Processo n.º 5/2015. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Secretário para os Transportes e Obras Públicas.
Assunto: Recurso contencioso de anulação. Sentença. Factos não provados. Especificação dos meios de prova. Fundamentos decisivos para a convicção do julgador. Factos provados. Local da sua inserção. Planta cadastral. Prova plena. Princípios da igualdade e da proporcionalidade. Erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
Data da Sessão: 26 de Junho de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – A sentença, no recurso contencioso de anulação, não indica os factos não provados nem especifica os meios de prova usados para considerar os factos provados, nem os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.
II - Desde que o Tribunal tenha poder de cognição em matéria de facto e tenha seguido o procedimento para julgamento dessa matéria, não existe qualquer violação de lei se um facto não consta da descrição dos factos provados mas está colocado noutra parte da fundamentação da sentença.
III- Uma planta cadastral, emitida pelo competente departamento público, não constitui prova plena da delimitação dos prédios constantes da mesma e da sua confrontação com as vias públicas.
IV - A intervenção do juiz na apreciação do respeito dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, os violem.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 5 de Julho de 2011, que lhe indeferiu requerimento para a renovação da licença de ocupação provisória da Ponte-cais n.º XX, de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2011 e determinou a sua notificação para, em 30 dias, remover todos os objectos aí existentes.
Por acórdão de 25 de Setembro de 2014, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformado, interpõe A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
- Todos os factos alegados pelo ora Recorrente no Recurso Contencioso, todos os factos alegados pela entidade recorrida, não foram objecto de decisão por parte do Douto Acórdão recorrido, não se pronunciando o mesmo especificadamente sobre os factos que considerasse provados e mesmo aqueles que considerasse como não provados.
- Nenhum dos factos constantes do Extracto integral da proposta n.º XX/XXXXXXX/2011 da Capitania dos Portos foram dados pelo Douto Tribunal a quo como provados, limitando-se o mesmo a reproduzir integralmente o seu conteúdo, dando apenas como assente a sua elaboração.
- A partir daí, com excepção dos factos relativos às circunstâncias em que o ora Recorrente tem vindo a ocupar a ponte-cais n.º XX, o Douto Acórdão recorrido não se pronunciou sobre nenhum facto, documento, ou qualquer outra matéria probatória carreada para os autos desde o momento da interposição do Recurso Contencioso para o Tribunal recorrido, da iniciativa do aqui Recorrente.
- As decisões relativas à violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e violação de lei contidas no Acórdão recorrido sustentam-se em factos que em momento algum foram especificados como matéria assente, provada ou não provada.
- Na sentença proferida deveria o Tribunal a quo, em primeira linha, ter-se pronunciado sobre aquela matéria de facto que justificasse as decisões que tomou, dando-a como provada ou não provada, em estrita obediência aos mais elementares princípios do nosso Processo Civil, mormente, o princípio da motivação das decisões judiciais.
- O Douto Acórdão recorrido é nulo por absoluta falta de fundamentação de facto, nos termos previstos no art. 76º do CPAC, e arts. 108º, nº 1, 562º, nº 2 e 3, e art. 571º, nº 1, al. b) todos do CPC, aplicáveis ex vi art. 1º do CPAC.
- O Douto Acórdão recorrido não procede, em momento algum, à apreciação da prova levada aos autos pelas partes intervenientes, nem tão pouco faz o devido exame crítico dessas mesmas provas, tal como lhe era imposto.
- Ao Tribunal impõe-se o dever de fundamentar a decisão de facto que entenda dever proferir, para o que deverá expor os motivos que o levaram a considerar aquelas provas como idóneas e relevantes, eventualmente em detrimento de outras, bem como indicar os critérios utilizados na apreciação daquelas provas e o substrato racional que conduziu à convicção concretamente formada.
- Estamos perante uma decisão proferida em 1a Instância, à qual se impõe todas as regras previstas na lei processual civil para estas decisões, designadamente, aquelas que respeitam ao julgamento da matéria de facto previstas no art. 556º do CPC, aplicável ex vi art. 1º do CPAC.
- O Acórdão recorrido padece assim de nulidade nos termos previstos no art. 76º do CPAC, e arts 556º, nº 2, 562º, nº 2 e 3, e 571º, nº 1, al. b) todos do CPC, aplicáveis ex vi art. 1º do CPAC, devendo este Venerando Tribunal mandar baixar o processo, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, nos termos previstos no art. 651º, nº 2 do CPC.
- Caso não entendam V. Exas. dar provimento à verificação das nulidades invocadas, sempre se diga que a decisão em recurso padece de erro de julgamento.
- Em sede de Recurso contencioso, o ora Recorrente aponta ao acto administrativo recorrido o vício de violação de lei por violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade.
- Não se alcançam as razões porque em sede de fundamentação de direito o Douto Tribunal assenta a sua decisão no alegado facto de que a ponte cais n.º XX se encontra numa zona onde a via é mais estreita do que aquela em que estão as demais pontes-cais (com excepção da XX); ou porque tece uma série de considerações de facto no que respeita à alegada proporcionalidade, necessidade e justiça do Despacho recorrido, quando, da matéria dada como assente no Acórdão Recorrido, não resulta a verificação de nenhum desses factos.
- Na verdade, os factos tidos em conta pelo Douto Tribunal recorrido na apreciação desta matéria - violação do princípio da igualdade e proporcionalidade - não poderiam conduzir à decisão que foi lavrada.
- Da planta cadastral junta com a contestação da entidade recorrida resulta que a ponte-cais n.º XX não se encontra num ponto da via diferente daquele em que se encontram, por exemplo, as pontes-cais n.º XX e XX, está perfeitamente alinhada com a ponte XX, e a largura da via onde se encontram instaladas as pontes-cais n.º XX e XX é exactamente a mesma do troço da via onde se encontra a ponte-cais XX, sendo ademais visível de tal planta que as pontes-cais XX e XX não se encontram na mesma situação.
- A planta cadastral emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro, faz prova plena das informações que atesta, ao contrário de informações/afirmações veiculadas/constantes de quaisquer despachos da DSAT ou da Capitania dos Portos que façam parte do processo administrativo e que não tenham sido objecto de prova adicional no âmbito dos presentes autos e que ademais estão em patente contradição com aquele elemento de prova.
- Não resulta de nenhum elemento junto aos autos e nem sequer tal foi abordado pela entidade administrativa ao longo de todo o procedimento, que a ocupação da ponte-cais n.º XX a curto e médio prazo impede o andamento do projecto de construção da via de circulação de transportes públicos em causa, ou se a imediata desocupação da ponte cais n.º XX se reputa essencial para efeitos de realização do estudo de impacte ambiental, ou para efeitos de lançamento do concurso público para construção da via, ou sua adjudicação.
- E assim sendo, do facto de não se ter apurado a urgência e manifesta necessidade de se proceder de imediato à desocupação da ponte-cais n.º XX, o douto Tribunal a quo não poderia nunca concluir que ao acto administrativo em crise se reputa proporcional, justo e razoável.
- Pelo menos no curto e médio prazo, os interesses do ora Recorrente seriam nitidamente e injustificadamente preteridos em nome de um interesse público que não se reputa actual - o dos utentes da futura e alegada via exclusiva para autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra.
- Ao decidir como decidiu, Douto Acórdão incorreu em manifesto erro de julgamento, aceitando o desrespeito dos mais elementares princípios fundamentais do direito que regem a actividade da Administração Pública, como sendo o princípio da igualdade, proporcionalidade, justiça e razoabilidade, previstos, respectivamente, nos artigos 5.º, 7.º do CPA e 21.º, n.º1 alínea d) do CPAC.
O Ex.mo Procurador-Adjunto emitiu douto parecer em que se pronuncia pela procedência do vício de omissão de pronúncia do acórdão recorrido.
II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
- O recorrente é titular da licença de ocupação temporária nº XXX/2009, referente à Ponte-cais n.º XX do Porto Interior, com validade de um ano compreendido entre 01JAN2010 e 31DEZ2010;
- A partir de 1993, ao ora recorrente ia sendo sucessivamente emitida e renovada a licença de ocupação temporária, com validade de um ano, para a utilização da Ponte-Cais nº XX do Porto Interior;
- Em 14OUT2010, o recorrente formulou junto da então Capitania dos Portos o pedido de renovação da licença;
- Por despacho datado de 05JUL2011 do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, exarado na informação nº XX/XXXX-XXX/2011, ora constante do processo instrutor e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, foi indeferido pedido da licença de ocupação temporária para a utilização da Ponte-Cais nº XX do Porto Interior;
- O mesmo despacho mais determina-lhe a retirada no prazo de 30 dias, dos objectos desmontáveis da ponte-cais e a devolução da ponte-cais ao Governo da RAEM, nos termos da informação supra identificada.
- A informação nº XX/XXXX-XXX/2011 é do seguinte teor:
Com referência ao pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior, apresenta-se o relatório, designadamente:
Parte I Relatório
1. Foi emitida a A, em 1993, a licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior. A licença é válida pelo período de um ano e é renovável cada ano.
A Capitania dos Portos emitiu em Dezembro de 2009 a A a última licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior (n.º XXX/2009), cujas informações se apresentam, designadamente:
- O titular da licença de ocupação a título precário: A;
- Área ocupada: 397,00 metros quadrados;
- Actividades autorizadas pela licença: actividades de comércio e serviços;
- Período de validade: de 1 de Janeiro de 2010 a 31 de Dezembro de 2010.
(vide o anexo 1 e o anexo 2)
A ponte-cais n.º XX é composta por um edifício de dois andares e uma plataforma de madeira. O rés-do-chão e o 2º andar do edifício são actualmente desocupados. Geralmente, não se encontram na ponte-cais embarcações.
2. O titular da licença de ocupação a título precário A, através do seu procurador, B, requereu, em 14 de Outubro de 2010, à Capitania dos Portos, a renovação da licença de ocupação a título precário do ano 2011 da ponte-cais n.º XX do Porto Interior. (vide o anexo 3)
3. Tal como sugeriu o ponto 6 do relatório n.º XXXX/XXXXX/2010 de 15 de Dezembro de 2010 da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego: notifica-se aos respectivos serviços competentes a concepção dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra, e sugere-se que os respectivos serviços reservassem os espaços das pontes-cais n.ºs XX e XX do Porto Interior para via pública, e que o desenvolvimento e plano dos edifícios na vizinhança tivessem de ter em conta a necessidade de reservar espaços para o trânsito. (vide o anexo 4)
4. Depois, em 25 de Fevereiro de 2011, realizou-se, entre os representantes da Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro e Capitania dos Portos, uma discussão sobre as questões na concepção dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra que têm relação com as pontes-cais n.ºs XX e XX do Porto Interior. Por estas duas pontes-cais serem bens do domínio público sem registos prediais, e serem ocupadas, a título precário, pelo titular da licença, entende-se viável que sejam reservadas as mesmas a fim da via pública.
5. A Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego emitiu em 10 de Março de 2011 o ofício n.º XXXXXXX/XXXX/XXX/2011 à Capitania dos Portos, cujo ponto 5 referiu que, considerando a partir do ponto de vista do trânsito integral de Macau e para coordenar a execução dos planos recentes e a longo prazo, é necessário e viável reservar as pontes-cais n.ºs XX e XX do Porto Interior para via pública. O ofício também sugeriu que a Capitania dos Portos adoptasse respectivas medidas para a cooperação da realização do respectivo plano. (vide o anexo 5)
6. Para o efeito de reservar a ponte-cais n.º XX do Porto Interior para via pública, não se pode deferir o pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior. Além disse, deve o antigo titular da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior, isto é, A, proceder à demolição dos objectos amovíveis na ponte-cais, de forma à restituição desta à posse da Região Administrativa Especial de Macau.
Tendo em conta a especialidade deste caso, a Capitania dos Portos procedeu à audiência escrita de A através do ofício n.º XXXXXXXXXXXX de 31 de Março de 2011. Na respectiva audiência escrita, foi indicado que:
(1) A ponte-cais n.º XX do Porto Interior trata-se do bem do domínio público;
(2) O interessado não tem o direito de superfície sobre a ponte-cais n.º XX do Porto Interior, por isso, ele não pode sustentar, para o Governo da RAEM, a posse do direito de construção nesta ponte-cais;
(3) O interessado não teria direito a indemnização se a ponte-cais n.º XX do Porto Interior for devolvida ao Governo da RAEM após a caducidade da licença de ocupação a título precário.
(vide o anexo 6)
7. O Sr. Advogado C da D Advogados apresentou, em 15 de Abril de 2011 e em representação de A, o parecer escrito para a Capitania dos Portos. (vide o anexo 7)
Parte II Análise
8. Foi emitida a A, em 1993, a licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior.
A relação jurídica da ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior por A foi regulada pela Lei n.º 6/86/M de 26 de Julho (Lei do domínio público hídrico) que já entrou em vigor naquele tempo.
De acordo com o anexo 2 da Lei n.º 1/1999 (Lei de Reunificação), a Lei n.º 6/86/M não é adoptada como lei da Região Administrativa Especial de Macau. Todavia, enquanto não for elaborada nova legislação, pode a Região Administrativa Especial de Macau tratar as questões nela reguladas de acordo com os princípios contidos na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, tendo por referência as práticas anteriores.
9. Não se encontra actualmente nenhum documento que comprove que a ponte-cais n.º XX do Porto Interior tinha sido uma propriedade privada ou possuída particularmente em 1 de Julho de 1870, nem documento do então Governo Português de Macau que comprovasse, de acordo com a Lei n.º 6/86/M, que a ponte-cais n.º XX do Porto Interior tinha sido uma propriedade privada.
Por outro lado, o então Governo Português de Macau e o presente Governo da RAEM têm emitido licenças de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior.
Nos termos da Portaria n.º 122/89/M de 31 de Julho, a ponte-cais n.º XX do Porto Interior localiza-se no domínio público hídrico.
Com base nos factos acima referidos, considera-se bem do domínio público a ponte-cais n.º XX do Porto Interior.
10. Nos termos do art.º 7.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.
Por ser bem do domínio público a ponte-cais n.º XX do Porto Interior, esta é propriedade do Estado. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão.
11. A Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego referiu no relatório n.º XXXX/XXXXX/2010 de 15 de Dezembro de 2010 a concepção dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra, e sugeriu que os respectivos serviços reservassem os espaços das pontes-cais n.ºs XX e XX do Porto Interior para via pública, e que o desenvolvimento e plano dos edifícios na vizinhança tivessem de ter em conta a necessidade de reservar espaços para o trânsito.
12. No seu ofício n.º XXXXXXX/XXXX/XXX/2011 de 10 de Março de 2011, a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego referiu que, considerando a partir do ponto de vista do trânsito integral de Macau e para coordenar a execução dos planos recentes e a longo prazo, é necessário e viável reservar as pontes-cais n.ºs XX e XX do Porto Interior para via pública.
13. Nos termos do art.º 20.º, n.º 1 da Lei n.º 6/86/M, as concessões e as licenças podem ser extintas, mediante acto fundamentado, se os terrenos dominais forem considerados necessários à utilização pelo público sob a forma de uso comum ou se outro motivo de interesse público assim o exigir.
Pelo que, com base nas necessidades do uso comum ou de outro interesse público, o Governo da RAEM pode não autorizar a renovação da licença de ocupação a título precário do bem no domínio público hídrico.
14. Nestes termos, para o efeito de reservar a ponte-cais n.º XX do Porto Interior como via pública em cooperação com o desenvolvimento de trânsito integral de Macau, é óbvio que o Governo da RAEM não pode deferir o pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior.
Se o Governo da RAEM indefira o pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior, A perderia o direito de utilização desta por a caducidade daquela licença. Caso assim, A tenha de proceder à demolição dos objectos amovíveis na ponte-cais, de forma à restituição desta à posse da Região Administrativa Especial de Macau.
15. É previsto, tanto no Código Civil de 1966 (o art.º 202.º, n.º 2), como no Código Civil vigente (o art.º 193.º), que todas as coisas que se encontram no domínio público são consideradas fora do comércio e não podem ser objecto de direitos privados, nem apropriadas pessoalmente.
Por encontrar-se no domínio público a ponte-cais n.º XX do Porto Interior, os seus direitos reais (incluindo o direito de superfície) não podem ser adquiridos ou transmitidos pessoalmente.
Por o interessado não ter o direito de superfície sobre a ponte-cais n.º XX do Porto Interior, ele não pode sustentar, para o Governo da RAEM, a posse do direito de construção nesta ponte-cais.
16. Nos termos do art.º 20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 6/86/M, as concessões e as licenças podem ser extintas, mediante acto fundamentado, se os terrenos dominais forem considerados necessários à utilização pelo público sob a forma de uso comum ou se outro motivo de interesse público assim o exigir; a revogação das licenças não confere ao interessado direito a qualquer indemnização, podendo ser levantadas as benfeitorias que não afectem a utilidade económica do terreno.
Nos termos do art.º 75.º da vigente Lei de Terras, o ocupante não tem direito de levantar as benfeitorias introduzidas no terreno nem de ser indemnizado por elas, qualquer que seja o motivo do termo da ocupação, devendo, porém, ser reembolsado da importância da taxa correspondente ao tempo por que ainda teria direito a ocupar o terreno.
Com base no disposto acima referido, o interessado não teria direito a indemnização se a ponte-cais n.º XX do Porto Interior for devolvida ao Governo da RAEM após a caducidade da licença de ocupação a título precário.
17. Quanto à resposta escrita apresentada em 15 de Abril de 2011 pelo Sr. Advogado C em representação de A, entendemos que:
(1) Em relação a que se referiu nos pontos 2 e 3 da resposta, “…não pode dizer que o depoente ocupa a título precário a ponte-cais n.º XX”, e “Ao longo dos anos, seja qual for a situação económica, o depoente tem explorado esta ponte-cais e lá construiu um prédio permanente de dois andares.”
Segundo as informações da Capitania dos Portos, tanto A como o antigo utente ocuparam, a título precário, a ponte-cais n.º XX do Porto Interior usando a licença de ocupação a título precário. Por isso, tal perspectiva acima referida não é sustentável.
A e o antigo titular da licença de ocupação a título precário são dois indivíduos independentes, e também dois titulares diferentes de licença de ocupação quanto ao assunto de ocupação a título precário do domínio público hídrico. A começou, desde 1993, a utilizar a ponte-cais n.º XX do Porto Interior por ocupação a título precário, devendo considerar de forma plena as naturezas jurídicas da respectiva ponte-cais e dos edifícios nela construídos.
(2) Quanto ao plano de aproveitamento do Porto Interior referido nos pontos 4, 5 e 6 da resposta escrita.
O Plano de Reordenamento do Porto Interior, aprovado pela Portaria n.º 218/90/M, na redacção dada pela Portaria n.º 171/95/M e Ordem Executiva n.º 5/2002, determina um planeamento global dos fins a que as pontes-cais se destinam. Todavia, tal Plano de Reordenamento do Porto Interior não concede a ninguém o direito à ocupação permanente das pontes-cais a título precário.
(3) Quanto ao estudo prévio do edifício e às obras de alteração/legalização referidos nos pontos 7, 8 e 9 da resposta escrita.
Tal estudo prévio não é autorizado oficialmente.
Qualquer obra de beneficiação realizada no terreno de domínio público ocupado a título precário não altera as naturezas jurídicas deste e dos edifícios nele construídos.
(4) Quanto a que se referiu na resposta escrita, “o depoente pediu que fosse reconsiderada a decisão de devolução da ponte-cais n.º XX do Porto Interior ou que lhe fosse concedida outra parcela de terreno…”.
A ponte-cais n.º XX do Porto Interior trata-se do bem do domínio público. Com base nas necessidades da abertura dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra, a ponte-cais n.º XX do Porto Interior pode ser devolvida ao Governo da RAEM para outro plano de aproveitamento após a caducidade da licença de ocupação a título precário.
Quanto à concessão de outra parcela de terreno ao depoente, não há fundamentos de direito correspondentes a ser citados.
(5) Conclusão:
Quanto às opiniões importantes referidas na audiência escrita, como “a ponte-cais n.º XX do Porto Interior trata-se do bem do domínio público” e “por o interessado não ter o direito de superfície sobre a ponte-cais n.º XX do Porto Interior, ele não pode sustentar, para o Governo da RAEM, a posse do direito de construção nesta ponte-cais” e “o interessado não teria direito a indemnização se a ponte-cais n.º XX do Porto Interior for devolvida ao Governo da RAEM após a caducidade da licença de ocupação a título precário”, estas não foram contraditas com fundamentos de direito e de facto na resposta escrita.
Faltam fundamentos de direito ou de facto aos pedidos e alegações referidos na resposta escrita.
Parte III Sugestão
18. É necessário reservar os espaços das pontes-cais n.ºs XX e XX do Porto Interior para via pública para o efeito dos Corredores Exclusivos para Autocarros entre as Portas do Cerco e a Barra. Atentas as alegações e análises acima referidas, é de sugerir:
18.1 O indeferimento do pedido de renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior;
18.2 O requerimento, ao antigo titular da licença de ocupação a título precário da ponte-cais n.º XX do Porto Interior, ou seja, a A, de proceder, no prazo de 30 dias, à demolição dos objectos amovíveis na ponte-cais, de forma à restituição desta à posse da Região Administrativa Especial de Macau.
Ao despacho superior.
III – O Direito
1. As questões a apreciar
A primeira questão a resolver é a de saber se todos os factos alegados pelo recorrente no recurso contencioso, todos os factos alegados pela entidade recorrida não foram objecto de decisão por parte do acórdão recorrido, não se pronunciando o mesmo especificadamente sobre os factos que considerasse provados e mesmo aqueles que considerasse como não provados e, se assim for, qual a consequência deste procedimento.
A segunda questão a decidir é a de saber se há factos considerados na fundamentação jurídica do acórdão recorrido que não foram elencados como factos provados e, se assim for, qual a consequência deste procedimento.
A terceira questão a ponderar é a de saber se o acórdão recorrido não apreciou as provas carreadas pelas partes nem fez o exame crítico dessas provas e se lhe cabia tal incumbência.
Por último, cabe decidir se o acórdão recorrido apreciou mal os vícios imputados ao acto recorrido respeitantes às violações dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça.
Seguiremos, de muito perto, o nosso acórdão de 14 de Novembro de 2012, no Processo n.º 65/2012, que apreciou o recurso jurisdicional do acórdão de 14 de Junho de 2012, do TSI, Processo n.º 569/2011, que o acórdão recorrido seguiu na sua fundamentação, que se refere ao caso da Ponte-cais n.º XX, sendo que a alegação de recurso do recorrente dos autos é muito semelhante à do alegação da recorrente no nosso Processo n.º 65/2012.
2. Questões de nulidade do acórdão recorrido. Falta de especificação na sentença dos factos não provados e dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador
Comecemos pelas primeira (esta apenas na vertente de que não constam do acórdão os factos não provados) e terceira questões, que foram já por nós decididas no acórdão de 29 de Junho de 2009, no Processo n.º 32/2008, que aqui reproduzimos, por nada haver a alterar:
“Importa começar por apreciar as questões que podem conduzir à nulidade do Acórdão recorrido já que, a procederem, poderiam determinar a devolução do processo ao TSI para conhecer da omissão.
A tese da recorrente é a de que o Acórdão recorrido é nulo porque dele não constam os factos não provados e porque se não especificou os meios de prova usados para considerar os factos provados, nem os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, o que violaria o disposto nos arts. 571.º, n.º 1, alínea b) e 556.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicáveis subsidiariamente, nos termos do art. 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Como se sabe, em processo civil, na acção declarativa com forma ordinária, que constitui o paradigma para as restantes formas de processo civil e, por conseguinte, para os restantes direitos processuais, há uma cisão entre o julgamento de facto e o julgamento de direito.
O julgamento da matéria de facto tem lugar por meio de uma decisão em que o tribunal (na maior parte dos casos o tribunal colectivo) <... declara quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador> (art. 556.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
Posteriormente, tem lugar o julgamento de direito, que se consubstancia na sentença, que é sempre proferida por um juiz (singular).
A estrutura da sentença consta do art. 562.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe:
Artigo 562.º
(Sentença)
<1. A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
2. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
3. Na fundamentação da sentença, o juiz toma em consideração os factos admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.
4. ...>
Assim, em processo civil, na sentença o juiz não indica os factos não provados, mas apenas os factos provados. Deste modo, mesmo que o Código de Processo Civil fosse aplicável à sentença no recurso contencioso, estava o recorrente equivocado ao defender a aplicação de norma que se aplica à decisão de julgamento de facto e não à sentença, em que se consubstanciou o Acórdão recorrido.
Na verdade, o artigo 556.º, n.º 2 do Código de Processo Civil não se aplica à sentença.
No recurso contencioso não há uma separação entre o julgamento de facto e de direito. À semelhança do processo penal, no recurso contencioso, na sentença (ou Acórdão se se tratar do TSI), procede-se ao julgamento de facto e de direito.
O Código de Processo Administrativo Contencioso contém uma norma respeitante à sentença no recurso contencioso, que é o artigo 76.º e que dispõe:
(Conteúdo da sentença e acórdão)
A sentença e o acórdão devem mencionar o recorrente, a entidade recorrida e os contra-interessados, resumir com clareza e precisão os fundamentos e conclusões úteis da petição e das contestações, ou das alegações, especificar os factos provados e concluir pela decisão final, devidamente fundamentada>.
Ora, esta norma determina que a sentença especifique os factos provados, mas não os factos não provados, pelo que, tendo aplicação directa ao nosso caso, não será de aplicar subsidiariamente o artigo 562.º do Código de Processo Civil. Mas ainda que o fosse, o resultado seria o mesmo.
Ou seja, tanto em processo civil, como em processo administrativo contencioso, a sentença não indica os factos alegados pelas partes não considerados provados pelo tribunal, mas indica apenas os factos provados.
Não tem, pois, razão o recorrente nesta parte.
Já quanto à tese do recorrente, de que Acórdão recorrido é nulo porque não especificou os meios de prova usados para considerar os factos provados, nem os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, a questão é mais complexa.
O artigo 76.º Código de Processo Administrativo Contencioso, atrás transcrito, não impõe ao julgador tal obrigação, naquela norma que se refere à estrutura da sentença no recurso contencioso.
Mas já o n.º 3 do artigo 562.º do Código de Processo Civil determina que .
Na sentença, além dos factos considerados provados na decisão sobre a matéria de facto – factos sujeitos à livre apreciação do julgador (artigo 558.º, n.º 1) - o juiz considera, ainda, os factos cuja prova se baseia em meios de prova que escapam ao julgador da matéria de facto (factos admitidos por acordo ou não impugnados nos articulados, provados por documentos – prova plena – ou por confissão escrita).
Na sentença, quando o juiz examina criticamente as provas fá-lo <... de modo diferente de como fez o julgador da matéria de facto: não se trata já de fazer jogar a convicção formada pelo meio de prova, mas de verificar atentamente se existiram os factos em que se baseia a presunção legal (lato sensu) e delimitá-los com exactidão para seguidamente aplicar a norma de direito probatório>1.
Assim, o Acórdão recorrido não tinha de especificar os meios de prova usados para considerar os factos provados, nem os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.
De resto, mesmo que o Acórdão recorrido contivesse a omissão apontada – e não tem - tal omissão não seria fundamento de nulidade, mas antes, a requerimento da parte, poderia ser determinada a devolução do processo para que o tribunal recorrido fundamentasse a decisão de facto (artigo 629.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente).
O recorrente não efectuou o requerimento a que se refere o artigo 629.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, pelo que sempre seria improcedente a arguição de nulidade”.
3. Falta de pronúncia sobre factos alegados.
Examinemos parte da primeira questão que ficou por apreciar, a de saber se todos os factos alegados pelo recorrente no recurso contencioso e todos os factos alegados pela entidade recorrida não foram objecto de decisão por parte do acórdão recorrido.
Antes de mais, há que delimitar a parte da questão, que o recorrente tem legitimidade para arguir. Ora, relativamente aos factos alegados pela outra parte, e que a elas compete provar, de acordo com as regras do ónus da prova (factos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do recorrente), só a elas interessa que o Tribunal se pronuncie. Como é evidente, sendo factos favoráveis a tais partes, não tem o recorrente qualquer interesse na sua prova, pelo que lhe falta legitimidade para arguir a omissão da respectiva pronúncia.
Já quanto aos factos alegados pelo recorrente na sua petição de recurso contencioso, diz esta que relativamente a “quase toda a matéria alegada” o acórdão recorrido é omisso se os factos se provaram ou não.
Ora, se a omissão não foi a todos os factos por ela alegados, mas a “quase todos”, parece que teria o recorrente de especificar que factos são esses para que este Tribunal se pudesse pronunciar sobre tal omissão e respectiva consequência.
Não o fez.
Aliás, basta cotejar a petição de recurso contencioso com os factos considerados provados - acima transcritos – para se constar que muitos foram considerados provados.
Assim, se havia factos não provados, relativamente aos quais a recorrente pretendia que este Tribunal se pronunciasse sobre qualquer omissão de pronúncia do acórdão recorrido teria de os especificar.
Não o tendo feito, improcede desde já a questão suscitada.
4. Factos considerados provados não constantes da respectiva lista
Vejamos, agora, se há factos considerados na fundamentação jurídica do acórdão recorrido que não foram elencados como factos provados e, se assim for, qual a consequência deste procedimento.
Segundo o recorrente tais factos são os seguintes:
- A existência de estudos que tenham levado em consideração tanto o local de partida, como o de chegada;
- Que o trajecto seja o mais aconselhável, o menos danoso: a não ser este, muito provavelmente outro não haveria, ou se o houvesse, teria que ser muito mais gravoso aos interesses envolvidos;
- Qual seja o imenso benefício que para a cidade e para os seus cidadãos resulta do alargamento da via;
- Quando será iniciada e concluída a obra;
- Se é necessário estudo de impacto ambiental, ou se o mesmo pode ser levado a cabo com a ponte-cais a laborar;
- Se o facto de se renovar a licença ao ora Recorrente para o ano de 2011 impediria a realização de concurso para adjudicação da obra; selecção do adjudicatário;
- Se a renovação da licença para o ano de 2011 impedia a ultimação de preparativos no local com realojamentos eventuais, demolições prévias, estabelecimento de estaleiros, aterros, etc, etc.
- Se a construção da via exclusiva para transportes públicos que se deslocam da Barra para as Portas do Cerco, resolve os condicionamentos na zona do Porto Interior, o problema do congestionamento do trânsito, e dos atropelos até à saúde dos utentes, transeuntes e moradores.
Os factos 1 e 2 não foram dados como assentes pelo acórdão recorrido. Este presume que terá havido estudos a apontar para o trajecto em questão como o mais aconselhável. E acrescenta que deveria ter sido a recorrente a demonstrar que tal trajecto não era o melhor, o que não fez.
Quanto aos restantes factos, o acórdão recorrido não os deu como assentes.
O TUI não tem poder para sindicar tal julgamento de matéria de facto (artigos 47.º, n.º 1 da Lei de Bases da Organização Judiciária e 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso). Tê-lo-ia se tivesse havido qualquer violação de lei em tal julgamento, designadamente, preterição de meio de prova plena.
Mas ao contrário do que alega o recorrente, a planta cadastral junto com a contestação da entidade recorrida não constitui prova plena da delimitação dos prédios e da sua confrontação com as vias públicas (na tese do recorrente tal planta atestaria que a ponte-cais XX não se encontra num ponto da via diferente daquele em que se encontram as pontes-cais XX e XX).
Antes de mais, a ponte-cais XX não consta de tal planta.
Em segundo lugar, a planta não atesta que a largura da via é a mesma na zona das pontes-cais XX e XX.
Por outro lado, uma planta cadastral não refere factos praticados pela autoridade ou oficial público que são seus autores, nem se atestam factos com base em percepções da entidade documentadora, pelo que traçados e desenhos constantes da mesma não se podem considerar provados nos termos do artigo 365.º, n.º 1, do Código Civil.
Improcede o vício suscitado.
5. Princípios da igualdade e da proporcionalidade
Na tese do recorrente, o acto recorrido viola o princípio da igualdade porque a decisão de indeferimento da renovação da licença de ocupação não se estendeu aos ocupantes das restantes pontes-cais do Porto Interior.
E, ainda na opinião do recorrente, o acto recorrido viola os princípios da proporcionalidade e da justiça porque o interesse público impõe que as mesmas regras e critérios devem ser aplicados a todos que tenham direitos conflituantes com o interesse público (no caso da construção de uma via pública). Além disso, como a construção demorará vários meses, não se vê razão para o indeferimento de renovação da licença temporária por um ano.
Estamos no domínio do exercício de poderes discricionários.
Quanto à primeira questão, o acórdão recorrido aceita que só quanto às pontes-cais XX e XX se coloca a questão da sua remoção.
Mas desde que o recorrente não prova – e efectivamente não prova, cabendo-lhe o ónus da prova - que as outras pontes-cais estão na mesma situação da ponte do recorrente, não só em termos de localização em relação à via pública, mas também em termos jurídicos, isto é que ocupam, igualmente, domínio público mediante licenças precárias, está logo afastada a violação do princípio da igualdade, visto que só tem de ser tratado de forma igual o que é igual.
Quanto às violações dos princípios da proporcionalidade e da justiça, não compete ao Tribunal imiscuir-se na concreta planificação das obras da Administração. Se esta entende que não deve renovar uma licença de ocupação de espaço público, que sempre foi precária, por causa de uma obra que pretende levar a cabo, está fora de causa ir o Tribunal avaliar se a planificação e a execução da obra é compatível com a renovação da licença por mais um ano. Não só porque não é esta a função dos tribunais, como porque é da experiência comum que, nesta matéria, todos os cuidados são poucos, já que, muitas vezes, os interessados lançam mão de todos os meios, uns legais – como aconteceu, no caso, com a tentativa do recorrente de suspender a eficácia do acto administrativo - e outros nem tanto, para impedir a desocupação de instalações. Ora, a projecção de uma obra viária implica, seguramente, o lançamento de concurso público para execução de empreitada, e quando se dá a adjudicação o terreno da obra tem de estar disponível, para ela poder ser executada. É, por isso, totalmente compreensível, e obedece a uma política de cautelas, a desocupação atempada de espaço para lançamento do procedimento administrativo conducente à execução de uma obra viária. Não se vislumbra qualquer violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça.
De resto, como dissemos, por exemplo, no acórdão de 9 de Maio de 2012, no Processo n.º 13/2012, “Não se têm suscitado dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência, que os tribunais podem fiscalizar o respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. A dúvida está em saber em que medida deverão os tribunais intervir nesta matéria.
DAVID DUARTE2, referindo-se à proporcionalidade em sentido estrito, «que engloba a técnica do erro manifesto de apreciação, técnica jurisdicional francesa que compreende, em termos avaliativos, para além do erro na qualificação dos factos, a utilização de um critério decisório proporcional que se revela numa decisão desequilibrada entre o contexto e a finalidade. O erro manifesto de apreciação, na vertente de controlo da adequação da decisão aos factos … é, como meio de controlo do conteúdo da decisão, um dos degraus mais elevados da intervenção do juiz na discricionariedade administrativa. E, por isso, só é utilizável na medida da evidência comum da desproporção3» (o sublinhado é nosso).
Nas mesmas águas navega MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA4 defendendo que «em face da fluidez dos princípios (da proporcionalidade, da igualdade, da justiça), só são justiciáveis as decisões que, de um modo intolerável, os violem5» (o sublinhado é nosso)”.
O CPAC, no seu artigo. 21.º, n.º 1, alínea d), a respeito dos fundamentos do recurso contencioso refere-se ao «erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários».
Em suma, não procede a arguição das mencionadas violações.
IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso jurisdicional.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 UC.
Macau, 26 de Junho de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Mai Man Ieng
1 J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 643.
2 DAVID DUARTE, ob. cit., p. 323.
3 O mesmo autor, ob. cit., p. 323, nota 205, a propósito da questão de saber qual a medida da desproporcionalidade que uma decisão deve ter para poder ser controlada pelo tribunal, cita uma decisão judicial britânica de 1945 (Associated Provincial Picture House Ltd. v. Wednesbury Corporation), que criou um standard aplicável à medida da intervenção judicial, estabelecendo que “if an authority`s decision was so unreasonable that no reasonable authority could ever have como to it, then the courts can interfere”.
4 Ob. cit., p. 642.
5 No mesmo sentido, M. ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., p. 256 e 257 e J.C. VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Livraria Almedina, Coimbra, 1991, p. 137.
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Processo n.º 5/2015
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Processo n.º 5/2015