Processo nº 554/2016(*) Data: 30.05.2019
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Divórcio (Litigioso).
Matéria de facto.
Livre convicção do Tribunal.
Deveres conjugais.
Dever de respeito.
SUMÁRIO
1. O Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada; (cfr., art. 558° do C.P.C.M.).
2. Uma “certidão” extraída de um processo crime e (oportunamente) junta aos autos (de divórcio), constitui elemento probatório sujeito ao “princípio da livre apreciação das provas”, nenhum vício existindo se for valorada para a formação da convicção do Tribunal e consequente decisão da matéria de facto.
3. A violação “culposa” e “grave” dos deveres conjugais constitui fundamento de divórcio (litigioso).
4. Viola o “dever de respeito”, o cônjuge que ofende a integridade física e/ou moral do outro.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 554/2016(*)
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, A., propôs e fez seguir acção especial de divórcio litigioso contra B, R., alegando violação por parte desta dos deveres conjugais e separação de facto há mais de 2 anos.
A final, pediu que fosse decretado o divórcio entre A. e R.; (cfr., fls. 2 a 7-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Após tempestiva contestação da R., (cfr., fls. 40 a 48), e realizada a audiência de julgamento, proferiu o Exmo. Juiz Presidente do Colectivo sentença, julgando a acção procedente e decretando o requerido divórcio com culpa da R.; (cfr., fls. 226 a 231).
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Inconformada com o assim decidido, a R. recorreu.
Em sede das suas alegações, concluiu pedindo a “revogação da sentença recorrida e que seja o divórcio decretado com culpa do A.”; (cfr., fls. 242 a 270).
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Em resposta, bate-se o A. pela improcedência do recurso da R.; (cfr., fls. 278 a 286).
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Admitido o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, vieram os autos a este T.S.I..
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Cumpre apreciar e decidir.
Fundamentação
2. Vem interposto recurso da sentença que, considerando ter a R. violado o “dever de respeito” a que, como cônjuge, estava obrigada para com o A., julgou procedente o pedido por este deduzido e decretou o requerido “divórcio (litigioso) com culpa da R.”.
Em sede do seu recurso, e, em síntese que se nos apresenta adequada, entende a R., ora recorrente, que a decisão recorrida padece de “insuficiência da matéria de facto” e “erro na decisão da (mesma) matéria de facto”.
Com efeito, é de opinião de que “Para decretar o divórcio com fundamento na violação do dever de respeito, o tribunal a quo deve averiguar o “nível de educação” e a “sensibilidade moral dos cônjuges””, (cfr., concl. 1ª), e que a “matéria de facto” que permitiu a consideração de que a R. violou o “dever de respeito” deveria ter sido considerada “não provada”; (cfr., concl. 4ª e seguintes).
Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.
–– Ponderando nas questões colocadas, cremos que se deve começar pelo assacado “erro”, pois que da sua procedência, imperativa é a revogação da decisão recorrida.
Pois bem, como o próprio Tribunal a quo considerou, (com relevo para a decisão proferida), está provado que:
“Em 12.01.2014 B ralhou com A mostrando-se violenta (…) o Sérgio com medo de ser atacado pela B fechou-se e trancou-se dentro do quarto de arrumos do apartamento.
A B batia com o corpo na porta do quarto de arrumos e ralhava alto tendo os vizinhos chamado a polícia.
Depois de a Polícia ter chegado ao local o A foi viver para casa do seu tio C e na mesma data a B foi viver para casa da sua mãe”; (cfr., fls. 229).
E, com excepção do “último parágrafo” da transcrita factualidade, é a R. de opinião que o (restante) decidido padece de “erro na apreciação da prova”.
Da reflexão que sobre a questão pudemos efectuar, cremos que censura não merece o decidido.
Explicitando os “motivos” que levaram o Tribunal Colectivo a (formar a sua convicção e a) decidir nos termos que decidiu, consignou-se, (nomeadamente), no Acórdão que julgou a matéria de facto que:
“(…)
A terceira testemunha ouvida, é o agente da PSP que foi a casa do Autor e da Ré no dia 12.01.2014, já também ouvido no processo-crime – cfr. certidão a fls. 139 a 144 – estando o resumo das suas declarações a folhas 142v e 143 ali referindo que quando chegou ao local ainda viu a aqui Ré a atirar-se contra a porta do quarto de arrumos dentro do qual o aqui Autor se havia trancado, tendo nestes autos relatado que quando chegou ao local a porta de madeira do apartamento estava aberta e a grade ferro fechada tendo visto a Ré a andar de um lado para o outro a ralhar em voz alta, mostrando-se violenta pelo que por ordem sua não deixou que o aqui Autor saísse do quarto onde se tinha trancado até aquela ser conduzida ao hospital – tendo o agente chamado uma ambulância para o efeito - por achar que a senhora não oferecia segurança e estava muito exaltada, temendo pela segurança do aqui Autor. O agente da autoridade reconheceu também a foto de folhas 23 como sendo o estado em que ficou a porta do quarto de arrumos depois do episódio do dia 12.01.2014”; (cfr., fls. 195-v a 196).
Entende a R. ora recorrente que constituindo os referidos “documentos de fls. 133 a 145” uma mera certidão extraída de um processo crime no qual era ofendida, (sendo arguido, o ora recorrido), não possui valor probatório que permita dar como provada a matéria de facto em questão.
Não se mostra de subscrever o assim considerado.
Independentemente do demais, importa ter em conta que nos termos do art. 558° do C.P.C.M.:
“1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada”.
E, a dita “certidão”, (ainda que não constituindo elemento probatório ao qual estivesse o Tribunal vinculado, tendo que decidir em sua conformidade), foi objecto da “livre apreciação” do Colectivo a quo; (sobre a matéria, cfr., v.g., V. Lima in “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, pág. 523, onde se considera que “No julgamento da matéria de facto, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. É a regra relativamente à apreciação da prova testemunhal (artigo 390.° do CC), pericial (artigo 383.° do CC), inspecção judicial (artigo 385.° do CC), documental em todos os casos em que a lei não atribua prova plena (artigos 359.°, 365.°, 366.°, 370.°, 371.°, 374.°, 375.°, 376.°, 377.°, 378.°, 379.°, 380.°, 381.° do CC) e com a confissão judicial não escrita, com a confissão extrajudicial (constante de documento) feita a terceiro ou contida em testamento, e com a confissão extrajudicial não constante de documento nos casos em que seja admissível prova testemunhal (artigo 351.°, n.os 3 e 4, do CC).
(…)”.
E, como tal, nada há a censurar.
Diz também a ora recorrente que não teve poderes processuais para intervir no processo crime de onde foi extraída a dita certidão, não se lhe podendo atribuir o “valor probatório” que o Tribunal lhe reconheceu.
Porém, outro é o nosso entendimento.
Com efeito, e antes de mais, não vislumbramos motivos para considerar que a ora recorrente, enquanto “ofendida” no aludido processo crime, não teve oportunidade de intervir na respectiva audiência de julgamento.
Teria, certamente, (os mais amplos poderes para tal), caso quisesse, e se tivesse constituído “assistente”.
Mas, ainda que assim não tenha sucedido, e (ainda que) como mera “ofendida”, teve (obviamente) oportunidade de prestar declarações e de se pronunciar sobre os factos então objecto do processo, não se nos mostrando adequado dizer que foi totalmente “alheia” ao que ocorreu na audiência em questão.
Por sua vez, há que ter presente que a certidão em questão foi expressamente extraída para ser junta ao presente processo, o que sucedeu em momento processual adequado, (cfr., fls. 139 a 144-v), e que sobre a mesma, (e o seu teor), teve a ora recorrente toda a oportunidade de se pronunciar, nomeadamente, opondo-se à sua junção e/ou contestando o que da mesma consta, (dado que da sua junção e admissão foi notificada, cfr., fls. 149 e 164), e, não o tendo feito, não nos parece que seja o presente recurso a sede própria para se colocar a questão da forma que o faz a recorrente.
Por fim, também não é de olvidar que o agente da P.S.P. que se deslocou à então casa de morada de família da ora recorrente e presenciou (e relatou) o ocorrido, (esteve presente e) prestou declarações na audiência de julgamento que culminou com a prolação da sentença ora recorrida, inegável se nos apresentando que – pelo menos – nela, teve a ora recorrente (toda a) oportunidade de exercer o (mais amplo) contraditório nos termos que o entendesse por adequado.
E se “não o fez”, ou se o “fez sem sucesso”, visto está que terá agora que suportar as suas consequências (legais).
Dito isto, e nenhum reparo nos merecendo assim a “decisão da matéria de facto” em questão, imperativo é concluir que, nesta parte, o recurso terá que improceder.
–– Quanto à alegada “insuficiência da matéria de facto”.
Pois bem, em relação a esta “questão”, e como se deixou relatado, diz a recorrente que “Para decretar o divórcio com fundamento na violação do dever de respeito, o tribunal a quo deve averiguar o “nível de educação” e a “sensibilidade moral dos cônjuges””; (cfr., concl. 1ª).
Ora, também aqui, não nos parece que tenha a recorrente razão.
Vejamos.
Como sabido é, “Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência”, (cfr., art. 1533° do C.C.M.), e nos termos do art. 1635°, n.° 1 do mesmo código, o divórcio só pode ser decretado se houver “violação culposa dos deveres conjugais” (de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência) que, pela sua “gravidade ou reiteração”, “comprometa a possibilidade de vida em comum”.
Dissecando o “dever de respeito”, escrevem os Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, (in “Curso de Direito de Família, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora 2003, págs. 389/390”), que: “(…) «o dever de respeito é um dever ao mesmo tempo negativo e positivo. Como dever negativo, ele é, em primeiro lugar, o dever que incumbe a cada um dos cônjuges de não ofender a integridade física ou moral do outro, compreendendo-se na “integridade moral” todos os bens ou valores da personalidade cuja violação, na lição ainda actual de Manuel de Andrade, constituía “injúria”… Infringe o dever de respeito o cônjuge que maltrata ou injuria o outro; …”.
No caso dos autos, e como se viu, no que para agora releva, está provado que:
“Em 12.01.2014 B ralhou com A mostrando-se violenta (…) o Sérgio com medo de ser atacado pela B fechou-se e trancou-se dentro do quarto de arrumos do apartamento”, e que,
“A B batia com o corpo na porta do quarto de arrumos e ralhava alto tendo os vizinhos chamado a polícia. (…)”; (cfr., fls. 229).
E ainda que a matéria de facto seja omissa no que toca ao alegado “nível de educação” e “sensibilidade moral dos cônjuges”, não nos parece que tal circunstância deva levar à revogação do decidido.
Com efeito, (para além de se nos mostrar que perante a “factualidade dada como provada”, dispensável era tal apuramento), inegável é que foi tal aspecto objecto de “consideração” e “reflexão” por parte do Mmo Juiz Presidente do Colectivo autor da sentença recorrida.
Vale pois a pena ter presente o que se consignou:
“O dever de respeito exige que os cônjuges se tratem entre si com a urbanidade e cortesia própria do meio social em que se inserem, ou se insere cada um deles, sendo relevante para o efeito o grau de educação e sensibilidade moral dos cônjuges.
O dever de respeito traduz-se na urbanidade com que os cônjuges devem tratar entre si de acordo com o seu nível de educação e sensibilidade moral.
É vedado aos cônjuges agredirem-se seja física ou psiquicamente, injuriarem-se, ou grosso modo, assumirem condutas ou proferirem verbalizações que pelo seu conteúdo sejam susceptíveis de ferir a sensibilidade do outro.
Face ao disposto no nº 2 do artº 1635º do C.Civ. a violação de todos os deveres conjugais, mas de modo especial no que ao de respeito concerne terá sempre que ser aferida em face da sensibilidade e do grau de educação de cada um dos cônjuges.
Sem prejuízo de, no que concerne a determinado tipo de comportamentos e condutas, pelo seu desvalor social e até ilicitude, a simples prática ou tentativa das mesmas ser suficiente para se considerar violado o dever de respeito.
Tal é sem dúvida o caso de agressões físicas ou tentativa de, conduta que pela sua gravidade e perigosidade é bastante para se concluir pela violação do dever de respeito.
Ora face à factualidade apurada dúvidas não subsistem que a conduta da Ré no dia 12 de Janeiro de 2014 a qual demandou a intervenção policial a pedido dos vizinhos pela agressividade que denotou constitui violação do dever de respeito a que estava obrigada, indo muito para além do que aquilo que se pretende fazer crer ser uma mero estado de exaltação.
Ainda que seja concebível algum nível de exaltação os cônjuges de um modo particular na relação entre eles devem conhecer e ter o cuidado de não ultrapassar os níveis para além do admissível ao senso comum o qual se situa certamente antes daquele que demanda a intervenção da policia a pedido dos vizinhos e obriga o outro cônjuge a trancar-se dentro de uma das divisões da casa para se proteger enquanto o “exaltado” no caso em apreço a Ré se atira de corpo contra a porta.
Destarte, impõe-se concluir haver fundamento para decretar o divórcio por a Ré ter violado o “dever de respeito” a que estava obrigada para com o Autor.
(…)”; (cfr., fls. 229 a 230).
E atento o assim exposto, impõe-se concluir pelo acerto do decretado divórcio.
A “gravidade” e “intensidade” da conduta da R., ora recorrente, é, por si, elucidativa e reveladora que a mesma não poderia deixar de “afectar” quem quer que fosse, o que, no caso, sucedeu efectivamente com o A., que após o retratado incidente, (até) saiu de casa e avançou para o (presente processo de) divórcio, assim demonstrado ficando também que (definitivamente) comprometida estava a vida em comum do casal.
Aliás, a R. ora recorrente, com a normal experiência de vida que possui, tendo-se casado com o A. em segundas núpcias, (cfr., facto provado referenciado na al. a), fls. 227-v), não podia ignorar que a conduta que desenvolveu é “grave” – note-se na relevância que hoje se de à matéria da “violência doméstica” – constituindo, assim motivo bastante para o divórcio.
Aqui chegados, e resolvidas que se nos apresentam (todas) as questões pela recorrente trazidas à apreciação deste T.S.I., resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com a taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 30 de Maio de 2019
José Maria Dias Azedo
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
(*) Processo redistribuído ao ora relator em 11.04.2019.
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