81/2014, (e com abundante doutrina sobre a questão), afirmou o Vdo T.U.I. que:
“O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, e que,
“Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”.
Aqui chegados, atenta a factualidade dada como provada (que nenhuma censura merece), e como – bem – se salienta no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto, verificados não estão os necessários pressupostos legais para se poder considerar existir uma “continuação criminosa” na conduta do arguido, ora recorrente.
De facto, não se vislumbra nenhuma “situação exterior” que diminua, “consideravelmente”, a sua culpa, sendo caso para se dizer que da referida factualidade dada como provada constatam-se antes “novas decisões” e “resoluções”, com um “renovar da execução do plano” e “esforço” do arguido para “convencer” os ofendidos e conseguir levar a cabo os seus intentos de enriquecer à custa do “erro” e do património de terceiros.
Assim, há que julgar igualmente improcedente o recurso na parte em questão.
–– Diz também o arguido que verificada não devia estar a “circunstância qualificativa” prevista no art. 211°, n.° 4, al. b) do C.P.M., ou seja, a de fazer da prática dos crimes de burla “modo de vida”.
Porém, também aqui, não se vê que tenha o arguido razão.
Com efeito, firme e pacífico é o entendimento de que para que se verifique a dita “circunstância”, necessário não é nem a “habitualidade” nem a “profissionalização”, bastando que se comprove a existência de uma série mínima de “burlas”, envolta numa intencionalidade que possa dar substância a um modo de vida tal como este conceito é entendido pelo comum dos cidadãos, cabendo também notar que a mesma não é incompatível com o exercício, pelo agente, de outra actividade, lícita ou não e remunerada ou não; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 07.10.2004, Proc. n.° 231/2004, de 16.01.2014, Proc. n.° 759/2013 e de 11.04.2019, Proc. n.° 289/2019, e os do Vdo T.U.I. de 10.10.2007, Proc. n.° 38/2007, de 26.10.2011, Proc. n.° 40/2011 e o de 22.05.2013, Proc. n.° 26/2013).
Ora, no caso dos autos, ponderando no “número de crimes de burla cometidos”, (15), e no “período de tempo” em que ocorreram, cremos que evidente é a referida “intencionalidade que dá substância a um estilo de vida”, nenhuma censura merecendo assim o decidido, sendo, igualmente, de improceder, o recurso na parte em questão.
–– Quanto à(s) “pena(s)”.
Nos termos do art. 64° do C.P.M.:
“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Ao crime de “simulação de crime” cabe a pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias; (cfr., art. 330°, n.° 1 do C.P.M.).
Ponderando na conduta provada do ora arguido, e nas fortes necessidades de prevenção, claro se nos apresenta que inviável é uma “pena de multa” pelo dito crime de “simulação”, evidente se nos afigurando também que nenhuma censura merecem as penas parcelares e únicas fixadas.
Vejamos.
Nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Por sua vez, e, em sede de determinação da pena, tem este T.S.I. entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 17.01.2019, Proc. n.° 1077/2018, de 21.02.2019, Proc. n.° 5/2019 e de 11.04.2019, Proc. n.° 289/2019).
Cabe também referir que importa ter presente que:
“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 25.10.2018, Proc. n.° 570/2018, de 17.01.2019, Proc. n.° 1138/2018 e de 28.03.2019, Proc. n.° 133/2019).
No mesmo sentido decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).
E, como recentemente se tem igualmente decidido:
“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).
“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto da pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).
E, dito isto, e atentas as molduras penais aplicáveis e as necessidades de prevenção criminal, claro se nos apresenta que improcedente é a peticionada “redução” das penas (parcelares) que ao recorrente foram aplicadas, pois que na sua fixação, respeitou, integralmente, o Tribunal a quo, todos os comandos legais que regulam esta matéria, a saber, os art°s 40° e 65° do C.P.M..
–– Quanto à “pena única” resultado do “cúmulo jurídico”, há que atentar no estatuído no art. 71° do C.P.M., que dispõe que:
“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”; (sub. nosso).
Abordando idêntica questão à ora em apreciação, e tendo em consideração o teor do n.° 1 do transcrito art. 71°, teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que:
“Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 08.03.2018, Proc. n.° 61/2018, de 11.10.2018, Proc. n.° 716/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 1160/2018).
Atento ao que até aqui se deixou exposto, (e que é de manter), e certo sendo que, in casu, em causa está uma moldura penal com um “limite mínimo de 2 anos e 9 meses”, e um “limite máximo de 32 anos de prisão”, ou melhor, por força do art. 41° do C.P.M., 30 anos, cremos que censura também não merece a pena única de 9 anos de prisão fixada que, em face da forte necessidade de prevenção criminal especial e geral que, no caso, se impõe, de forma alguma pode ser considerada inflaccionada.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o arguido a taxa de justiça de 10 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 30 de Maio de 2019
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa
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