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Proc. nº 630/2018 - Reclamação

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
Nos presentes autos de recurso contencioso que B moveu contra o acto de 8/03/2018, do Conselho Superior da Advocacia, que lhe aplicou a pena disciplinar de censura, o relator do processo proferiu o despacho de fls. 112vº, determinando a emissão de guias à entidade recorrida para efectuação do pagamento do preparo devido.
Desse despacho, o CSA apresentou reclamação em termos que aqui damos por reproduzidos.
Sobre o assunto, o MP pronunciou-se no sentido da procedência da reclamação, nos seguintes termos:
“Reclamação para a conferência, a fls. 116 e seguintes:
Vem a entidade recorrida, Conselho Superior da Advocacia (CSA), reclamar para a conferência do despacho de fls. 112 verso, o qual, no entendimento de que não está o CSA isento de custas, lhe ordenou que efectuasse o preparo devido.
Entende o CSA que está abrangido pela isenção subjectiva prevista no artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do Regime das Custas nos Tribunais, já que, sendo um órgão da Associação dos Advogados de Macau (AAM), que tem a seu cargo, por devolução de poderes do Estado, a função de regulamentar e disciplinar o exercício da advocacia, integra a administração indirecta do Estado.
Durante muito tempo, alguns autores, entre os quais o professor Freitas do Amaral, sustentaram que as associações públicas de cariz profissional integravam, tal como os institutos públicos, a administração indirecta do Estado. Hoje em dia, essa concepção está ultrapassada, sendo praticamente unânime a opinião de que se trata de administração autónoma.
Pois bem, a circunstância de ser autónoma e de prosseguir atribuições que respeitam e interessam a um grupo profissional específico não lhe retira a essência pública da sua função administrativa, que exerce em substituição e sob a tutela meramente inspectiva do Estado.
Neste contexto, seria deveras prejudicial para o prosseguimento dos seus fins que, para a sustentação judicial das suas decisões tomadas no âmbito daqueles poderes de administração pública, tivesse que suportar, ao contrário do que sucede com todas as outras entidades administrativas, as custas inerentes a uma presença em juízo. E também não deixaria de ser ilógico, como sustenta, que a AAM tivesse uma participação nas custas judiciais arrecadadas pela justiça e tivesse que pagar, ela própria, custas na justiça por causa do exercício das suas funções públicas de entidade administrativa.
Daí que se creia, não obstante algum laconismo da norma, que a administração autónoma protagonizada por pessoas colectivas públicas de natureza associativa, como sucede com a AAM, tem que se incluir na isenção abrangente do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do Regime das Custas nos Tribunais, que contempla de forma genérica os serviços e organismos da Região Administrativa Especial de Macau, com a inerente isenção subjectiva.
Razão por que se emite parecer no sentido da procedência da reclamação.”
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II – Apreciando
1. O despacho em crise apresenta o seguinte teor:
“Notifique a entidade contestante para efectuar o preparo devido, visto que não beneficia de isenção subjectiva, por não gozar de utilidade pública administrativa, face ao disposto no art. 2º, nº1, als. b) e e), do RCT (após trânsito, emita guias)”
Ora bem. As associações públicas profissionais são aquelas “que se agrupam para prosseguirem os seus fins próprios, e que por isso mesmo dirigem, orientam e gerem os seus destinos, os seus bens, o seu pessoal e as suas finanças” e que, por isso, são “entes independentes” (Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, 2ª ed., pág. 400). É esta autonomia que leva a que o seu regime, ressalvado o que for incompatível com o carácter público de tais entidades, se “tem de reconduzir ao das associações de direito privado” (autor e ob. cits., pág. 409).
A AAM é, efectivamente, uma “associação pública” (art. 3º do Estatuto do Advogado”) e, enquanto tal, uma “pessoa colectiva pública” (art. 27º, nº1, do cit. Estatuto), embora “representativa dos licenciados em Direito que exercem a advocacia em Macau” (art. 3º, do Estatuto do Advogado e 1º, nº1, dos Estatutos da Associação). Isto é, apesar de pública, ainda assim não deixa de ser uma associação de entes privados1.
Bastará essa natureza de pessoa colectiva pública para a incluir na isenção de custas?
O problema é, antes de mais nada, de integração eventual da alínea e) citada, que isenta de custas “As pessoas colectivas de utilidade pública administrativa”. Reconhecemos que este normativo não se aplica à AAM visto que, sendo ela já uma associação pública, não carecerá que lhe seja reconhecida utilidade pública administrativa, o que até se pode colher, efectivamente, do art. 1º da Lei nº 11/96/M, de 12/08.
Partindo deste pressuposto, concedemos que a alínea e) não pode ser invocada para, com base nela, se afastar a isenção2.
Mas, integrará o caso em apreço a previsão da alínea b)?
Vejamos.
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2. A reclamante classifica a AAM como entidade integrada na Administração da RAEM através da Administração indirecta, como forma de a incluírem no âmbito da previsão do art, 1º, nº1, al. b), do RCT.3
Não cremos que tenha razão.
A tese de administração indirecta, se já foi seguida em tempos pelo ilustre administrativista acima citado, foi por si mesmo abandonada e agora ele mesmo já não tem dúvidas de que as associações públicas profissionais pertencem à administração autónoma não territorial, mas associativa (autor e ob. cit., pág. 413-414; neste sentido, também Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1999, pp. 307 e sgs., 319 311 ss.; João Caupers, em Introdução ao Direito Administrativo, Âncora Editora, 7ª ed., págs. 99 e 194 e tb. Direito Administrativo I – guia de estudo, 4ª ed., Lisboa, 1999, pág. 266 e 292 e sgs.; Nuno J. Vasconcelos Albuquerque Sousa, Noções de Direito Administrativo, Coimbra Editora, 2011, pág. 274).
As associações públicas profissionais ou ordens profissionais são associações públicas de natureza privada, sendo rejeitada a opção de a sua regulação ser realizada por esquemas inseridos na Administração Indirecta do Estado (Jorge Bacelar Gouveia, As Associações Públicas Profissionais no Direito Português, pág. 10-11 e 13)4.
Efectivamente, não é apenas o facto de ser dotada de personalidade jurídica que faz da AAM um ente da Administração indirecta.
As entidades incluídas na Administração indirecta estão sujeitas à superintendência e tutela do Governo. Ora, isso não acontece em relação à AAM, que não depende nem directa, nem indirectamente do Governo (nem tutela, nem superintendência este exerce sobre aquela). Isso, aliás, resulta tanto do art. 1º, nº2, dos Estatutos da Associação, que sublinham essa autonomia de uma maneira muito marcante, quando afirma que a AAM não está sujeita a poderes de orientação do Governo, sendo independente e autónoma na prossecução dos seus objectivos, como do art. 27º, nº2 do Estatuto dos Advogados, que de uma forma também particularmente impressiva e eloquente assinalam que a AAM, além de autónoma, é uma entidade “livre”.
É verdade. A AAM é inteiramente autónoma (José Eduardo Figueiredo Dias, Manual de Formação de Direito Administrativo de Macau, 1ª reimpressão, págs. 58-61; L. Ribeiro e C. Pinho, Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado, pág. 168).
Daí que não possa ser integrada, a título nenhum, no quadro da administração indirecta. Isso mesmo, de resto, se pode constatar a partir da leitura, não só da Lei de Bases da Orgânica do Governo (Lei nº 2/1999), como do Regulamento Administrativo nº 6/1999, diplomas dos quais resulta que a AAM não faz parte do elenco das entidades que dependam directa, indirecta ou tutelarmente do Governo (seja do Chefe do Executivo, seja de qualquer dos seus Secretários, especificamente do da Administração e Justiça).
Portanto, dados os fundamentos da sua criação e os objectivos que prossegue, não se pode dizer que seja uma pessoa colectiva administrativa ou pessoa colectiva da Administração. É uma pessoa colectiva pública, sim, mas de carácter profissional e associativo, mas não administrativa no seu sentido estrito.
Cremos, por isso, que a sua situação não cabe na previsão da referida alínea b): Não é um serviço da Administração da RAEM, nem é um seu organismo personalizado. Quando a disposição fala em “seus organismos, ainda que personalizado”, está a referir-se aos entes que povoam a Administração, mesmo que disponham de personalidade jurídica e detenham autonomia administrativa e financeira, como sucede, por exemplo, com a Direcção dos Serviços de Saúde, que pertence à Administração Indirecta, como se sabe.
Estamos convencidos, pois, de que a sua situação não se enquadra no âmbito da alínea b), do art. 2º do RCJ.
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3. Em Portugal, por exemplo, e face a norma congénere (cfr. art. 2º, nº1, al. a), do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo DL nº 224-A/96, de 26 de Novembro5, a jurisprudência defendeu que a isenção do Estado não abrange as associações públicas, designadamente as de escopo profissional (Ac. do STA, de 28/03/1995, proc. nº 036346).
Portanto, se a AAM não goza de isenção de custas com base no regime legal das custas (RCT), só em diploma avulso dela pode vir a gozar. Se não há norma, haverá que criá-la6.
Em suma, se a AAM não cabe directamente no âmbito de previsão da alínea b) citada, cumprirá à Associação dos Advogados de Macau diligenciar pela feitura de uma norma especial que a isente de custas, tal como aconteceu com os Estatutos da Ordem dos Advogados em Portugal, aprovados pelo DL nº 84/84, onde fez constar no art. 151º, nº2, essa isenção. Isto é, o facto de o RCJ não a isentar de custas não obsta a que a isenção venha ser incluída em diploma avulso.
Neste momento, o que somos levados a pensar é que tal isenção subjectiva não existe no RCT, nos Estatutos da AAM, nem em outro qualquer diploma.
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4. A entidade reclamante traz-nos ainda um elemento de ponderação curioso e interessante e que não deixa de ter a sua lógica. Aponta-nos o seguinte: Que sentido tem a AAM pagar custas se, ao abrigo do art. 36º, nº1, al. c), do Estatuto do Advogado7 tem a AAM direito a participação nas custas judiciais e no imposto de justiça?
A noção que subjaz a este argumento é a de chamar a atenção para o eventual contra-senso que representaria conferir à AAM uma participação em custas, se logo a seguir se lhe iria exigir que pagasse as suas próprias custas em processos judiciais em que interviesse.
Se pensarmos bem, no entanto, este argumento não pode ser decisivo.
Basta pensar que, numa comparação um tanto bizarra, mas que esperamos compreensível, a necessidade de custas pela AAM se equivaleria à lógica comercial que preside à necessidade de o sócio pagar a sua própria refeição e a dos seus familiares no restaurante que, em sociedade, explora com outro profissional do ramo, embora se saiba que no final do ano se fará a distribuição dos lucros por ambos (o que, necessariamente, já inclui a margem de ganho que resulta do pagamento daquelas refeições). Razões de rigor de gastos, igualdade e transparência comercial e fiscal justificam que assim ajam os sócios.
Ainda assim, mesmo que simplesmente colateral, estudemos rapidamente esta questão.
De acordo com o DL nº 46/93/M, de 6/09, e com o objectivo de concretizar o art. 36º, nº 2 do Estatuto do Advogado, a AAM tem direito a participar nas custas judiciais e nas receitas emolumentares arrecadadas pelos serviços de registo e de notariado (art. 1º, nº1). Essa participação é igual a 370 vezes o vencimento correspondente ao índice da tabela indiciária aplicável à função pública.
Todavia, não existe presentemente diploma algum que obrigue a uma transferência específica para a AAM a título de participação em custas judiciais, embora se saiba que o Cofre de Justiça e dos Registos e Notariado, ou simplesmente Cofre, efectua anualmente a transferência para a AAM de uma verba que sai do seu orçamento.
Repare-se:
* Com o DL nº 64/93/M, de 22 de Novembro (atribuições, competências e funcionamento do Cofre) ficou consignado que seria encargo do Cofre uma verba para a AAM resultante da sua participação nas custas judiciais e nas receitas emolumentares registrais e notariais (art.8º, al. o));
* Com o DL nº 51/95/M, de 25 de Setembro (alteração do DL nº 64/93/M) manteve-se que o encargo do Cofre para a AAM a título de participação nas custas judiciais e nas receitas emolumentares registrais e notariais (nova redacção dada ao art. 8º, al. r) do DL nº 64/93/M);
* Com o Regulamento Administrativo nº 10/2003 (Regulamento do Cofre dos Assuntos de Justiça, que revogou o DL nº 64/93/M e o DL nº 51/95/M) ficou definido que constituiria encargo do Cofre o montante das receitas da AAM resultante da sua participação nas “receitas emolumentares registrais e notariais” (art. 10º, nº1, al. 7)).
Ou seja, com o Regulamento nº 10/2003 desapareceu o encargo do Cofre de transferir qualquer verba para a AAM a título de participação em custas, apenas se mantendo o envio de verba (aquela que resulta da aplicação do art. 1º, nº1, DL nº 64/93/M) mas enquanto participação nas receitas emolumentares registrais e notariais.
* Com o Regulamento Administrativo nº 30/2015 (que altera o RA nº 10/2003) manteve-se no art. 10º, al. 6) o encargo anteriormente referido na alínea 7).
Quer isto dizer que a AAM recebe anualmente uma verba do Cofre a título de participação em emolumentos registrais e notariais, mas já não em custas (pelo menos assim está inscrito nos Regulamentos acabados de referir).
E isto até está de acordo com o próprio Orçamento do Gabinete do Tribunal de Última Instância. Com efeito, se é verdade que constituem receitas do Gabinete as custas cobradas nos tribunais (art. 18º, al. 4), do Regulamento Administrativo nº 19/2000: Organização e Funcionamento do Gabinete do Presidente do TUI), a verdade é que não existe neste momento qualquer obrigação normativa (assim não está expressamente previsto) que lhe determine o encargo de transferir para nenhuma entidade ou pessoa colectiva qualquer verba a participação em custas e taxa de justiça.
Vejamos, agora, muito sucintamente, como as coisas se passam na prática:
Aplicando o factor multiplicativo referido no art. 1º, nº1, do DL nº 46/93/M pelo índice 100 é encontrada a verba que anualmente é transferida para a AAM.
Em relação, por exemplo, ao ano de 2018, a Lei nº 16/2017 (Lei do Orçamento para 2018) consagrou à AAM, via Cofre dos Serviços de Justiça, a verba de 3.145.000,00, o que corresponde exactamente ao resultado do factor 370 pelo valor do índice 100 (8.500).
Enfim, se não se pode dizer que actualmente a AAM beneficie de qualquer verba do Orçamento do Cofre a título de participação em custas (pese embora a letra do art. 1º, nº1, do DL nº 46/93/M8), a verdade é que para a Associação isso acaba por não ter qualquer relevância negativa, já que para si o que importa é o resultado da aplicação do factor multiplicativo 370 pelo índice salarial vigente em cada ano económico e o consequente montante que daí resulta a título de receita.
De qualquer maneira, e voltando ao início, mesmo que nesta análise acabada de fazer nos tenha escapado algum dado, somos a pensar que o argumento trazido pelo CSA não nos parece de capital importância para efeito da dilucidação da questão central, que é a de saber se a AAM está, ou não, isenta de custas.
E para nós, pelo que se disse, não está.
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III – Decidindo
Face ao exposto, julga-se improcedente a reclamação.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça mínima.
T.S.I., 9 de Maio de 2019
Fui presente (Relator) Joaquim Teixeira de Sousa José Cândido de Pinho
(Primeiro Juiz-Adjunto) Tong Hio Fong
(Segundo Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong
1 Lino Ribeiro e C. Pinho, Código de Procedimento Administrativo de Macau, anotado e comentado, pág. 172.
2 Nesta medida, o relator afasta-se do entendimento que vinha seguindo ultimamente sobre o assunto.
3 Que reza gozar de isenção de custas “O Território, incluindo os seus serviços e organismos ainda que personalizados”.
4 https://portal.oa.pt/media/117223/jbg_ma_14420.pdf
5 Que dizia que estava isento de custas “O Estado, incluindo os seus serviços ou organismos, ainda que personalizados”.
6 Faz todo o sentido que se crie, para que, por exemplo, se não criem limitações nem constrangimentos financeiros a uma intervenção jurídico/processual/judicial no âmbito da sua missão disciplinar junto dos seus associados.
7 Quando nos parece que essa matéria deveria antes fazer parte dos Estatutos da Associação.
8 Não vale a pena aqui estudar o caso pela eventualidade de o Regulamento atentar contra o DL, que precisamente deveria respeitar.
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Proc. nº 630/2018 – Reclamação 1