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Processo n.º 6/2015. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorridos: B e C.
Assunto: Perícia. Audiência contraditória. Artigo 446.º do Código de Processo Civil. Presunções judiciais. Facto falso. Artigos 344.º e 387.º, n.º 2, do Código Civil.
Data do Acórdão: 26 de Junho de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
I – Junto ao processo cível relatório pericial elaborado no âmbito de processo-crime, ao mesmo se aplica o n.º 1 do artigo 446.º do Código de Processo Civil.
II – O relatório pericial mencionado na Conclusão I não pode ser invocado no processo cível se o réu não interveio no processo-crime, ao qual o relatório se destinou, por não ter sido produzido em processo com audiência contraditória.
III - Um facto provado plenamente por documento autêntico pode ser declarado falso com base em documentos ou prova pericial; mas não com base ou testemunhas ou presunções judiciais.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
   B e C intentaram acção declarativa com processo comum ordinário contra A, D, E, F e G, pedindo a declaração de falsidade de uma procuração alegadamente outorgada a 19 de Maio de 2003 por H, a anulação ou a declaração de nulidade de contratos de compra e venda de 4 fracções autónomas, celebrados através de duas escrituras públicas celebradas em 29 de Maio de 2003 e 14 de Janeiro de 2004, o cancelamento dos respectivos registos efectuados e a declaração de que a 2.ª ré e seu falecido marido H são os únicos proprietários das mencionadas fracções.
  A acção foi julgada improcedente, sendo os réus absolvidos dos pedidos, por sentença de 1.ª Instância.
  Em recurso interposto pelos autores, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), decidiu:
- Modificar a decisão da matéria de facto, considerando como provados os quesitos 6.º a 8.º da Base Instrutória;
- Declarar a falsidade da procuração de 19/05/2003, outorgada por H no Consulado Geral de Portugal de Hong Kong;
- Declarar a ineficácia relativa, nos termos acima consignados, da venda das seguintes fracções autónomas:
- “C-5” e “D-5”, ambas para indústria, a que correspondem, respectivamente, as letras C e D do 5.º andar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 64 do Livro XXX.
- “B1CC1R/C” do rés-do-chão “B1CC1”, com sobreloja, para comércio, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 136 do Livro XXX.
- Manter a sentença recorrida nas partes que não colidam com os supra decididos.
Recorre, agora, a ré A, para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- Nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia relativamente à questão de litispendência da falsidade da procuração outorgada a 19 de Maio de 2003, suscitada pela ora recorrente, então recorrida, no recurso para o TSI;
- Violação do disposto nos artigos 446.º e 438.º do Código de Processo Civil na alteração da matéria de facto, dado que o ora recorrente não teve qualquer intervenção no Processo-crime CR1-09-0203-PCC onde foi realizado o exame pericial da Polícia Judiciária à Procuração outorgada a 19 de Maio de 2003 por H;
- Declaração da falsidade da procuração - Violação dos artigos 387.º e 344.º do Código Civil, já que para alterar o sentido das respostas aos quesitos 6.º a 8.º da base instrutória o acórdão recorrido estabelece um raciocínio assente em conclusões presuntivas. Acontece que in casu estava vedado ao Tribunal a quo tirar tais conclusões presuntivas, porque as presunções judiciais só são permitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal – art.º 344.º do CC. E prova testemunhal não é admissível quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena – art.º 387.º, n.º 2, do CC – designadamente factos provados por documento autêntico – artigo 365.º, n.º 1, do CC – como sucede no caso em apreço.

II – Os factos
O Tribunal de 1.ª Instância considerou provados os seguintes factos:
- H1, aliás H, faleceu em 12 de Junho de 2004, em Hong Kong (cfr. Doc. n.º 1 junto com o requerimento inicial da providência cautelar), no estado de casado com D aliás D1 (aqui 2ª Ré), casamento que foi contraído, em primeiras núpcias de ambos, no regime da comunhão de adquiridos e do qual resultaram 4 filhos: os aqui Autores e os seus irmãos E e F (aqui, 3ª e 4º Réus, respectivamente) (alínea A) dos factos assentes).
- H morreu intestado, deixando a viúva e os filhos como os seus únicos e universais herdeiros (alínea B) dos factos assentes).
- H, em 1998, foi raptado, tendo, para além do sofrimento moral, ficado com sequelas físicas nomeadamente com ferimentos numa perna que, por ser portador de uma doença crónica – diabetes mellitus, não se curaram, aliadas a tal doença, outras complicações surgiram, tais como, problemas coronários graves, que determinaram duas intervenções cirúrgicas (angioplastia com aplicação de stent), entre Maio e Dezembro de 2002 e problemas renais, que o obrigaram a fazer hemodiálise, no HK Hospital, desde Novembro de 2002 até ao dia 10 de Junho de 2004, isto é, até à antevéspera do dia em que veio a falecer com dificuldades respiratórias e, ainda, problemas de visão e de movimentação (alínea C) dos factos assentes).
- Por escritura pública de 3 de Agosto de 2004, exarada de fls. 9 a 10 verso do livro de notas para escrituras diversas número 7L do 2º Cartório Notarial Público de Macau, foi feita a habilitação da qualidade de herdeiros. (cfr. Doc. n.º 2 junto nos autos da providência cautelar) (alínea D) dos factos assentes).
- Com base na certidão da referida escritura da habilitação de herdeiros, foi apresentado, em 2 de Fevereiro de 2005, pedido para registo da aquisição pelos herdeiros, em comum e sem determinação de parte, dos seguintes imóveis:
i. cinco fracções autónomas designadas por “B8”, “C8”, “E8”, “D8” e “F8”, todas para escritório, do prédio sito na [Endereço (1)], freguesia da Sé, em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, a fls. 15 do livro XXXX, constituído em propriedade horizontal; (cfr. Doc. n.º 3 junto nos autos da providência cautelar)
ii. o prédio urbano, sito na [Endereço (2)], freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, a fls. 164, do livro XXXX, formado por dois lotes (XX e XX), sendo que consta que a finalidade do edifício com 5 pisos construído no Lote XX, se destina a Indústria, Armazéns e Serviços e no lote XX é afectado a uma fábrica de estacas de betão e de outros produtos de construção civil; (cfr. Doc. n.º 4 junto nos autos da providência cautelar)
iii. em 10 de Setembro de 2004, o pedido de registo de aquisição pelos herdeiros, sem determinação de parte ou direito, da quota (transmissão por sucessão) que o seu falecido pai detinha na sociedade comercial por quotas denominada “I”, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXXX; (cfr. Doc. n.º 5 junto nos autos da providência cautelar)
iv. o pedido de registo de aquisição pelos herdeiros, sem determinação de parte ou direito da quota que o seu falecido pai dos Requerentes detinha na sociedade comercial por quotas denominada “J”, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXXX. (cfr. Doc. n.º 6 junto nos autos da providência cautelar (alínea E) dos factos assentes).
- Nas escrituras públicas de compra e venda efectuadas no dia 29 de Maio de 2003, lavrada a fls. 34 do livro XX-X e no dia 14 de Janeiro de 2004, lavrada a fls. 9 do livro XX-X, ambos do Cartório do Notário Privado Dr. K, nas quais, outorgou o 5º Réu G, na qualidade de procurador de H (pai dos Autores ora 2ª Ré) e sua mulher D (mãe dos Autores), como vendedores, das fracções autónomas a seguir identificadas (alínea F) dos factos assentes):
- A fracção autónoma designada por “C-5” do 5º andar “C”, para indústria, do prédio sito em Macau na [Endereço (3)] e [Endereço (4)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 64 do Livro XXX, com o regime de propriedade horizontal inscrito sob o n.º XXXXX a fls. 79v do Livro XXX, registada em nome da 1ª Ré conforme inscrição n.º XXXXXX (cfr. Doc. n.º 7 junto com o requerimento inicial da providência cautelar), inscrito na matriz predial da freguesia de Santo António sob o artigo XXXXX (cfr. Doc. n.º 8) (alínea G) dos factos assentes).
- À data da venda, o valor matricial era de MOP$1,428,660, mas o preço da transmissão foi fixado pelas partes no valor de MOP$800,000 (alínea H) dos factos assentes).
- A fracção autónoma designada por “D-5” do 5º andar “D”, para indústria, do prédio sito em Macau na [Endereço (3)] e [Endereço (4)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 64 do Livro XXX, com o regime de propriedade horizontal inscrito sob o n.º XXXXX a fls. 79v do Livro XXX, registada em nome da 1ª Ré conforme inscrição n.º XXXXXX (cfr. Doc. n.º 7 ), inscrito na matriz predial da freguesia de Santo António sob o artigo XXXXX (cfr. Doc. n.º 9 (alínea I) dos factos assentes).
- À data da venda, o valor matricial era de MOP$984,380, mas o preço da transmissão foi fixado pelas partes no valor de MOP$550,000 (alínea J) dos factos assentes).
- A fracção autónoma designada por “B1CC1R/C” do rés-do-chão “B1CC1”, com sobreloja, para comércio, do prédio sito em Macau na [Endereço (5)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 136 do Livro XXX, com o regime de propriedade horizontal inscrito sob o n.º XXXX a fls. 122 do Livro XXX, registada em nome da 1ª Ré conforme inscrição n.º XXXXXX (cfr. Doc. n.º 10 junto com o requerimento inicial da providência cautelar), inscrito na matriz predial da freguesia de Santo António sob o artigo XXXXX. (cfr. Doc. n.º 12) (alínea K) dos factos assentes).
- A fracção autónoma designada por “AC/V” da cave “A”, para armazém, do prédio sito em Macau na [Endereço (5)], descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 136 do Livro XXX, com o regime de propriedade horizontal inscrito sob o n.º XXXX a fls. 122 do Livro XXX, registada em nome da 1ª Ré conforme inscrição n.º XXXXXX (cfr. Doc. n.º 10), inscrito na matriz predial da freguesia de Santo António sob o artigo XXXXX. (cfr. Doc. n.º 11 junto com o requerimento inicial da providência cautelar) (alínea L) dos factos assentes).
- O 5º Réu G, para proceder à venda das 4 fracções supra identificadas, teve que fazer uso de duas procurações diferentes (alínea M) dos factos assentes).
- Na verdade, para vender as duas fracções autónomas, para indústria, designadas por C-5 e D-5, respectivamente, a que correspondem as letras C e D do 5º andar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 64 do Livro XXX e a fracção “B1CC1R/C” do rés-do-chão “B1CC1”, com sobreloja, para comércio, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 136 do Livro XXX, o 5º Réu G fez uso da procuração que foi outorgada no dia 19 de Maio de 2003, no Consulado Geral de Portugal em Hong Kong (alínea N) dos factos assentes).
- Para vender a fracção autónoma designada por “AC/V” da CAVE “A”, para armazém, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX a fls. 136 do Livro XXX, fez uso da procuração feita em Hong Kong e aí autenticada pelo notário Público L, no dia 7 de Janeiro de 2004 (alínea O) dos factos assentes).
- Conforme a procuração de 19 de Maio de 2003, pode ler-se: “Aos dezanove dias do mês de Maio do ano de dois mil e três, neste Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong, perante mim, M, Cônsul-Geral, compareceram como outorgantes: H e sua mulher D ...” (alínea P) dos factos assentes).
- Uma das assinaturas que se vêm apostas na procuração do dia 7 de Janeiro de 2004, é a do H (alínea Q) dos factos assentes).
- O falecido H era titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- Na altura da venda da fracções identificadas nas alíneas G), I), K) e L) da matéria de facto assente, o falecido H encontrava-se muito debilitado fisicamente, por via da sua doença progressiva (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- Em 2003, o mercado imobiliário de Macau estava muito baixo (resposta ao quesito da 11º da base instrutória).
- As fracções autónomas para indústria há pouca procura (resposta ao quesito da 12º da base instrutória).
- Por outro lado, perante a situação de má economia de Macau nos anos 2002 e 2003 e o problema de doença SARS em 2003, não se registava grande movimento de transacção das fracções autónomas quer para habitação, quer para comércio ou indústria (resposta ao quesito da 13º da base instrutória).
- É também do conhecimento geral que quer na época em que há grande movimento de negócio de investimento predial, quer na altura em que não há procura de fracção autónoma, o valor matricial não coincide com o valor de mercado (resposta ao quesito da 14º da base instrutória).
- O 1º Autor sabia que o seu pai estava no uso das suas faculdades mentais, aceitando as instruções dadas por aquele, para vender a si próprio uma fracção autónoma, em Abril de 2004 (resposta ao quesito da 15º da base instrutória).

III – O Direito
1. Questões a apreciar
Há que conhecer das questões suscitadas pela recorrente.


2. Omissão de pronúncia relativamente à questão de litispendência da falsidade da procuração
Alega a recorrente a nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia relativamente à questão de litispendência da falsidade da procuração outorgada a 19 de Maio de 2003, suscitada pela ora recorrente, então recorrida, no recurso para o TSI.
Toda a defesa tem de ser deduzida na contestação (artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). É certo que as excepções de conhecimento oficioso podem ser deduzidas posteriormente (n.º 2 do mesmo artigo), mas o Tribunal só pode delas conhecer se os factos em que se baseiam tiverem sido alegados na contestação. Como explicam J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO 1 “(D)e qualquer modo, o conhecimento oficioso da excepção não se confunde com o conhecimento dos factos em que ela se baseia. Estes têm, de acordo com os artigos 264-1 e 664,2de ser alegados pelas partes, ao abrigo do princípio dispositivo, limitando-se o juiz a extrair deles a consequência jurídica própria da excepção”. O Tribunal conhece oficiosamente da maioria das excepções dilatórias e peremptórias, “sem prejuízo de os factos em que as excepções se baseiem só poderem ser introduzidos nos processos pelas partes … na fase dos articulados ou com os limites definidos para a alegações de facto em articulado superveniente”3.
Ora, os recorrentes não alegaram os factos pertinentes nem na contestação (fls. 334) nem em articulado superveniente.
Por outro lado, o tribunal de recurso não tem obrigação de se pronunciar sobre questões suscitadas pelo recorrido. Excepto nos casos previstos na lei, por exemplo, no artigo 590.º do Código de Processo Civil.
Improcede a questão suscitada.

3. Exame pericial da Polícia Judiciária à Procuração outorgada a 19 de Maio de 2003 por H.
Invoca a recorrente a violação do disposto nos artigos 446.º e 438.º do Código de Processo Civil na alteração da matéria de facto, dado que o ora recorrente não teve qualquer intervenção no Processo-crime CR1-09-0203-PCC onde foi realizado o exame pericial da Polícia Judiciária à Procuração outorgada a 19 de Maio de 2003 por H.
Os quesitos 6.º a 8.º da Base Instrutória têm a seguinte redacção:
6.º
  H não se deslocou, no dia 19 de Maio de 2003, ao Consulado Geral de Portugal em Hong Kong, para o acto de outorga da procuração?
7.º
  Nem, tão-pouco, rubricou e assinou a referida procuração, tendo sido a sua assinatura falsificada por alguém?
8.º
  No dia 19 de Maio de 2003, H não saiu do Hospital onde estava internado?

O Tribunal Colectivo de 1.ª Instância julgou os factos em questão não provados.
Impugnada esta decisão, o acórdão recorrido revogou-a e julgou provada a matéria de facto em causa.
Para tal, o acórdão recorrido baseou-se em dois elementos:
- Declaração médica do Hong Kong X Hospital, Ltd., segundo o qual:
                    “29th August 2005
TO WHOM IT MAY CONCERN
Re: H1, ID No. XXXXXXX(X)
This is to certify that the above named patient had not taken any “Home Leave” during his stay in our Hospital for the period from 14th May 2003 – 22nd May 2003”
- Relatório de exame pericial do Departamento de Ciências Forenses da Polícia Judiciária à Procuração outorgada a 19 de Maio de 2003, por H, realizado em 8 de Outubro de 2008, por um técnico e comprovado por técnico superiora, no âmbito de inquérito-crime, segundo o qual:
A assinatura “XXX” e “H” na procuração não foram feitas pelo H.
Antes de mais, é inócuo o que o acórdão recorrido expendeu a propósito, de que o Relator admitiu o relatório pericial em questão, por despacho transitado em julgado, pelo que tem o mesmo de ser considerado. Isto é, apesar de o documento ter sido admitido, isso não quer dizer que possa ser valorado. Se o for, importa ver se se violaram as normas que regulam a apreciação das provas, pelo tribunal que julga a matéria de facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 446.º do Código de Processo Civil:
“Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 348.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova”.
No caso trata-se de resultado de prova pericial, realizada no âmbito de processo-crime.
Afigura-se-nos que tem de se aplicar a norma relativa ao valor extraprocessual de depoimentos e perícias. De outra forma, haveria fraude à lei, valorando-se como documento o que constitui verdadeira perícia, torneando as normas que impõe contraditório neste tipo de provas, o que não sucede com a prova documental, no que respeita ao modo de formação.
Quanto ao mérito, foi violado efectivamente o disposto no n.º 1 do artigo 446.º do Código de Processo Civil, pelo acórdão recorrido, já que a 2.ª ré não interveio no processo-crime em questão, pelo que a perícia, não tendo sido produzida num processo com audiência contraditória da parte não pode ser invocada noutro processo contra a mesma parte.
De resto, os autores podiam ter requerido perícia a tal procuração nos presentes autos. Não o fizeram, pelo que não podem invocar a perícia realizada sem audiência contraditória da outra parte.
Procede o recurso nesta parte, quanto à utilização do Relatório Pericial para reverter a decisão de facto.

4. Prova por presunções
Alega a recorrente violação dos artigos 387.º e 344.º do Código Civil, já que para alterar o sentido das respostas aos quesitos 6.º a 8.º da base instrutória o acórdão recorrido estabelece um raciocínio assente em conclusões presuntivas. Isto porque o acórdão recorrido assentou em presunções para dar como provado que H não se deslocou ao Consulado de Portugal em Hong Kong e para concluir que não assinou a procuração.
Acontece que, acrescenta a recorrente, in casu estava vedado ao Tribunal a quo tirar tais conclusões presuntivas, porque as presunções judiciais só são permitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal – art.º 344.º do CC. E prova testemunhal não é admissível quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena – art.º 387.º, n.º 2, do CC – designadamente factos provados por documento autêntico – artigo 365.º, n.º 1, do CC – como sucede no caso em apreço.
Como se viu, o médico apenas certificou que «the above named patient had not taken any “Home Leave” during his stay in our Hospital for the period from 14th May 2003 – 22nd May 2003».
O acórdão recorrido, a partir deste documento, afirmou que o doente estava internado no Hospital em determinado período e que o médico certificou que o mesmo não beneficiou de qualquer saída.
Mas não é isso que o documento certifica. Apenas que o doente não foi autorizado a sair.
Logo, para chegar à conclusão de que o H não esteve no Consulado de Portugal em Hong Kong, porque estava internado em Hospital, socorreu-se o acórdão recorrido de presunções judiciais.
É exacto que não é admitida prova por testemunhas quando o facto está plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena (artigo 387.º, n.º 2, do Código Civil).
O que se aplica às presunções judiciais (artigo 344.º do Código Civil).
E o facto de que H outorgou procuração estava plenamente provado por documento autêntico.
Afigura-se-nos ter razão a recorrente ao dizer que o acórdão recorrido assentou em presunções para dar como provado que H não se deslocou ao Consulado de Portugal em Hong Kong e para concluir que não assinou a procuração. Violou, assim, o disposto nos artigos 344.º e 387.º, n.º 2, do Código Civil.
Um facto provado plenamente por documento autêntico pode ser declarado falso com base em documentos ou prova pericial. Mas não com base ou testemunhas ou presunções judiciais.4
Procede, assim, o recurso, pelo que se revoga o acórdão recorrido na parte em que julgou provados os quesitos 6.º a 8.º da Base Instrutória e na parte em que declarou a falsidade da procuração de 19/05/2003, outorgada por H no Consulado Geral de Portugal de Hong Kong.
Com esta revogação, fica sem suporte a decisão do acórdão recorrido de declarar a ineficácia relativa da venda das fracções autónomas em causa, que é também revogada.
Atendendo que o recurso dos autores para o TSI assentava exclusivamente nos aspectos acima mencionados (impugnação da matéria de facto e falsidade da procuração), impõe-se julgar a acção improcedente, como se decidiu em 1.ª Instância.

IV – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido para ficar a subsistir a sentença de 1.ª Instância, que julgou improcedente a acção.
Custas pelos ora recorridos nas duas instâncias de recurso.
Macau, 26 de Junho de 2019.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
  


     1 J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código..., Volume 2.º, p. 344.
     2 Correspondendo, respectivamente, aos artigos 5.º, n.º 1 e 567.º do Código de Macau.
     3 J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código..., Volume 2.º, p. 323.
     4 RITA LYNCE DE FARIA, anotação ao artigo 347.º do Código Civil português, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 821.
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