Processo n.º 4/2015. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: C e D.
Recorrida: Galaxy Casino, SA.
Assunto: Promoção de jogo. Liberdade contratual.
Data do Acórdão: 26 de Junho de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
A cláusula contratual, celebrada entre operador de casino e promotor de jogo, no sentido de este suportar determinada percentagem das perdas da sala de jogo onde opera, em exclusivo, não viola o Regulamento Administrativo n.º 6/2002, designadamente os seus artigos 1.º, 2.º e 27.º.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
Galaxy Casino, SA, intentou acção declarativa com processo comum ordinário contra C e marido, D, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de MOP$3.342.718,00 e juros de mora vencidos e vincendos à taxa de 9,75%.
Por sentença da Ex.mo Presidente do Tribunal Colectivo, foi a acção julgada improcedente por, além do mais, o acordado entre as partes (o dever de os réus suportarem, 45% dos prejuízos da sala de jogo em causa) violar o Regulamento Administrativo n.º 6/2002, segundo o qual, na interpretação da sentença, o pior cenário para os promotores de jogo é não receberem qualquer retribuição pelo insucesso na promoção na sala de jogo.
Recorreu Galaxy Casino, SA para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) que, por Acórdão de 10 de Julho de 2014, revogou a sentença, julgou parcialmente procedente a acção e condenou os réus a pagar à autora a quantia de MOP$3.137.293,48 e juros vencidos e vincendos à taxa de 9,75% desde 11 de Dezembro de 2009 até integral pagamento.
Recorrem, agora, os réus para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando a seguinte questão:
- As cláusulas do contrato celebrado entre as partes violam os artigos 1.º, 2.º e 27.º Regulamento Administrativo n.º 6/2002, pelo que é nulo, não podendo servir de base à condenação dos réus.
II – Os factos
O Tribunal de 1.ª Instância considerou provados os seguintes factos:
“Da Matéria de Facto Assente:
- A Autora é uma concessionária autorizada a explora Jogos de Fortuna ou Azar e Outros Jogos em Casino na Região Administrativa Especial de Macau, por Despacho do Chefe do Executivo n.º 143/2002, de 21 de Junho de 2002, publicado no Boletim Oficial n.º 26, II Série, de 26 de Junho de 2002 e escritura outorgada em 26 de Junho de 2002, cujo extracto foi publicado em Suplemento do Boletim Oficial n.º 27, II Série, de 3 de Julho de 2002 (alínea A) dos factos assentes).
- A Ré mulher foi, durante o ano de 2009, uma promotora de jogos devidamente licenciada, pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, para exercer essa actividade em Macau (alínea B) dos factos assentes).
- Ao abrigo do acordo celebrado com a Autora, junto à petição inicial como Doc. 2 e que se dá por integralmente reproduzido, a Ré mulher, ali referida como parte B, comprometeu-se a exercer a actividade de promoção de jogos em benefício da Autora, tendo-lhe sido concedida para o efeito a operação de uma sala VIP, como o n.º XX, sita no XX.º andar do [Hotel (1)], em Macau, à qual foi dada a designação de fantasia “E VIP Club”, como melhor consta da Tabela 2 do referido acordo (alínea C) dos factos assentes).
- Como contrapartida da actividade de promoção de jogos exercida pela Ré mulher, esta recebia uma remuneração mensal calculada de acordo com o sistema de ganhos e perdas partilhadas denominado por “Sistema de cálculo de remunerações”, tudo conforme a Tabela 3 do acordo, com o seguinte teor (alínea D) dos factos assentes):
“I. “Sala XX” sistema de cálculo
a. Proporção:
Com base na receita bruta proveniente daquela sala, 45% dos lucros ou perdas mensais pertencem à parte B.
b. Prémio de troca das fichas de jogo:
Caso a quantidade de traça das fichas por mês chegar ou ultrapassar o número mínimo daquela sala, para além do que se refere no item I. a) a parte B tem direito a uma quantia em numerário que corresponde a 0,05% (por cada HKD10.000,00) como prémio de troca das fichas.
c. Subsídio de consumo:
A parte B tem a direito a 0,03% da quantia de troca das fichas daquele correspondente mês. O regulamento do uso do subsídio é o determinado pela parte A a cada dado momento.”.
- Através do referido sistema de remuneração, a Autora e a Ré mulher partilhavam os ganhos e as perdas brutas mensais decorrentes da actividade de promoção de jogos desenvolvida na sala VIP em causa na proporção, respectivamente, de 55% e 45% (alínea E) dos factos assentes).
- As quais eram deduzidas ou acrescidas, respectivamente, das despesas operacionais efectuadas no exercício da promoção de jogos que fossem da responsabilidade da Ré mulher – como sendo, de acordo com a cláusula 3.ª do Contrato, as de ar condicionado, segurança e limpeza, e de outros serviços tais como reservas de quartos, transportes e cupões de refeições utilizados pelos clientes do E VIP Club no [Hotel (1)] – porquanto estas despesas operacionais eram subvencionadas pela Autora e posteriormente pagas pela promotora (alínea F) dos factos assentes).
- Foi acordado que (alínea G) dos factos assentes):
a. se houvesse ganhos num determinado mês, em virtude de os jogadores perderem muitas apostas ou apostas de valor elevado nas mesas de jogo afectas à sala VIP, a Autora, que tinha recebido dos mesmos o valor bruto dessas apostas, pagaria à Ré mulher 45% desse valor, deduzido das despesas operacionais que haviam sido subsidiadas pela Autora, e
b. se houvessem perdas num determinado mês, em virtude de os jogadores ganharem muitas apostas ou apostas de valor elevado nas meses de jogo afectas à sala VIP, a Ré mulher respondia por 45% do valor bruto dessas perdas, acrescido das despesas operacionais que lhe competissem pagar à Autora e entregar-lhe-ia o valor correspondente.
- Foi ainda acordado, especificamente nas cláusulas II e IV da Tabela 3, que a liquidação dos ganhos ou das perdas de um dado mês era realizada no último dia de cada mês e o pagamento dos valores devidos com base nessa liquidação devia ser efectuado até ao terceiro dia do mês seguinte (alínea H) dos factos assentes).
- O Réu marido foi indicado pela Ré mulher como principal responsável pela operação da sala VIP, auferindo uma remuneração mensal de HKD20.000 (alínea I) dos factos assentes).
- Papel esse que o Réu marido assumiu, praticando actos materiais de gestão da referida sala VIP e assinando a correspondência trocada com a Autora, em nome e representação da promotora de jogo, ora Ré mulher (alínea J) dos factos assentes).
- Após a Autora interpelar por diversas vezes a Ré mulher para pagar a dívida acumulada, o Réu marido, apresentando-se como garante do pagamento das dívidas relativas à sala VIP em questão, emitiu e entregou à Autora, em 10 de Setembro de 2009, o cheque n.º XXXXXXXX, sacado sobre o [Banco (1)], no valor de HKD2.797.449 (alínea K) dos factos assentes).
- Para além disso, o Réu marido solicitou ainda à Autora que apenas apresentasse o cheque a pagamento no mês seguinte, a fim de garantir o aprovisionamento da conta, ao que esta assentiu (alínea L) dos factos assentes).
- Assim, o cheque foi apresentado a pagamento em 13 de Outubro de 2009, mas veio devolvido por falta de provisão nesse mesmo dia (alínea M) dos factos assentes).
- Perante a devolução do cheque por falta de provisão, e face ao incremento do valor da dívida, a Autora, em 19 de Outubro de 2009, interpelou os Réus, desta vez por escrito, para virem apresentar uma proposta de pagamento até ao dia 21 daquele mês, sob pena de tomar as devidas medidas para recuperar o respectivo crédito (alínea N) dos factos assentes).
- Em 14 de Outubro de 2009, a Autora já havia enviado uma carta aos Réus, a rescindir o Contrato e a retirar a operação da sala VIP à Ré mulher, com efeitos a partir de 30 de Outubro de 2009 (alínea O) dos factos assentes).
- Em 21 de Outubro de 2009, o Réu marido veio responder à carta da Autora de 19 de Outubro dizendo que “O valor total de HKD2.922.786 devido à Galaxy Casino, S.A. será pago em 12 prestações mensais, no valor cada uma de HKD243.565,50 com início em 5 de Dezembro de 2009”, reconhecendo, assim, expressamente a existência da dívida (alínea P) dos factos assentes).
- A Autora, por carta de 27 de Outubro de 2009, contra-propôs que o reembolso fosse efectuado em apenas 3 prestações, no montante de HKD974.262 cada uma (alínea Q) dos factos assentes).
- Em resposta enviada a 28 de Outubro de 2009, o Réu marido veio referir que “devido à entrada de um novo parceiro para a gestão da sala precisamos de reajustar os serviços prestados pelo que gostaríamos de atrasar o início do pagamento um mês”, especificando que o primeiro pagamento seria feito em 5 de Dezembro de 2009 (alínea R) dos factos assentes).
- No dia seguinte, a Autora replicou dizendo que o primeiro pagamento deveria ser efectuado até ao dia 5 de Novembro de 2009 (alínea S) dos factos assentes).
- Em 6 de Novembro de 2009, e porque não tinha ainda logrado receber qualquer pagamento, a Autora voltou a interpelar os Réus para pagarem de imediato todos os montantes em dívida, incluindo o saldo devedor de HKD123.130 correspondente ao mês de Outubro e cujo pagamento se havia vencido em 3 de Novembro (alínea T) dos factos assentes).
- Em carta datada de 11 de Dezembro de 2009, os Réus não obstante renovarem o reconhecimento da dívida para com a Autora, então no valor de HKD3.045.916,00, admitiram não ter como pagá-la imediatamente, e pediram mais tempo para tentarem vender supostas propriedades na China continental e recuperar empréstimos concedidos a clientes para assim poderem pagar à Autora (alínea U) dos factos assentes).
- Os Réus ainda não pagaram, no todo ou em parte, a dívida que contraíram (alínea V) dos factos assentes).
- Foi no exercício da sua actividade comercial de promoção de jogos que a ré mulher celebrou com a Autora o acordo através do qual os ganhos ou as perdas da operação da sala VIP em causa seriam partilhadas por ambas as partes (alínea W) dos factos assentes).
- O Réu marido, desde que a Autora reclamou a dívida até à presente data, sempre se apresentou como garante das dívidas decorrentes da operação da sala VIP, tendo chegado a emitir e a entregar à Autora um cheque no valor de HKD2.797.449, supra identificado (alínea X) dos factos assentes).
- O Réu marido é casado no regime da comunhão de adquiridos com a Ré mulher (alínea Y) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- Em Julho de 2009, o E VIP Club registou prejuízos no valor de HKD2.922.890,00 e despesas operacionais no valor de HKD427.602,00 (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- Em Agosto de 2009, a sala VIP registou novas perdas, desta vez no montante bruto de HKD1.261.760,00 e despesas operacionais do montante de HKD486.754,00 (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- No mês de Setembro de 2009, o E VIP Club registou ganhos no valor de HKD505.800,00 e despesas operacionais no valor de HKD352.947,00 (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- No mês de Outubro de 2009, o E VIP Club registou ganhos no valor de HKD559.385,00 e despesas operacionais no valor de HKD374.795,00 (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).”
III – O Direito
1. Questões a apreciar
Há que conhecer da questão suscitada pelos recorrentes.
2. Liberdade contratual na promoção de jogo
Pela acção dos presentes autos, um operador de casino pediu a condenação de uma promotora de jogo de uma sala de jogo do casino por si explorado, em exclusivo, no pagamento do que estava estabelecido por contrato celebrado entre as partes, que obrigavam a promotora a suportar 45% das perdas de jogo.
A promotora entende, agora (já que durante o processo em 1.ª instância nunca abundou neste sentido), que os artigos 1.º, 2.º e 27.º do Regulamento Administrativo n.º 6/2002 não permitem tal acordo que é, assim, nulo, no seu entendimento.
Dispõem tais normas:
Artigo 1.º
Âmbito
O presente regulamento administrativo regula a actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, nomeadamente os processos de verificação da idoneidade e de licenciamento dos promotores de jogo de fortuna ou azar em casino, adiante designados por promotores de jogo, o registo destes junto de concessionárias para a exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, adiante designadas por concessionárias, bem como o pagamento das comissões ou outra remunerações que sejam pagas aos promotores de jogo.
Artigo 2.º
Actividade de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino
Para efeitos do presente regulamento administrativo e demais regulamentação complementar, considera-se de promoção de jogos de fortuna ou azar em casino, adiante designada por promoção de jogos, a actividade que visa promover jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, junto de jogadores, através da atribuição de facilidades, nomeadamente de transporte, alojamento, alimentação e entretenimento, em contrapartida de uma comissão ou outra remuneração paga por uma concessionária.
Artigo 27.º
Limitação das comissões e remunerações
1. O Secretário para a Economia e Finanças pode fixar, por despacho, o limite máximo das comissões ou outras remunerações que podem ser pagas pelas concessionárias aos promotores de jogo, e regular a referida forma de pagamento.
2. Para efeitos do presente artigo, presume-se que têm carácter remuneratório, quaisquer bónus, liberalidades, serviços ou outras vantagens susceptíveis de avaliação pecuniária que sejam oferecidas ou proporcionadas ao promotor de jogo pela concessionária, na Região Administrativa Especial de Macau ou no exterior, quer seja por forma directa ou indirectamente, através de sociedade participada pela concessionária ou com a qual a mesma esteja em relação de grupo.
3. O despacho previsto no n.º 1 aplica-se a todas as comissões ou remunerações futuras, ainda que pagas ao abrigo de contratos já existentes à data da sua entrada em vigor, e para tal é concedido um prazo aos interessados para apresentarem na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos novos contratos redigidos de acordo com os limites remuneratórios nele estabelecidos.
Interpretando os preceitos em análise, salta logo à vista desarmada que os artigos 1.º e 2.º nada têm que ver com o tema em apreciação, pois se limitam a estatuir sobre o âmbito do diploma normativo (artigo 1.º) e sobre a noção de actividade de promoção de jogos (artigo 2.º), embora este adiante que é essencial que ao promotor de jogo caiba uma contrapartida de uma comissão ou outra remuneração paga por uma concessionária.
Quer dizer, o artigo 2.º impõe que o promotor de jogo tenha uma remuneração, mas não impõe concretamente qual seja.
Por outro lado, o artigo 27.º dispõe que o Secretário para a Economia e Finanças pode fixar, por despacho, o limite máximo das comissões ou outras remunerações que podem ser pagas pelas concessionárias aos promotores de jogo, e regular a referida forma de pagamento.
Ou seja, preocupa-se em prever poder ser imposto um limite máximo às remunerações a pagar aos promotores de jogo (levado a cabo pelo Despacho do Secretário para a Economia e Finanças n.º 83/2009), mas nada prevê quanto a um mínimo de remuneração. E nem este preceito, nem qualquer outro do mesmo Regulamento Administrativo n.º 6/2002, estatuem qualquer limite ao princípio da liberdade contratual das partes, previsto no artigo 399.º do Código Civil, no sentido de não permitirem ao promotor suportar perdas do negócio que promove, em exclusivo, numa sala VIP.
Logo, bem podiam as partes acordar em que a promotora de jogo tivesse uma remuneração com base na receita da sala de jogo, mas suportando igualmente, parte das perdas da mesma.
Improcede, assim, o recurso.
IV – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.
Macau, 26 de Junho de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1
Processo n.º 4/2015
11
Processo n.º 4/2015