Proc. nº 845/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 30 de Maio de 2019
Descritores:
- Litigante de má-fé.
SUMÁRIO:
Só é litigante de má-fé quem, quando com dolo ou culpa grave, deduz pretensão ou oposição que sabia, ou não devia ignorar, não ter qualquer fundamento (art. 385º, nº2, al. a), do CPC).
Proc. nº 845/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
A, do sexo feminino, solteira, maior, de nacionalidade chinesa, titular do BIRM n.º XXXX, residente em Macau, XXXXXX, instaurou acção com processo ordinário contra ----
B, do sexo masculino, maior, exerce funções de médico em C Medical Centre, situado em Macau, XXXXXX.
Pediu que se: ----
1. Confirmasse que a resolução do contrato celebrado entre a Autora e o Réu ocorreu antes da data da notificação do Réu da petição inicial;
2. Condenasse o Réu a restituir à Autora o valor das despesas médicas prestadas, que quantificou em MOP18.000,00;
3. Face ao prejuízo patrimonial, condenasse o Réu a indemnizar a Autora por todas as despesas médicas despendidas no tratamento das lesões e despesas de transporte, no montante total de MOP81.437,17;
4. Face ao prejuízo não patrimonial, condenasse o Réu a pagar o montante de MOP500.000,00 à Autora como compensação;
5. Condenasse o Réu a pagar à Autora os juros de mora a partir da data da decisão judicial que fixa o montante da indemnização em apreço;
Se assim não se entendesse, veio pedir subsidiariamente ao Tribunal que decidisse em conformidade com a responsabilidade extracontratual: e ---
6. Face ao prejuízo patrimonial, condenasse o Réu a indemnizar a Autora por todas as despesas médicas despendidas no tratamento das lesões e despesas de transporte, no montante total de MOP81.437,17;
7. Face ao prejuízo não patrimonial, condenasse o Réu a pagar o montante de MOP500.000,00 à Autora como compensação;
8. Condenasse o Réu a pagar à Autora os juros de mora a partir da data da decisão judicial que fixa o montante da indemnização em apreço.
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Proferida a sentença, foi a acção julgada improcedente.
Nela, foi ainda a autora declarada litigante de má-fé, com a consequente condenação em multa no montante de 10 UCs e no pagamento dos honorários do ré au seu advogado, nos termos e moldes definidos no art. 386º, nºs 4 e 5, edo CPC.
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Contra essa sentença veio a autora recorrer jurisdicionalmente, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
“1. Salvo o devido respeito, a Recorrente não se conforma com a decisão feita na sentença recorrida que declarou a Recorrente como litigante de má fé, condenando-a em multa de 10UCs, e que condenou a mesma no pagamento dos honorários advocatórios despendidos pelo Réu em consequência da presente acção, bem como a parte da decisão que condenou a Recorrente a suportar as custas relativas à litigância de má fé.
2. O douto Tribunal a quo entendeu que os tratamentos de herpes labiais e de eliminação de rugas, os tratamentos estéticos “M plan testa” e “M plan eye”, e “BOTOX 3 sites” (injecção da toxina botulínica) não estavam relacionados com as lesões faciais tratadas pela Recorrente, a Recorrente não possuía fundamento para exigir ao Réu que a indemnizasse a título das despesas com os aludidos tratamentos, a par disso, conforme os factos provados, a Recorrente tinha a intenção de transmitir ao Réu a responsabilidade pelo pagamento das ditas despesas, pelo que declarou que a Recorrente como litigante de má fé.
3. No que concerne à litigância de má fé discutida neste caso, conforme o facto provado constante do artigo 66º da base instrutória, a Recorrente tinha a intenção de transmitir ao Réu a responsabilidade pelo pagamento das despesas médicas em apreço.
4. Todavia, só o facto provado acima exposto e os factos provados constantes dos artigos 64º e 65º da base instrutória não são suficientes para demonstrarem, inferirem ou reflectirem que a Recorrente tivesse deduzido, com dolo ou negligência grave, a pretensão infundada, ou tivesse perfeito conhecimento ou não devesse ignorar a falta de fundamento da pretensão.
5. Assim sendo, não se verifica a reunião do requisito de litigância de má fé, previsto na alínea a) do n.º 2 do art.º 385º do Código de Processo Civil.
6. Ademais, as lesões invocadas pela Recorrente na petição inicial são a inflamação, as crostas parecidas com pixéis, os poros dilatados, a pele dura que apresenta relevo irregular, a alergia na pele, a secura, a comichão e as marcas quadriculadas em todo o rosto. (Tal situação também é revelada nas fotografias do anexo 1 da petição inicial)
7. A Recorrente não era médica, nem possuía conhecimentos profissionais em medicina, sendo impossível que esta formasse juízo médico exacto e exigisse, por iniciativa própria, aos médicos que disponibilizassem tratamento desnecessário.
8. A Recorrente, como Homem médio, consegue fixar os seguintes critérios de avaliação: se os tratamentos foram aplicados ao rosto lesionado e se, conforme a cognição do Homem médio, pode inferir-se ou estimar-se razoavelmente que os tratamentos estavam associados ao tratamento dos poros dilatados, da pele dura que apresenta relevo irregular, da alergia na pele, da secura e das marcas quadriculadas.
9. O tratamento de eliminação de rugas, os tratamentos estéticos “M plan testa” e “M plan eye”, bem como “BOTOX 3 sites” (injecção da toxina botulínica) foram prescritos pelos médicos de Macau e de Hong Kong para curar os sintomas surgidos após as lesões faciais sofridas pela Recorrente, tais como os poros dilatados, a pele dura que apresenta relevo irregular, a secura da pele e as marcas quadriculadas.
10. O tratamento de herpes labiais resultou da alergia na pele surgida após as lesões faciais sofridas pela Recorrente, bem como tais lesões causaram à Recorrente a tensão mental, preocupação frequente e insónia que desencadearam o declínio da imunidade, a par disso, os herpes labiais apareceram no rosto, pelo que a Recorrente esteve convicta de que tal sintoma era associado ao rosto lesionado.
11. Todos os tratamentos envolvidos na indemnização médica invocada pela Recorrente foram prescritos pelos médicos de Macau e de Hong Kong para curar o rosto da Recorrente e em relação aos quais foram emitidas as respectivas facturas médicas; a Recorrente, como paciente, só podia confiar e aceitar os respectivos programas do tratamento.
12. De acordo com as regras da experiência comum, ninguém pretende arriscar, no sentido de se submeter simultaneamente a outro tratamento desnecessário quando o seu rosto se encontre inteiramente lesionado e esteja a submeter-se ao respectivo tratamento; e, a Recorrente também tem a mesma opinião.
13. Mesmo que se entender que os tratamentos de herpes labiais e de eliminação de rugas, os tratamentos estéticos “M plan testa” e “M plan eye”, e “BOTOX 3 sites” (injecção da toxina botulínica) não estavam relacionados com o presente caso, é impossível que a Recorrente tivesse deduzido, com dolo ou negligência grave, a pretensão, bem como não soubesse nem fosse possível o conhecimento da falta de fundamento da pretensão.
14. Entendeu a Recorrente que a sentença recorrida cometeu erro na aplicação da alínea a) do n.º 2 do art.º 385º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, requer-se aos Venerandos Juízes do TSI que concedam provimento ao presente recurso, anulando a parte da sentença recorrida relativa à litigância de má fé imputada à Recorrente, nomeadamente as custas processuais correspondentes.”
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O recorrido respondeu ao recurso, terminando a sua alegação com a seguinte síntese:
“1. A Autora, A, (doravante designada simplesmente por “Recorrente”) interpôs recurso por não se conformar com os pontos 2 e 3 da decisão feita na sentença recorrida, e com a parte da decisão sobre as custas processuais que estavam relacionadas com a litigância de má fé;
2. A Recorrente assinalou nas alegações do recurso que as lesões invocadas pela mesma na petição inicial eram a inflamação, as crostas parecidas com pixéis, os poros dilatados, a pele dura que apresenta relevo irregular, a alergia na pele, a secura, a comichão e as marcas quadriculadas em todo o rosto.
3. A Recorrente ainda indicou que ela não era médica, nem possuía conhecimentos profissionais em medicina, sendo impossível que esta formasse juízo médico exacto e exigisse, por iniciativa própria, aos médicos que disponibilizassem tratamento desnecessário.
4. Também acrescentou que ela, como Homem médio, conseguia fixar os seguintes critérios de avaliação: se os tratamentos foram aplicados ao rosto lesionado e se, conforme a cognição do Homem médio, pode inferir-se ou estimar-se razoavelmente que os tratamentos estavam associados ao tratamento dos poros dilatados, da pele dura que apresenta relevo irregular, da alergia na pele, da secura e das marcas quadriculadas.
5. Salvo o devido respeito, o Recorrido não concorda com as pretensões invocadas pela Recorrente.
6. De antemão, o Recorrido necessita de indicar que os poros dilatados, a pele dura que apresenta relevo irregular, a secura e as marcas quadriculadas invocados pela Recorrente não afectam a saúde dela e apenas estão relacionados com a beleza externa da mesma.
7. Todavia, a Recorrente reclamou ao Recorrido as despesas com os tratamentos estéticos recebidos pela mesma em várias instituições estéticas, com vista a melhorar os problemas relativos aos poros dilatados, à pele dura que apresenta relevo irregular, à secura e às marcas quadriculadas, sendo esse um facto incompreensível.
8. Tal como referido nas respostas formuladas pelo responsável e pelo médico D de E (E醫療中心), constantes de fls. 174 e 175 dos autos, em 15 de Julho de 2014, a Recorrente foi à consulta no aludido centro médico e estético, queixando que sofria secura da pele e poros dilatados. Ela foi diagnosticada com secura da pele, poros dilatados, entre outros problemas estéticos, por conseguinte, foi-lhe recomendado um programa de tratamento estético.
9. Das respostas acima expostas se constata que os problemas cutâneos sofridos pela Recorrente na dada altura eram meramente problemas estéticos, por isso, o médico apenas lhe recomendava tratamento estético e não tratamento médico.
10. É de salientar que o tratamento estético em apreço é substancialmente estética médica, cuja sua realização não tem como objectivo curar ou recuperar de lesão, mas sim embelezar, melhorar, reparar e regenerar a aparência, os pelos e cabelos, e a forma do corpo humano, com vista a fortalecer a beleza externa do corpo humano, não sendo, portanto, um tratamento necessário.
11. Como referido no artigo 75º da contestação, segundo a introdução à página electrónica do referido Centro de dermatologia e laser (dermatologista, Dr.ª H), “Injecção da toxina botulínica- melhorar os problemas de rugas, face de forma quadrangular, perna inferior grossa e hiperidrose.”. Daí se averigua que a injecção da toxina botulínica não serve para tratar a alergia na pele, os poros dilatados e a pele dura que apresenta relevo irregular invocados pela Recorrente.
12. Conforme a carta remetida por E (E醫療中心), “M plan testa” é um tratamento de eliminação de rugas da testa, enquanto “M plan eye” é um tratamento de eliminação de rugas dos olhos.
13. É de salientar que, segundo a cognição do Homem médio e a dedução razoável efectuada, pela introdução da injecção da toxina botulínica e pela interpretação literal do “tratamento de eliminação de rugas”, pode concluir-se que o tratamento de eliminação de rugas, os tratamentos estéticos “M plan testa” e “M plan eye”, bem como “BOTOX 3 SITES” (injecção da toxina botulínica) são destinados ao melhoramento dos problemas de rugas, a par disso, tais problemas não afectam a saúde da Recorrente.
14. Os aludidos tratamentos também não servem para tratar a alergia na pele do rosto, os poros dilatados e a pele dura que apresenta relevo irregular invocados pela Recorrente na petição inicial (tais problemas cutâneos invocados pela Recorrente também não afectam a saúde dela).
15. Além do mais, a Recorrente ainda assinalou na petição inicial que, em Dezembro de 2012, ela começava a submeter-se ao tratamento IPL da estética médica, disponibilizado pelo Recorrido; isto quer dizer que, pelo menos, em Dezembro de 2012, a Recorrente começava a ter contacto com a estética médica. De acordo com o depoimento prestado pela testemunha I, antes da realização do tratamento, a Recorrente perguntou, por iniciativa própria, ao Recorrido, como médico, sobre a solução do problema de poros dilatados. Daí se constata que a Recorrente é uma pessoa que procura sempre esclarecer as suas dúvidas.
16. Pelo exposto, a Recorrente tinha perfeito conhecimento das funções do tratamento de eliminação de rugas, dos tratamentos estéticos “M plan testa” e “M plan eye”, bem como de “BOTOX 3 SITES” (injecção da toxina botulínica) recebidos em E (E醫療中心) e no Centro de dermatologia e laser (dermatologista, Dr.ª H); e, caso negativo, ela iria pedir esclarecimentos aos médicos.
17. Assim sendo, a Recorrente sabia perfeitamente que a realização dos tratamentos em apreço não tinha como objectivo curar ou recuperar de lesão, mas sim, esses eram tratamentos estéticos médicos recebidos pela Recorrente para embelezar e melhorar a sua aparência.
18. Na carta remetida por E (E醫療中心) também se indicou que, após se ter submetido ao tratamento de injecção de hidratante, a Recorrente recusava a continuação da aplicação de injecção de hidratante para tratar o problema de secura da pele, pedindo que se iniciasse a aplicação de laser para tratar o problema de poros dilatados. A seguir, por não pretender continuar os tratamentos de injecção de hidratante e de laser, a Recorrente revelava ao centro a sua vontade de interrupção de todos os tratamentos, pedindo e recebendo de volta a quantia remanescente que tinha despendido como despesas com os tratamentos. (Negrito e sublinhado nosso)
19. Da referida carta remetida por E (E醫療中心) se constata que foi a própria Recorrente que decidiu recusar a aplicação da injecção de hidratante para tratar o problema de secura da pele, bem como pediu, por iniciativa própria, ao médico que aplicasse laser para tratar o problema de poros dilatados.
20. Isto é, a Recorrente pediu, por iniciativa própria, e decidiu sobre a submissão ou não a tratamento, ou sobre o tipo de tratamento a que se submeteria, consoante o problema cutâneo que ela desejava melhorar; e não é tal como mencionado pela Recorrente nas alegações do recurso: sendo impossível que esta exigisse, por iniciativa própria, aos médicos que lhe disponibilizassem tratamento desnecessário.
21. Segundo o comentário doutrinal sobre a litigância de má fé e o conteúdo do acórdão proferido no processo n.º 12/2005 pelo TSI, face à interpretação de litigante de má fé, constata-se que um litigante de má fé consiste na pessoa que deduziu pretensão mesmo que não pudesse razoavelmente desconhecer a falta de fundamento da sua pretensão.
22. Conforme os factos constantes dos artigos 64º a 66º da base instrutória que foram provados por meio da audiência.
23. É de salientar que, como acima mencionado, a Recorrente tinha pleno conhecimento de que a realização dos tratamentos em causa não tinha como objectivo curar ou recuperar de lesão, mas sim, esses eram tratamentos estéticos recebidos pela Recorrente para embelezar e melhorar a sua aparência.
24. Porém, a Recorrente reclamou ao Recorrido as despesas com os tratamentos estéticos recebidos pela mesma.
25. Também foi mencionado na sentença recorrida: “(…) é possível que a Autora tenha consultado vários médicos para tratar os referidos problemas cutâneos, porém, mesmo que esse caso seja verdadeiro, por lógica, tais problemas não provocam, de qualquer modo, herpes labiais que a levem a submeter-se ao respectivo tratamento ou se submeter ao tratamento de eliminação de rugas ou tomar injecção da toxina botulínica. Como é evidente, a Autora não possui fundamento para exigir ao Réu que a indemnize a título das despesas com os aludidos tratamentos. A par disso, conforme os factos provados, a Autora tinha a intenção de transmitir ao Réu a responsabilidade pelo pagamento das ditas despesas.”
26. Pelo exposto, a sentença recorrida não cometeu erro na aplicação da alínea a) do n.º 2 do art.º 385º do Código de Processo Civil. Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 386º do Código de Processo Civil de Macau, a Recorrente deve responsabilizar-se pela indemnização por danos provocados ao Recorrido.
27. Ademais, pela conjuntura do teor dos autos, o Recorrido tinha pedido na contestação que se oficiasse a E (E醫療中心) para prestar esclarecimentos sobre todos os programas de tratamento estético submetidos pela Recorrente e sobre os problemas cutâneos tratados; e, por seu turno, E (E醫療中心) remeteu uma carta para responder às respectivas questões.
28. Conforme a carta remetida por E (E醫療中心) e os respectivos documentos em anexo, constantes de fls. 174, 175, 213 e 214 dos autos, em 4 de Março de 2015, a Recorrente recebeu de volta a quantia remanescente, no valor de MOP6.000,00, que tinha despendido como despesas com o tratamento de hidratação DQ, embora tal facto não tivesse sido mencionado na sentença recorrida.
29. No entanto, dos aludidos documentos se averigua que a Recorrente, depois de ter recebido de E (E醫療中心) a quantia remanescente despendida como despesas com tratamento, ainda reclamou mais uma vez ao Recorrido a restituição do valor integral da quantia despendida, na propositura da presente acção em 5 de Fevereiro de 2016.
30. Assim, não é difícil descortinar que a Recorrente sabia perfeitamente que tinha recebido a quantia reembolsada, mas ainda reclamou ao Recorrido o pagamento da quantia em causa como indemnização, a fim de obter benefício para si própria.
31. Pelo exposto, a Recorrente deduziu dolosamente pretensão infundada cuja falta de fundamento não devia desconhecer, bem como alterou ou omitiu a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, a par disso, de facto, ela já tinha recebido de volta parte da quantia (montante remanescente despendido como despesas com tratamento).
32. Nos termos da alínea b) do n.º 2 do art.º 385º do Código de Processo Civil, a conduta da Recorrente deve ser considerada litigância de má fé; e, por força do disposto no n.º 2 do art.º 386º do Código de Processo Civil de Macau, a Recorrente deve responsabilizar-se pela indemnização por danos provocados ao Recorrido.
33. Pelo exposto, a sentença recorrida não cometeu erro na aplicação do disposto no art.º 385º do Código de Processo Civil, nela não se verificando nenhum vício.
Nestes termos, pela douta opinião dos Venerandos Juízes, requer-se que seja negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, mantendo-se a sentença a quo.”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
- O Réu era o médico que disponibilizava o tratamento estético à Autora (alínea A) dos factos assentes).
- Uma sessão do tratamento Matrix RF disponibilizada pelo Réu à Autora custava MOP3.600,00 (alínea B) dos factos assentes).
- Em meados de Maio de 2014, a Autora e o Réu acordaram verbalmente alterar o tratamento inicial para o tratamento Matrix RF, cujas despesas seriam liquidadas na quantia anteriormente paga pela Autora como despesas com o tratamento inicial (alínea C) dos factos assentes).
- Em 18 de Junho de 2014, o Réu disponibilizou à Autora a primeira sessão do tratamento Matrix RF (alínea D) dos factos assentes).
- Depois de ter sido realizadas seis sessões do tratamento inicial, a Autora perguntou ao Réu se havia tratamento para melhorar o problema de poros dilatados, portanto, o Réu sugeriu à Autora que se submetesse ao tratamento Matrix RF (artigos 2º, 48º e 49º da base instrutória).
- O Réu tinha dito à Autora que, após o tratamento Matrix RF, surgir-se-ia inflamação na pele, o período de recuperação variaria de pessoa para pessoa, e, geralmente, tal inflamação extinguiria entre 5 e 7 dias (artigos 4º e 51º da base instrutória).
- O Réu não submeteu a Autora a nenhum teste cutâneo antes da realização do tratamento em apreço (artigo 6º da base instrutória).
- A Autora sentia dor ao longo do tratamento (artigo 8º da base instrutória).
- Após o término do tratamento em causa, a Autora sofria inflamação no rosto (artigo 11º da base instrutória).
- O Réu prescreveu à Autora algumas pomadas para serem aplicadas no rosto (artigo 12º da base instrutória).
- Em dois dias posteriores ao tratamento, o eritema e a inflamação difundidos no rosto da Autora ainda não foram extintos, surgindo algumas crostas parecidas com os pixéis de computador (artigo 14º da base instrutória).
- Após o tratamento Matrix RF, a Autora apresentou várias queixas ao Réu (artigo 16º da base instrutória).
- A Autora tinha consultado e pedido tratamento a outros médicos de Hong Kong e de Macau, por ter sofrido de poros dilatados e relevo irregular encontrado parcialmente na parte superficial da pele (artigo 23º da base instrutória).
- Existiam três categorias da intensidade da radiofrequência projectada no tratamento Matrix RF, sendo nomeadamente a intensidade mais baixa – Program A, a intensidade moderada – Program B e a intensidade mais alta – Program C (artigo 26º da base instrutória).
- O Réu aplicou a radiofrequência de intensidade mais alta à Autora, ou seja, Program C (artigo 27º da base instrutória).
- O Program C é a intensidade mais alta da radiofrequência, por isso, geralmente, é utilizado no tratamento das cicatrizes mais graves, tais como as cicatrizes causadas por acne (artigo 28º da base instrutória).
- Geralmente, a intensidade mais baixa da radiofrequência – Program A era destinada ao melhoramento da textura da pele e à minimização dos poros (artigo 29º da base instrutória).
- Até o presente momento, a Autora foi, pelo menos dez vezes, à consulta médica em Hong Kong (artigo 32º da base instrutória).
- A Autora exercia funções em F, S.A., na Taipa, executando trabalhos de recepção (artigo 33º da base instrutória).
- A Autora é uma senhora e a aparência é muito importante para as senhoras, afectando directamente a autoconfiança e a capacidade de comunicação interpessoal das pessoas (artigo 37º da base instrutória).
- Antes da realização do tratamento Matrix RF, a Autora presenciava frequentemente vários tipos de actividades sociais (artigo 45º da base instrutória).
- Em 18 de Junho de 2014, a enfermeira do centro médico, G, que acabou de se submeter à 1ª sessão do tratamento Matrix RF, também estava presente no local em causa (artigo 54º da base instrutória).
- Em 18 de Junho de 2014, data em que a Autora tinha marcado para a realização da 1ª sessão do tratamento Matrix RF no centro médico do Réu, o Réu exibiu à Autora as fotografias da enfermeira G que mostraram as situações anterior e posterior ao tratamento (artigo 55º da base instrutória).
- Na altura, a Autora fez algumas perguntas à enfermeira G sobre o grau da lesão da pele surgido após o tratamento Matrix RF, a inflamação e crostas, entre outros (artigo 56º da base instrutória).
- Em 18 de Junho de 2014, a Autora assinou o folheto de informação de fls. 109 dos autos e se submeteu à 1ª sessão do tratamento Matrix RF (artigo 58º da base instrutória).
- Antes de a Autora se submeter à 1ª sessão do tratamento Matrix RF, o Réu tinha comunicado claramente à Autora que iriam aparecer a inflamação e as crostas no rosto depois do tratamento (artigo 59º da base instrutória).
- Em 4 de Julho de 2014, o Réu fotografou a Autora, comparando o estado da pele do rosto na dada altura e o estado da pele no momento em que a Autora se submeteu à 1ª sessão do tratamento Matrix RF (18 de Junho de 2014) (artigo 62º da base instrutória).
- A Autora consultou várias vezes os médicos de Macau e de Hong Kong, a fim de tratar também o problema de herpes labiais ou se submeter ao tratamento de eliminação de rugas e tratamentos estéticos “M plan testa” e “M plan eye”, bem como tomar “BOTOX 3 SITES” (injecção da toxina botulínica) (artigo 64º da base instrutória).
- As despesas médicas que foram reclamadas pela Autora ao Réu, abrangeram as despesas com tratamento dos problemas mencionados na resposta ao artigo 64º do factum probandum (artigo 65º da base instrutória).
- A Autora tinha a intenção de transmitir ao Réu a responsabilidade pelo pagamento das despesas com tratamento dos problemas mencionados na resposta ao artigo 64º do factum probandum (artigo 66º da base instrutória).
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III – O Direito
Está em causa, no presente recurso, unicamente a condenação da autora como litigante de má fé.
A sentença declarou, efectivamente, a autora como litigante de má fé, tendo-a, por isso, condenado em multa de 10UCs e no pagamento dos honorários do réu ao seu advogado.
Para assim decidir, a sentença achou que o pedido indemnizatório formulado pela autora não tinha fundamento no, alegadamente, deficiente tratamento que o réu fez no seu rosto na clínica “C Medical Centre”. Em vez disso, concluiu que a autora alterou a verdade dos factos e que as despesas que ela efectuou após aquele tratamento facial junto de outras clínicas em Macau e em Hong Kong tinham objectivo puramente estético, sem qualquer relação com os problemas derivados do indevido e pretensamente culposo tratamento a que o réu a submeteu.
A questão essencial está, então, no seguinte: Embora admitindo que a autora apresentasse “pele dura”, “relevo irregular como casca de laranja”, “dilatação de poros”, “secura”, rubefacção e comichão” e “alergia grave” na pele do rosto, a sentença considerou que tais problemas não provocam “herpes labial” que a tivesse levado a submeter-se ao tratamento a essa patologia, bem como ao tratamento para eliminação de rugas, às terapias estéticas “M plan testa” e “M plan eye” e à administração, por injecção sub-cutânea, de toxina botulínica, vulgo “botox”. Deste modo, não podia reclamar o pagamento das despesas efectuadas com estes tratamentos.
Não concordamos com a sentença, na parte impugnada.
Com efeito, não está demonstrado nos presentes autos que o herpes labial não possa ter sido manifestação cutânea do tratamento administrado à autora e aos efeitos nefastos dele decorrentes, tal como ela os invocou. E sendo assim, não está este tribunal em condição de afirmar que uma coisa nada tem que ver com a outra, até porque, como se pode constatar nas páginas difundidas pela internet, o stress, emocional ou físico, pode desencadear a reactivação do vírus e até causar novas feridas e sintomas. Ou seja, temos que admitir ser possível que a situação emocional em que a autora se viu envolvida – pensava que ia tratar-se e viu-se com o problema alegadamente agravado – possa ter activado ou reactivado a doença.
Da mesma maneira, o facto de ela ter querido eliminar rugas e ter procedido a tratamentos estéticos “M plan testa” e “M plan eye”, e até ter injectado “botox” não significa que tivesse querido “aproveitar-se” da acção para se locupletar à custa do réu. É preciso admitir, também aqui, a boa intenção dela quando quis fazer tais tratamentos e não, necessariamente, o contrário.
Temos que compreender a autora: se ela foi fazer um tratamento ao rosto, provavelmente jamais lhe teria passado pela mente a possibilidade de vir a ficar com as sequelas que elencou na petição inicial em resultado de um alegado deficiente e culposo serviço prestado pelo réu.
O mais natural é que se inteirasse junto de outros profissionais, em Macau ou fora dele, acerca da possibilidade de recuperar o mais possível a melhor imagem que antes do tratamento apresentava. Isso é perfeitamente normal numa senhora, ainda por cima sendo alguém que lidava com o público no resort “F, SA” em serviço de recepção e atendimento de clientes.
E recuperar o rosto não é apenas a face, mas também a parte dos olhos e a testa, inclusive através de “botox”.
Portanto, estes tratamentos que ela fez, embora tivessem levado a sentença a considerá-los não indemnizáveis (mas isso não está em causa no recurso), não são necessariamente feitos à revelia total dos problemas que alegou em consequência do deficiente tratamento feito pelo réu. Quer dizer, podemos tentar compreendê-los, enquanto modo de aliviar o mau aspecto estético com que a autora diz ter ficado em resultado do tratamento Matrix RF administrado pelo réu na sua clínica.
Tudo isto para dizer que a intenção de imputar a responsabilidade ao réu, quanto a estas despesas, não passa de uma posição compreensível no quadro de uma causa de pedir que tem que ser justificada para a pretensão sair vitoriosa.
Quando o autor não obtém ganho de causa nem sempre pode ser tido como litigante de má fé, como se sabe. Na verdade, só é litigante de má fé quando, com dolo ou culpa grave, quem deduz pretensão ou oposição que sabia, ou não devia ignorar, não ter qualquer fundamento (art. 385º, nº2, al. a), do CPC).
Em suma, não julgamos estarem verificados os requisitos da má-fé necessários à aplicação da multa e da indemnização, face ao disposto nos arts. 385º e 386º, do CPC.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença na parte referente à declaração como litigante de má fé, bem como à condenação em multa e indemnização com aquele fundamento.
Sem custas.
T.S.I., 30 de Maio de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
845/2018 20