Processo nº 167/2019(I)
(Autos de recurso penal)
(Incidente)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. No âmbito dos presentes Autos de Recurso Penal proferiu o ora relator a seguinte “decisão sumária”:
“Relatório
1. A, arguida com os restantes sinais dos autos, vem recorrer do Acórdão do T.J.B. que a condenou como autora material da prática em concurso real de 1 crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, e 2 outros de “falsificação de documento de especial valor”, p. e p. pelo art. 245°, 244°, n.°1, al. b) e 243°, al. c) do C.P.M., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 11 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, na condição de, no prazo de 6 meses, pagar à R.A.E.M. a quantia de MOP$30.000,00; (cfr., fls. 324 a 332 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Em síntese, imputa ao Acórdão recorrido o vício de “erro na aplicação do direito”, “erro notório na apreciação da prova” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 343 a 353).
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Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 356 a 362-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Submetida a julgamento em processo comum perante tribunal colectivo, foi a ora recorrente A condenada na pena conjunta de 2 anos e 11 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, pela autoria de um crime de falsificação de documentos da previsão do artigo 18.°, n.° 2, da Lei n.° 6/2004, e de dois crimes de falsificação de documento de especial valor, da previsão do artigo 245.°, com referência aos artigos 244.°, n.° 1, alínea b), e 243.°, alínea c), do Código Penal.
Interpõe agora recurso do acórdão condenatório, imputando-lhe erro na qualificação jurídica do acto de celebração de casamento, por via da interpretação errada dos artigos 1492.° e 1493.° do Código Civil, erro notório na apreciação da prova, com violação do artigo 116.° do Código de Processo Penal, e excessividade da pena.
Na sua resposta, o Ministério Público refuta certeiramente os argumentos da recorrente e defende a bondade do acórdão.
Vejamos a questão do alegado erro quanto à celebração do casamento.
Em primeiro lugar, os artigos do Código Civil citados pela recorrente, como alegadamente mal interpretados pelo acórdão, não têm qualquer pertinência para o caso nem foram objecto de errónea interpretação.
O que está em causa – e a recorrente parece querer escamotear – é um casamento simulado. Ou seja, um casamento que os nubentes encenaram por interesses totalmente alheios ao acto, sabendo que, na realidade, não queriam constituir qualquer vínculo e que não queriam nem iriam observar os seus efeitos típicos de constituição de família e de comunhão de vivência.
A matéria dada como provada habilita amplamente à conclusão de que a recorrente e B efectuaram um casamento simulado, com todas as decorrências daí resultantes, como bem nota o Ministério Público na sua minuta de resposta.
A tentativa ensaiada de fazer crer na genuinidade do casamento não passa disso mesmo, tentativa.
Improcede este fundamento do recurso.
Quanto ao erro notório, a recorrente põe em causa que a falsidade do casamento resulte da prova produzida e questiona que haja sido produzida prova directa sobre a falsidade da sua própria intenção de contrair casamento.
Tal como o Ministério Público já salientou na sua minuta de resposta, não vemos onde possa residir o alegado erro notório na apreciação da prova. O erro notório na apreciação da prova pressupõe que a partir de um facto se extraia uma conclusão inaceitável, que sejam preteridas regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou que se violem as regras da experiência ou as leges artis na apreciação da prova – acórdão do Tribunal de Última Instância, de 4 de Março de 2015, exarado no Processo n.° 9/2015 – o que, em boa verdade, não vem posto em crise. O que a recorrente verdadeiramente põe em causa é a apreciação das provas feita pelo tribunal, actividade que, como é sabido, está coberta pelo princípio da livre apreciação da prova, o que a torna, em princípio, insindicável.
Dir-se-á, no entanto, que o juízo formulado pelo tribunal a quo em matéria de facto está devidamente respaldado nas provas produzidas e examinadas em audiência, que não enfermam de qualquer invalidade.
Nomeadamente, no que toca ao depoimento de C, não está em causa qualquer testemunho de ouvir dizer, não se tratando do depoimento indirecto aludido no artigo 116.° do Código de Processo Penal. O depoente C, filho de B, tomou por si conhecimento e, de certo modo, vivenciou aspectos do relacionamento do pai com a recorrente e do casamento que encenaram, ao ponto de ter, ele próprio, denunciado o caso perante as autoridades. Acresce que tanto o B como o C estiveram presentes na audiência, o que permitiu ao tribunal, adentro dos seus poderes de livre apreciação da prova, valorar as respectivas posturas e declarações.
Por outro lado, o depoimento de C foi apenas um dos vários elementos probatórios que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. A recorrente foca-se nesse depoimento, que procura descredibilizar, esquecendo os demais elementos de prova. Por exemplo, o documento de fls. 49, que o tribunal deu por reproduzido, e que encerra um acordo entre a arguida e B, que aponta no sentido da simulação, não obstante o seu laconismo; a perícia de ADN, que, inquestionavelmente e com a margem de certeza científica que hoje em dia é reconhecida a tais exames, exclui o B da paternidade biológica dos filhos da recorrente, embora esta os haja registado como filhos daquele a coberto do simulado casamento; enfim, os dados confirmativos da situação de simulação de casamento veiculados pelo depoimento do agente da Polícia Judiciária…
Improcede também este fundamento do recurso.
Por fim, a recorrente diz que a pena é demasiado pesada, sem que, no entanto, explicite as razões duma tal afirmação.
Não se crê que as penas concretamente encontradas pelo tribunal, quer as penas parcelares, quer a pena conjunta, pequem por excesso. Todas elas se situam no patamar inferior das molduras, aliás muito próximas do mínimo abstractamente previsto, constatando-se que o tribunal foi especialmente benevolente no cúmulo jurídico, impondo uma pena global que não inviabilizasse a possibilidade de suspensão da sua execução, como veio, a final, a decretar. De resto, é sabido que os parâmetros em que se move a determinação da pena, de acordo com a teoria da margem de liberdade, não são matemáticos, devendo aceitar-se a solução encontrada pelo tribunal do julgamento, a menos que o resultado se apresente ostensivamente intolerável, por desajustado aos fins da pena e à culpa que a delimita, o que não é evidentemente o caso.
Improcede igualmente este fundamento do recurso.
Ante o exposto, deve negar-se provimento ao recurso”; (cfr., fls. 432 a 434).
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Em sede de exame preliminar constatou-se da “manifesta improcedência” do presente recurso, e, nesta conformidade, atento o estatuído no art. 407°, n.° 6, al. b) e 410°, n.° 1 do C.P.P.M., (redacção dada pela Lei n.° 9/2013, aplicável aos presentes autos nos termos do seu art. 6°, n.° 1 e 2, al. 2), e tendo-se presente que a possibilidade de “rejeição do recurso por manifesta improcedência” destina-se a potenciar a economia processual, numa óptica de celeridade e de eficiência, visando, também, moralizar o uso (abusivo) do recurso, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 326 a 327-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).
Do direito
3. Vem a arguida recorrer do Acórdão que a condenou como autora material da prática em concurso real de 1 crime de “falsificação de documentos”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, e 2 outros de “falsificação de documento de especial valor”, p. e p. pelo art. 245°, 244°, n.°1, al. b) e 243°, al. c) do C.P.M., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 11 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, na condição de, no prazo de 6 meses, pagar à R.A.E.M. a quantia de MOP$30.000,00.
Afirma que o Acórdão recorrido está inquinado com o vício de “erro na aplicação do direito”, “erro notório na apreciação da prova” e “excesso de pena”.
Porém, e como já se deixou consignado, e como acertadamente se observa no Parecer que se deixou transcrito, é evidente que à arguida, ora recorrente, não assiste razão.
Vejamos, muito não se mostrando de consignar.
–– Afigura-se de começar pelo assacado “erro notório na apreciação da prova”, (pois que sem uma boa decisão da matéria de facto, inviável é uma adequada decisão de direito), certo sendo que este Tribunal não está vinculado a conhecer das questões pela recorrente colocadas na mesma ordem em que vem apresentadas.
Pois bem, o referido vício de “erro notório na apreciação da prova” tem sido entendido como aquele que apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.07.2018, Proc. n.° 538/2018, de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias, (in “Lições de Direito Processual Penal”, pág. 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal que é livre, mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 07.06.2018, Proc. n.° 376/2018, de 11.10.2018, Proc. n.° 772/2018 e de 24.01.2019, Proc. n.° 905/2018).
Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).
E como se consignou no Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16, “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.
Dito isto, impõe-se concluir que inexiste qualquer “erro”, muito menos “notório”.
Com efeito, em parte alguma desrespeitou o Tribunal a quo qualquer regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis, nem tão pouco se diga que a “prova produzida” (e apreciada) não permite a decisão proferida, pois que, como no Acórdão recorrido se explicita, (cfr., fls. 327-v a 328), e – bem – se salienta no Parecer do Ministério Público, aquela, para além de válida, é bastante para tal efeito.
Por sua vez, e como em situação semelhante já decidiu este T.S.I. no recente Ac. de 24.01.2019, Proc. n.° 892/2018, “uma “certidão de casamento” apenas comprova a prática do “acto”, ou seja, a “celebração do casamento entre duas pessoas em determinada data e local”, não constituindo nenhum obstáculo quanto à prova da “motivação” e “objectivos” do mesmo (casamento), matéria esta, aliás, do “foro pessoal” (e subjectivo), não abrangida pelo aludido documento, e como tal, sujeita à livre apreciação do Tribunal, (…)”.
Nesta conformidade, visto cremos que está que inexiste qualquer “erro”.
–– Quanto al alegado “erro de direito”, a mesma é a solução.
Na verdade, e em síntese, provado está que a ora recorrente, celebrou, de forma livre e consciente, um “casamento de conveniência”, (simulado), apenas para após tal, e com o “estatuto de cônjuge de residente da R.A.E.M.”, vir a obter o direito à residência e o B.I.R.M. que requereu e obteve, o mesmo sucedendo, posteriormente, com os seus dois filhos, tendo agido, voluntariamente, e com conhecimento que a sua conduta era proibida e punida.
E, dest’arte, dúvidas não há que verificados estão todos os elementos objectivos e subjectivos dos crimes pelos quais foi condenada, mais não se mostrando de dizer sobre a questão.
–– Por fim, quanto ao alegado “excesso de pena”.
Ao crime de “falsificação de documentos” cabe a pena de 2 a 8 anos de prisão, (cfr., art. 18° da Lei n.° 6/2004), e os crimes de “falsificação de documento de especial valor” pela arguida cometidos são puníveis com a pena de 1 a 5 anos de prisão; (cfr., art. 245°, n.° 1 do C.P.M.).
Nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
E, em sede de determinação da pena, tem este T.S.I. entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 13.09.2018, Proc. n.° 626/2018, de 17.01.2019, Proc. n.° 1077/2018 e de 21.02.2019, Proc. n.° 5/2019).
É também sabido que com os recursos não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de 1ª Instância em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais legalmente atendíveis; (cfr., v.g., os Acs. do Vdo T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014 e de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015).
Aliás, e como temos vindo a considerar, acompanhando o decidido pelo Tribunal da Relação de Évora:
“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 12.07.2018, Proc. n.° 534/2018, de 25.10.2018, Proc. n.° 570/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 1138/2018).
No mesmo sentido decidiu este T.S.I. que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).
E, como se tem igualmente decidido:
“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).
“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto da pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).
In casu, estando as penas parcelares aplicadas pelos crimes cometidos situadas em ponto próximo do seu respectivo mínimo legal, (tão só a 6 meses deste mínimo), evidente se apresenta que nenhum motivo existe para se considerar as mesmas excessivas ou inflacionadas.
–– Quanto à “pena única” resultado do “cúmulo jurídico”, há que atentar no estatuído no art. 71° do C.P.M., que dispõe que:
“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis”; (sub. nosso).
Abordando idêntica questão à ora em apreciação, e tendo em consideração o teor do n.° 1 do transcrito art. 71°, teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que:
“Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem razão na personalidade do agente”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 08.03.2018, Proc. n.° 61/2018, de 11.10.2018, Proc. n.° 716/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 1160/2018).
Atento ao que até aqui se deixou exposto, (e que é de manter), e certo sendo que, in casu, em causa está uma moldura penal com um “limite mínimo de 2 anos e 6 meses” e um “limite máximo de 5 anos e 6 meses de prisão”, nenhuma censura, por excesso, pode-nos merecer a pena única de 2 anos e 11 meses de prisão que à ora recorrente foi fixada, (tão só a 4 meses do mínimo da moldura penal, e, assim, podendo apenas pecar por benevolência).
Tudo visto, e sendo o recurso “manifestamente improcedente”, resta decidir como segue.
Decisão
4. Em face do exposto, decide-se rejeitar o presente recurso.
Pagará a arguida a taxa de justiça que se fixa em 4 UCs, e como sanção pela rejeição do recurso o equivalente a 3 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 3 do C.P.P.M.).
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
(…)”; (cfr., fls. 436 a 448-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, veio a recorrente reclamar do decidido, alegando que o seu recurso não devia ser considerado manifestamente improcedente, (e rejeitado), insistindo também no entendimento que em sede do seu recurso tinha deixado exposto; (cfr., fls. 452 a 456).
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Sobre este expediente, assim opinou o Exmo. Representante do Ministério Público:
“A recorrente A vem reclamar para a conferência da decisão sumária de fls. 435 e seguintes, que rejeitou o seu recurso por manifesta improcedência.
Intenta convencer de que não era caso de rejeição do recurso e que, pelo contrário, se impunha a sua procedência e, consequentemente, ou a sua absolvição ou o abaixamento da pena. Para tanto, reafirma e repisa os argumentos expendidos na sua alegação de recurso, colocando especial enfoque na circunstância de se ter remetido ao silêncio e de o seu “cônjuge” B se ter recusado a depor, para concluir que nunca poderia o tribunal ter chegado à conclusão de que ela celebrou um casamento falso.
Nenhuma razão lhe assiste.
Seja-nos permitido recordar o essencial do que anteriormente dissemos para expressar os motivos da nossa discordância quanto à pretensão recursória, desta feita encimados com a nota de que o processo penal goza de suficiência para resolver todas as questões que nele se deparem – artigo 7.° do Código de Processo Penal – o que fazemos face à insistência da recorrente em catalogar o seu casamento de válido à luz da lei civil.
Como frisámos, o que está em causa é um casamento simulado. Independentemente do que hajam declarado na cerimónia, o que releva é que a arguida e o outro nubente encenaram um casamento por interesses totalmente alheios ao acto, sabendo que, na realidade, não queriam constituir qualquer vínculo e que não queriam nem iriam observar os seus efeitos típicos de constituição de família e de comunhão de vivência.
E a falsidade desse casamento resulta profusamente demonstrada através da prova produzida e examinada em audiência, apesar do silêncio da arguida e da recusa de B em depor.
O juízo formulado pelo tribunal a quo em matéria de facto está devidamente respaldado nas provas produzidas e examinadas em audiência, que não enfermam de qualquer invalidade. Nomeadamente, no que toca ao depoimento de C, não está em causa qualquer testemunho de ouvir dizer, não se tratando do depoimento indirecto aludido no artigo 116.° do Código de Processo Penal. O depoente C, filho de B, tomou por si conhecimento e, de certo modo, vivenciou aspectos do relacionamento do pai com a recorrente e do casamento que encenaram, ao ponto de ter, ele próprio, denunciado o caso perante as autoridades. Acresce que tanto o B como o C estiveram presentes na audiência, o que permitiu ao tribunal, adentro dos seus poderes de livre apreciação da prova, valorar as respectivas posturas e declarações. Por outro lado, o depoimento de C foi apenas um dos vários elementos probatórios que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. A recorrente foca-se nesse depoimento, que procura descredibilizar, esquecendo os demais elementos de prova, a saber: o documento de fls. 49, que o tribunal deu por reproduzido, e que encerra um acordo entre a arguida e B, que aponta no sentido da simulação, não obstante o seu laconismo; a perícia de ADN, que, inquestionavelmente e com a margem de certeza científica que hoje em dia é reconhecida a tais exames, exclui o B da paternidade biológica dos filhos da recorrente, embora esta os haja registado como filhos daquele a coberto do simulado casamento; enfim, os dados confirmativos da situação de simulação de casamento veiculados pelo depoimento do agente da Polícia Judiciária…
Ou seja, o que a recorrente verdadeiramente põe em causa é a apreciação das provas feita pelo tribunal, actividade que, como é sabido, está coberta pelo princípio da livre apreciação da prova.
Em suma, e concluindo, não há reparo a dirigir à decisão reclamada, cujo sentido deve ser mantido, pois não ofendeu quaisquer princípios ou disposições legais, devendo indeferir-se a reclamação”; (cfr., fls. 458 a 459-v).
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Por despacho do ora relator, foram os presentes autos conclusos para visto dos Mmos Juízes-Adjuntos e, seguidamente, inscritos em tabela para decisão em conferência; (cfr., fls. 460).
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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.
Fundamentação
2. No uso da faculdade que lhe é legalmente reconhecida pelo art. 407°, n°. 8 do C.P.P.M., vem a recorrente reclamar da decisão sumária nos presentes autos proferida e atrás transcrita.
Porém, mostra-se de concluir que evidente é que não se pode reconhecer mérito à sua pretensão, muito não se mostrando necessário aqui consignar para o demonstrar.
Com efeito, a decisão sumária agora reclamada apresenta-se clara e lógica na sua fundamentação – nela se tendo efectuado correcta identificação e tratamento das questões colocadas – e acertada na solução.
Na verdade, pelos motivos que na referida decisão sumária se deixaram expostos, e como bem observa o Ministério Público na Resposta que se deixou transcrita, patente se mostra que justo e adequado foi o decidido no Acórdão do Colectivo do T.J.B. objecto do recurso pela ora reclamante trazido a este T.S.I., o que, por sua vez, implica, a necessária e natural conclusão de que se impunha, como sucedeu, a sua total confirmação.
Dest’arte, e mais não se mostrando de consignar, já que a ora reclamante se limita a repisar o já alegado e adequadamente apreciado da decisão sumária agora em questão, inevitável é a improcedência da apresentada reclamação.
Decisão
3. Nos termos que se deixam expostos, em conferência, acordam julgar improcedente a reclamação apresentada.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 23 de Maio de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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