Processo nº 219/2010
Data do Acórdão: 09MAIO2019
Assuntos:
Procedimento disciplinar
Validade da acusação no procedimento disciplinar
Juízos de valores
Factos materiais
Nulidades processuais
Nulidades primárias ou insupríveis e as nulidades secundárias ou relativas
Inquirição de deputados da Assembleia como testemunhas
Competência para a instauração de um processo disciplinar
Presidente de um órgão colegial e os seus poderes
Falta de consciência de ilicitude
Dolo eventual
Relevância prática da distinção entre o dolo e a negligência na matéria disciplinar
Princípio ne bis in idem
SUMÁRIO
1. Por força do disposto no artº 277º do ETAPM, a teoria da infracção penal, na parte referente à matéria de concurso de infracções e continuação criminosa, que constitui a mens legislatoris subjacente à feitura do artº 29º do Código Penal, aplica-se, mutatis mutandis, às infracções disciplinares na função pública da RAEM.
2. Desde que contenha na acusação factos materiais que fixa e delimita o thema probandum e desta forma ficam assegurados os direitos à contraditoriedade e à audiência do arguido, o simples facto de a acusação ter emitido juízos de valores, interpretações e conclusões jurídicas de per si não tem qualquer relevância na apreciação da sua validade processual e substancial, pois o que interesse essencialmente à validade de uma acusação é a sua capacidade, pelo seu conteúdo, permitir ao arguido alcançar os factos materiais que lhe são imputados e lograr defender-se de modo que entender adequado.
3. A validade dos actos processuais depende da sua correspondência ao modelo legal quanto a «quem» pode praticar os actos, a «quando», a «onde» e a «como» devem ser praticados os actos. Constituem nulidades processuais a prática dos actos processuais ou a omissão da prática dos actos processuais que representam o desvio ou a inobservância do tal modelo legal.
4. Pela lógica das coisas e pelo seu estatuto e pela posição processual do arguido que patrocina no âmbito de um procedimento disciplinar, o mandatário deve actuar no interesse do arguido, limitando-se a requerer ou juntar provas para comprovar factos demonstrativos da inocência ou da menor responsabilidade do arguido. Assim, no âmbito de procedimento disciplinar, a não notificação atempada ou a omissão da notificação da junção das provas requisitadas a requerimento do arguido não têm a virtualidade de ofender o conteúdo essencial da contraditoriedade, e portanto nunca podem constituir nulidade insuprível e quanto muito só podem gerar a mera nulidade secundária a que se refere o artº 298º/3 do ETAPM.
5. Na matéria das invalidades processuais dos actos praticados no procedimento disciplinar, por razões sobretudo que se prende com o grau da importância do bem jurídico que o ritualismo processual visa tutelar, ou com o grau da sua violação, por um lado, e pelos valores da economia e celeridade processual, por outro, a lei não faz equiparar, quanto às consequências, todas as inobservâncias do ritualismo processual, mas sim procura sempre harmonizar, mediante a concordância prática, o carácter imperativo e solene do modelo legal do procedimento e a celeridade processual e o aproveitamento do processado. O que justifica a distinção entre as nulidades primárias ou insupríveis e as nulidades secundárias ou relativas.
6. Segundo este critério de bipartição do tratamento das nulidades processuais, só quando estiver em causa a lesão de bens jurídicos importantes e/ou o grau da sua violação for de tal maneira elevado que fique lesado o conteúdo essencial dos bens jurídicos tutelados pelo ritualismo legalmente prescrito, a lei não tolera a sua violação e comina expressamente a sanção da nulidade insuprível, invocável a todo o tempo por qualquer interessado e susceptível de ser declarada a todo o tempo por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal – artº 298º/1 do ETAPM e artº 123º do CPA.
7. E residualmente, quaisquer violações do ritualismo processual diversas daquelas que tenham sido expressamente qualificadas como nulidades insupríveis só constituem nulidades secundárias ou relativas, dependentes da arguição atempada pelo interessado, que se tornarão automaticamente sanadas se decorrido o certo intervalo de tempo sem que tenham sido arguidas.
8. Na esteira desse entendimento, é de concluir que não basta a violação de uma norma que comina expressamente a nulidade insuprível para legitimar a invalidação, a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, do acto viciado e consequentemente de todos os actos dele dependentes e eventualmente de todo o procedimento.
9. É portanto preciso indagar, caso a caso, a gravidade do vício em causa, ou seja, averiguar se, atendendo às circunstâncias concretas do caso, houve lesão do conteúdo essencial do bem jurídico em causa e o grau da violação do mesmo bem jurídico, a fim de ajuizar se o desvio ao ritualismo processual é de tal maneira violento que não pode deixar de desencadear as sanções mais gravosas que a lei faz corresponder às nulidades insupríveis, mesmo com o enorme prejuízo aos valores da economia e da celebridade processual, também dignos da tutela jurídica.
10. Ao contrário do que sucede como os cidadãos em geral, os deputados da Assembleia Legislativa não podem depor como testemunhas senão para tal autorizados pela Mesa da Assembleia Legislativa – artº 30º da Lei n.º 3/2000, nos termos do qual os Deputados carecem de autorização da Mesa da Assembleia Legislativa para poderem intervir em juízo como testemunhas, peritos ou jurados, e para poderem ser ouvidos como declarantes ou arguidos, salvo, neste último caso, quando detidos em flagrante delito. Ao estatuir como estatuiu nesse artigo 30º, o nosso legislador fez clara e conscientemente a opção por fazer prevalecer a dignidade soberana dos membros do órgão legislativo quando confrontados com a possibilidade de serem convocados para serem inquiridos, como meio de prova, nos processos sob a direcção de um dos outros poderes, executivo e/ou judicial, mesmo em detrimento da verdade material no âmbito desses processos.
11. Resultando da opção do nosso legislador pela superioridade do bem jurídico da protecção da dignidade soberana do poder legislativo face aos outros poderes, a não inquirição ou a impossibilidade da inquirição dos deputados arrolados, por falta da autorização da Mesa da Assembleia Legislativa, em caso algum, tem a virtualidade de constituir nulidade no procedimento disciplinar.
12. Se, em face do disposto nos artºs 318º e 319º do ETAPM, o despacho que ordena a instauração de um processo disciplinar tiver sido emanado por quem é competente em razão dos elementos, nomeadamente a categoria e o vínculo do visado à Administração Pública, disponíveis e reportados como correctos no momento da abertura do processo, o eventual apuramento dos elementos determinantes da competência disciplinar, diversos daqueles que já foram atendidos para a determinação da competência disciplinar de quem já ordenou a instauração, não conduz à invalidação do despacho que ordenou a instauração do processo nem à de todos os actos entretanto praticados cuja validade dele depender, desde que a instauração tenha sido ordenada pelo Chefe do Executivo que, em face do disposto no artº 318º/1 do ETAPM, detém os poderes disciplinares que têm todos os seus subordinados e é sempre competente para instaurar quaisquer funcionários/a alteração superveniente não implique enfraquecimento da protecção do bem jurídico que os artºs 318º e 319º do ETAPM visam tutelar.
13. Se é certo que, no âmbito de um procedimento disciplinar, tal como sucede no processo penal, ao arguido não cabe o ónus de provar a sua inocência, não é menos verdade que o arguido tem todo o direito de se defender contra os factos que lhe tenham sido imputados, negando directamente a realidade desses factos, ou alegando factos ou circunstâncias capazes de excluir ou atenuar a culpa e a ilicitude dos factos cuja veracidade não impugnou.
14. Ao presidente de um órgão colegial (membro qualificado do mesmo) cabe um papel abrangente que se não esgota nos aspectos burocráticos do funcionamento do colégio, da lei ele também recebe um ónus, o de zelar pelo cumprimento da legalidade. Nessa medida, deve chamar a atenção dos membros do órgão para o atropelo da lei que esta ou aquela posição de alguns deles pode representar.
15. Tendo em conta que a Direcção dos Serviços de Finanças é um serviço que orienta, coordena e fiscaliza a actividade financeira do sector público administrativo da RAEM e que nas suas atribuições, encontra-se inter alia a de organizar o Sistema de Contabilidade Pública e o Orçamento Geral da RAEM, promovendo e dirigindo o seu funcionamento e execução e assegurando a normalidade na administração financeira da RAEM, o arguido, enquanto nomeado para desempenhar as funções do dirigente máximo da DSF e com vasta e longa experiência no exercício de cargos dirigentes na DSF, tinha um dever reforçado de conhecer as normas jurídicas que regulam as actividades da DSF e procurar manter-se sempre técnico-juridicamente informado e preparado para lidar com dinheiros públicos.
16. Assim, o facto, a ele imputado, de ter permitido a multiplicação das actas de uma reunião por forma a fazer corresponder a cada uma acta uma sessão, cujo número seria tido em conta para o efeito do cálculo das remunerações a pagar aos seus membros e a fim de possibilitar uma multiplicação indevida de remunerações pagas a si próprio e aos outros membros da CAVM, não se pode explicar pela sua atitude pessoal juridicamente desvaliosa que o impediu a consciência ética de decidir correctamente a questão do desvalor do facto, mas sim pela atitude, ao decidir agir como agiu, do simples desinteresse em saber o resultado da sua conduta, não obstante a efectiva representação consciente da violação da lei como consequência possível da sua actuação.
17. No Direito Penal, a forma de imputação do facto ao seu agente, a título de dolo, ou a título de negligência, tem extrema relevância para a sua qualificação jurídica. Nesta segunda situação, consoante a existência ou não de uma norma especial afirmativa da sua punibilidade, o facto negligente pode ser criminalmente censurável ou pode não ter qualquer dignidade penal. Ao contrário do que sucede com o Direito Penal, a distinção entre a imputação do facto a título de dolo ou a imputação a título de negligência, na matéria disciplinar, já não releva para a qualificação jurídica e a consequente punibilidade do facto. O que se compreende, pois que em grande parte das situações com dignidade disciplinar o comportamento passível de perseguição resulta de mero descuido ou falta de cuidado do agente.
18. Se a distinção entre o dolo e a negligência tem a relevância para qualificar os tipos de crimes, isto é, tipo fundamental (crime doloso) e tipo privilegiado (crime negligente), e até não reconhecer a um facto a dignidade penal, não obstante o efectivo preenchimento do tipo objectivo, já no Direito Disciplinar a mesma distinção limita-se a influir na determinação concreta de pena.
19. Na matéria de infracção disciplinar, se uma norma exige, para considerar um facto violador de um determinado dever funcional, que o mesmo facto tenha sido levado a cabo pelo agente com a intenção de produzir um certo resultado e uma outra norma dispõe que a produção efectiva do mesmo resultado funciona como a circunstância agravante daquele facto para o efeito de punição, a aplicação cumulativa de ambas as normas não viola o princípio ne bis in idem, pois não há aqui a dupla valoração de uma mesma circunstância.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 219/2010
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
B, devidamente identificado nos autos, vem recorrer do despacho do Chefe do Executivo, datado de 29JAN2010, que lhe determinou a aplicação da pena de 120 dias de suspensão e que dirigiu a ordem à DSF para proceder à efectivação da reposição das quantias recebidas por ele em contravenção do limite anual máximo de remunerações fixado no artº 176º do ETAPM, ainda não prescritas, concluindo e pedindo:
A) O Recorrente foi vítima de dois julgamentos injustos, um deles em praça pública e ainda antes de ter sido proferida a acusação no Processo Disciplinar, em virtude de comportamentos persecutórios e ilegais por parte do CA, da comunicação social e do SEF, os quais vieram depois a ter forte influência no julgamento feito em sede de processo disciplinar;
B) O Recorrente nunca poderá ser responsabilizado por factos ocorridos antes de 26 de Maio de 2006, por ter operado a prescrição quanto a esses;
C) O acto recorrido que aplica a sanção de suspensão por 120 dias é nulo, por falta de audiência do arguido, consubstanciada na concessão de prazo insuficiente para a apresentação da defesa escrita e da sua não prorrogação injustificada, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 122.º do CPA e do artigo 298.º do ETAPM; caso assim não se entenda,
D) O acto recorrido está ainda ferido de nulidade, por falta de audiência do arguido, consubstanciada na falta de requisitos legais da Acusação, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 122.º do CPA e do artigo 298.º do ETAPM; mesmo que assim não se entenda,
E) O acto recorrido é nulo, por falta de audiência do arguido, verificada na não notificação atempada de prova requerida e na falta de oportunidade (em tempo útil) para a sua consulta, tudo nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 122.º do CPA e do artigo 298.º do ETAPM; ainda que assim não o fosse, sempre se diria que
F) O acto recorrido é nulo, por falta de audiência do arguido,traduzida na falta da sua audição em actos complementares posteriores à apresentação da sua defesa, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 122.º do CPA e dos artigos 298.º, 329.º e 334.º, todos do ETAPM; ainda assim e sem conceder,
G) O acto recorrido enferma de nulidade insuprível, por vício de violação do princípio da audiência do arguido. violação do seu direito a uma cabal defesa, bem como de violação do princípio do inquisitório, no que diz respeito à não audição do SEF como testemunha arrolada pela defesa - conforme artigo 122.º do CPA e artigo 298.º do ETAPM;
H) Ainda que o acto recorrido não fosse nulo, o que não se concebe, sempre se diria que seria anulável.
I) Sendo a competência para a instauração do processo disciplinar própria do SEF, e não podendo haver, nem tendo havido, qualquer delegação de poderes, está o despacho do Chefe do Executivo que manda instaurar o presente procedimento disciplinar (o qual é consumido pelo acto recorrido) ferido de vício de incompetência, facto que comporta a anulação do acto em si e afecta a validade de todos os actos àquele subsequentes, nos termos do artigo 124.º do CPA - o que ora se invoca para os devidos efeitos; ainda assim,
J) O acto recorrido (no qual se integra o Relatório Final) está ferido de vício de violação de lei, nos termos do artigo 124.º do CPA, por violação dos princípios básicos do direito administrativo, como o princípio da imparcialidade, da justiça, da igualdade, da boa fé, da defesa e protecção dos interesses dos particulares, bem como dos princípios fundamentais do direito disciplinar. como o princípio do direito a um processo e julgamento justo, da presunção de inocência do arguido, do inquisitório, da descoberta da verdade, entre outros; ainda assim,
K) Houve, também, um vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, já que não se encontram preenchidos os requisitos legais para a verificação de uma infracção disciplinar, erro esse que acarreta a anulabilidade do acto recorrido, o que se invoca para os devidos efeitos;
L) Padece ainda, e subsidiariamente, o acto recorrido do vício de violação de lei, por erro de direito na subsunção de uma conduta negligente à sanção de suspensão, a qual é apenas aplicada a casos de culpa grave, nos termos do n.º 1 do artigo 314.º do ETAPM; ainda que assim não fosse,
M) Padece, mais uma vez, o acto recorrido de vício de violação de lei, por erro de direito na consideração de uma circunstância agravante que se encontra já no tipo da infracção disciplinar imputada - foi assim violado o n.º 2 do artigo 65.º do Código Penal, aplicável subsidiariamente nos termos do artigo 277.º do ETAPM, o que acarreta a anulabilidade do acto nos termos do artigo 124.º do CPA.
N) O acto recorrido seria anulável por vício de violação de lei. por erro grosseiro, manifesto e desproporcionado na graduação da pena de suspensão por 120 dias aplicada a uma conduta considerada negligente (e até inconsciente).
O) Por último, o Recorrente não ultrapassou o limite remuneratório anual fixado no artigo 176.º do ETAPM, não tendo, assim, quaisquer importâncias a repor.
TERMOS EM QUE, por todas as razões acima expostas e em face dos normativos invocados, requer a V. Exas. se dignem:
- declarar nulo o acto recorrido, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 122.º do CPA e artigos 298.º, 329.º e 334.º, todos do ETAPM, por violação do princípio da audiência do arguido, ora Recorrente;
ou, caso assim não o entenda,
- anular o acto em crise identificado no intróito desta peça, com base na sua ilegalidade, nos termos do artigo 124.º do CPA, por vício de incompetência, ou subsidiariamente, por vício de violação de lei, por desrespeito aos princípios basilares do direito administrativo e disciplinar e por erro nos pressupostos de direito.
Citado, veio o Chefe do Executivo contestar pugnando pela improcedência do recurso – vide fls. 226 – 303 dos p. autos.
Não havendo lugar à realização das diligências probatórias, foram o recorrente e a entidade recorrida notificados para apresentar alegações facultativas.
Apenas o recorrente veio apresentar alegações facultativas, reiterando grosso modo os mesmos fundamentos já deduzidos na petição do recurso.
Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer pugnando pela procedência da excepção da prescrição parcial do procedimento disciplinar em relação aos factos anteriores a 26MAIO2006, e caso viesse a proceder a prescrição parcial, não seria de manter a dosimetria da pena aplicada nem não caberia ao Tribunal substituir-se à Administração na graduação da pena por força do princípio da separação de poderes, o que se impele o Ministério Público à consideração de merecimento de provimento do recurso, com prejuízo do escrutínio dos restantes vícios assacados ao acto – vide fls. 371 a 375 dos p. autos.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e inexistem nulidades e excepções ou questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso.
Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Antes de entrar na apreciação das questões propriamente ditas, cabe tecer umas palavras sobre aquilo que foi dito nos 1º a 28º artigos da petição de recurso, e sumariamente repetido no primeiro ponto das conclusões.
Diz ai o recorrente que “o Recorrente foi vítima de dois julgamentos injustos, um deles em praça pública e ainda antes de ter sido proferida a acusação no Processo Disciplinar, em virtude de comportamentos persecutórios e ilegais por parte do CA, da comunicação social e do SEF, os quais vieram depois a ter forte influência no julgamento feito em sede de processo disciplinar”.
Ante este “desabafo”, cabe-nós dizer que sendo o recurso contencioso concebido para a sindicância da legalidade dos actos administrativos e tendo por finalidade a anulação dos actos recorridos ou a declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica, ao Tribunal não compete, em sede do recurso contencioso, sindicar a bondade dos eventuais juízos de censura formulados pelas entidades ai identificadas na dita “praça pública”.
Não constitui objecto da nossa apreciação o tal “desabafo”.
Assim, em face das conclusões tecidas na petição do recurso e reiteradas nas alegações facultativas, são as seguintes questões que constituem o objecto da nossa apreciação:
1. Da prescrição;
2. Da falta de audiência;
3. Da falta de requisitos legais da acusação;
4. Das nulidades insupríveis por falta de audiência;
5. Da incompetência do Chefe do Executivo para ordenar a instauração do processo disciplinar;
6. Dos vícios por violação da lei;
7. Do erro nos pressupostos de direito no que respeita à duplicação das actas e à correspondente pagamento de remuneração por acta aos membros da CAVM;
8. Do erro nos pressupostos de direito referente à participação simultânea dos membros efectivos e suplentes;
9. Do erro na qualificação jurídica dos factos;
10. Da inverificação da circunstância agravante prevista no artº 283º/1-b) do ETAPM;
11. Do erro grosseiro na graduação da pena; e
12. Da ordem para a efectivação da reposição das quantias auferidas pelo recorrente em contravenção do limite máximo legal a que se refere o artº 176º do ETAPM.
Antes de entrar na apreciação das questões acima elencadas, é de lembrar a matéria que foi dada provada nos autos do procedimento disciplinar.
É tida por assente a seguinte matéria de facto constante da acusação:
1). O percurso profissional do arguido constante do artigo 1.º da acusação;
2). O arguido tem uma vasta e longa experiência no exercício de cargos dirigentes e uma rica participação em Comissões e em outros órgãos e entidades da Administração;
3). As atribuições, a composição e a nomeação anual dos membros da CAVM, constantes dos artigos 4.º,5.º,6.º e 9.º da acusação;
4). Os membros da CAVM e o respectivo secretário auferem uma remuneração fixada anualmente pelo SEF, sob proposta da DSF, sendo as propostas relativas aos anos de 2006 e 2007, as Informações n.º 67/DIR/2007 e n.º 59/DIR/06, assinadas pelo arguido;
5). Os despachos do SEF, exarados sobre as informações da DSF, estabelecem uma remuneração, por sessão, de valor correspondente a 10% do valor do índice 100 da tabela indiciária da Função Pública de Macau, ou seja de 525,00 patacas em 2006 e de 550,00 em 2007;
6). As reuniões semanais da Comissão têm lugar normalmente às quintas-feiras, da parte da manhã, com início pelas 11, 30 horas e duram entre 1,30 horas e 2 horas;
7). O secretário da CAVM, recebida a documentação entregue pelo expediente central da DSF, obedecendo a instruções superiores, procede ao seu ordenamento, à sua reprodução por fotocópia e à sua distribuição prévia pelos membros da Comissão, a fim de que estes se possam preparar para as reuniões;
8). No ano de 2006, foram 70 os dias de reunião e elaboradas 304 actas e em 2007, até ao dia 16 de Maio de 2007, foram 21 os dias de reunião e elaboradas 92 actas, numa média diária de mais do que quatro actas; no entanto -como se considera provado mais à frente aquando da análise da defesa, artigos 118.° e 119.°- o arguido não esteve presente nas reuniões ocorridas nos dias 25 e 26 de Janeiro, 11, 12 e 13 de Abril, 4 de Maio, 1 de Junho, 27 de Julho e 21 de Setembro de 2006 e em 15 de Março de 2007, num total de 41 actas;
9). As actas das reuniões da CAVM não mencionam as horas de início nem de termo das reuniões;
10). O arguido era, à data da prática dos factos que lhe são imputados, director da DSF e, por inerência de funções, presidente da CAVM;
11). No período de 1 de Janeiro de 2006 a 16 de Maio de 2007, nos dias que constam do artigo 22.° da acusação (o qual aqui se dá por reproduzido) foram elaboradas várias actas por cada dia de reunião, nalguns casos relativamente a pedidos de uma mesma entidade e, noutros, referentes ao mesmo modelo de veículos; resultando desse facto avultadas duplicações de pagamentos de retribuições não devidas ao arguido e aos demais elementos da CAVM;
12). Nos dias que constam do artigo 23.º da acusação, o qual aqui se dá, por economia, por inteiramente reproduzido, participaram em reuniões da CAVM simultaneamente, membros efectivos e suplentes dessa Comissão;
13). Relativamente a muitas reuniões, conforme tudo consta discriminado no artigo 22.º da acusação, foram elaboradas actas relativas exclusivamente a assuntos administrativos internos, nalguns casos processos exclusivamente de conferência de informações ou de arquivo de documentos e de notificações devolvidas pelos Correios ou de simples remessa à Repartição de Finanças ou de deliberação de solicitação de dados aos requerentes, noutros casos de não fixação de preço fiscal por o mesmo já o ter sido anteriormente ou de simples anotação de desistência do pedido;
14). O arguido, conforme consta do artigo do artigo 31.º da acusação, no ano de 2006, não contabilizadas as importâncias recebidas como senhas de presença, prémio de antiguidade, ajudas de custo e de embarque e subsídio de família, recebeu um total de 1.535.960,00 Mop (um milhão quinhentas e trinta e cinco mil novecentas e sessenta patacas) e, no ano de 2007, não contabilizadas as importâncias recebidas como senhas de presença, prémio de antiguidade, ajudas de custo e de embarque e subsídio de família, recebeu um total de 1.985.048,40 Mop (um milhão novecentas e oitenta e cinco mil e quarenta e oito patacas e quarenta avos);
15). Os comportamentos do arguido, atrás descritos, tiveram forte eco na imprensa da RAEM e tiveram efeitos negativos na imagem da Administração;
16). Nada consta do registo disciplinar do arguido, em seu desabono;
17). O arguido ingressou na Administração Pública como assalariado eventual, em 21 de Março de 1990, ingressou no quadro em 4 de Novembro de 1991, tendo prestado mais de 19 anos de serviço ininterrupto e, sempre, que lhe era devida classificação de serviço, foi classificado de «Muito Bom» e foram-lhe atribuídos dois louvores.
E da matéria de defesa ficou provado que:
1). No momento da prática das infracções de que é acusado, o arguido estava afecto à Direcção dos Serviços de Finanças, na qualidade de director desses serviços;
2). O arguido foi notificado da Acusação no dia 29 de Setembro de 2009, tendo-lhe sido conferido, o prazo de 10 dias para apresentação da sua defesa escrita;
3). Por requerimento datado de 6 de Outubro de 2009, o arguido veio aos autos requerer a prorrogação do prazo para apresentar a defesa escrita, por mais 35 dias;
4). Ao arguido foi prorrogado, por despacho da Chefe do Executivo, interina, exarado sobre proposta do instrutor, o prazo de apresentação da defesa por mais 15 dias, despacho esse de que foi notificado o mandatário do arguido;
5). O processo de averiguações de onde resultaram as faltas imputadas ao arguido foi mandado instaurar pelo Exm.º Senhor Secretário para a Economia e Finanças através do Despacho n.º 2/SEF/2009, de 26 de Maio de 2009;
6). O Centro de ...... de Macau, SA é uma pessoa colectiva de direito privado e capitais maioritariamente públicos;
7). O vínculo do arguido ao Centro de ...... de Macau, SA, é feito em regime de comissão eventual de serviço, através de contrato individual de trabalho, e o montante da remuneração que o arguido aí aufere é fixado nos despachos de nomeação e de renovação;
8). O Comissariado de Auditoria realizou, em 2000 e 2003, averiguações e auditoria de resultados a três das comissões fiscais existentes na DSF;
9). Desde o início do funcionamento da CAVM foi cometida à secretária a organização do respectivo expediente administrativo, incluindo a divisão dos pedidos dos sujeitos passivos para fixação e revisão dos preços fiscais, a distribuição aos membros dos pedidos e documentos necessários à sua instrução para análise e preparação da reunião semanal e a elaboração das actas das reuniões e circulação das mesmas para recolha das assinaturas;
10). A CAVM é responsável pela fixação, a pedido do sujeito passivo, do Preço Fiscal de todas as marcas e respectivos modelos de todos os veículos motorizados novos, ainda não avaliados, antes da sua importação para Macau;
11). A fixação de Preço Fiscal para novos veículos e a revisão de preços já fixados, podem ser requeridas por mais de 350 comerciantes de veículos automóveis, motociclos e ciclomotores existentes em Macau;
12). Nos anos de 2006 a 2008, foram requeridas, em média, cerca de 720 fixações e revisões de preços fiscais de veículos motorizados por ano;
13). Existem em Macau 89 marcas de veículos motorizados, divididas por 46 marcas de veículos automóveis, 28 marcas de motociclos e 15 marcas de ciclomotores, num total superior a 1000 modelos;
14). O volume de trabalho da revisão de Preços Fiscais nas reuniões semestrais da CAVM foi de 1730 em 2006 e 2223 em 2007;
15). Entre pedidos de fixação de Preço Fiscal e revisão de preços fiscais, a CAVM despacha cerca de 3000 pedidos por ano, cerca de 50 pedidos por dia de reunião, em média;
16). Os processos tributários da CAVM são complexos, porque relacionados com as características das marcas, modelos, cilindradas, cavalos-potência, alterações substanciais de características técnicas dos veículos motorizados, etc;
17). A CAVM tem que analisar e ter em conta factores económicos e comerciais, como, entre outros, a regularidade no circuito de comercialização económica, a desvalorização de existências e promoções comerciais e o valor efectivo de milhares de vendas efectuadas em cada semestre, para efeitos de comparação com os Preços Fiscais fixados;
18). O trabalho de estudo prévio e de pesquisa dos membros da CAVM não estão revertidos nas actas das respectivas reuniões;
19). As áreas de actuação da CAVM foram divididas em cinco matérias: fixação de preço fiscal; revisão de preço fiscal por acumulação de existências; revisão de preço fiscal por promoções; revisões semestrais e questões administrativas;
20). A CAVM procedia ainda - em regra - à divisão dos pedidos em conformidade com o tipo de veículo motorizado em causa (automóveis, motociclos e ciclomotores) e num limite máximo de 2 pedidos por reunião, ou, no caso de se tratar do mesmo sujeito passivo, até 3 pedidos por reunião;
21). Os actos da CAVM nunca foram alvo de recurso contencioso ou de reclamação administrativa;
22). As receitas fiscais do imposto sobre veículos motorizados mais do que duplicaram entre 2002 e 2008;
23). O número de reuniões da CAVM, entre 2006 e 2008 diminuiu 15, 13%;
24). O custo anual do funcionamento da CAVM, calculado com base no total das remunerações anuais dos seus membros, também tem vindo a diminuir, de forma constante, tendo decaído de O, 42% para O, 32% entre 2006 e 2008, relativamente às receitas anuais arrecadadas do imposto sobre veículos motorizados;
25). O princípio do desdobramento de actas por cada dia de reunião já se encontrava instituído em outras comissões fiscais existentes na DSF, nalgumas delas desde meados dos anos 80 do século passado e nalguns casos consta dos seus manuais de funcionamento;
26). A acusação elenca 41 actas referentes a reuniões da CAVM em que o arguido não esteve presente, tendo sido substituído pelos dois subdirectores da DSF, C e F, esta por uma única vez;
27). O termo «pedido» constante das actas corresponde a um requerimento de determinada entidade, do qual pode constar mais do que uma solicitação de fixação de preço fiscal;
28). Nos casos de pedido de fixação de preço fiscal por acumulação de existências, trata-se de um pedido para reduzir o preço fiscal anteriormente fixado e a CAVM, antes de chegar à deliberação, normalmente procede à análise do documento "Licença de Importação Exemplar E': conferindo a entidade importadora, a data da entrada do veículo na RAEM, o número do motor, etc, e examina os dados fornecidos pela Direcção dos Serviços de Economia, pela Direcção dos Serviços de Tráfego e ainda os dados constantes do Modelo M/7, no sentido de confirmar a correcção dos dados fornecidos pelo sujeito passivo e apurar quando é que o mesmo entrou na posse do veículo; sendo que estes procedimentos não são revertidos para as actas;
29). A hora de início das reuniões da CAVM já se encontra definida desde a instalação da CAVM;
30). A CAVM aprova centenas de actas por ano;
31). O arguido enquanto director da DSF, recebia e despachava muitas dezenas de documentos por dia, sem contar com o tempo despendido em reuniões, projectos, estudo de questões ou diligências fora da DSF, bem como despachos diários e semanais com as chefias e audiências com funcionários, associações e contribuintes em geral;
32). As outras comissões administrativas também não indicam, nas respectivas actas, a hora de início e de termo de cada uma das suas reuniões;
33) As outras Comissões Fiscais existentes no âmbito da DSF também elaboram mais do que uma acta por cada dia de reunião, sendo que, com referência aos anos de 2006 a 2008, a média de sessões (e actas) por dia de reunião de cada uma dessas comissões varia entre um mínimo de 1, 62 e um máximo de 18, 50; procedimento este que se encontra instituído de há muito tempo nessas Comissões;
34). A 3.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa elaborou e publicou o Relatório n.º I/II/2004, respeitante à apreciação da aplicação da Lei n.º 5/2002 que «Aprova o Regulamento do imposto sobre veículos motorizados»;
35). No ano de 2000, o Comissariado de Auditoria solicitou à DSF informação relativa à contribuição predial urbana, nomeadamente ao funcionamento das avaliações aos imóveis e respectiva remuneração dos membros e louvados das comissões de avaliação de prédios, tendo recebido resposta da DSF, com a qual foi enviado ao CA o manual sobre avaliação de imóveis;
36). Os membros, secretários e louvados daquela Comissão eram remunerados por "sessão", revertida na correspondente acta, sendo que as sessões não equivaliam a um dia de reunião, antes eram elaboradas segundo critérios de divisão por assuntos, previamente estabelecidos;
37). Em Julho de 2003, o CA procedeu a uma auditoria de resultados sobre o funcionamento das Comissões de Fixação de Imposto Complementar e Imposto Profissional;
38). Os membros suplentes estavam presentes em simultâneo com os membros efectivos da CAVM apenas nas reuniões semestrais;
39). A remuneração dos membros da CAVM é fixada anualmente por despacho do SEF, sob proposta do director da DSF, em 10% do índice 100 da tabela indiciária da Função Pública;
40). A questão do artigo 176.º foi abordada num Memorando elaborado em conjunto pela DSF, pelo Comissariado Contra a Corrupção e pelo próprio Comissariado de Auditoria, em 2004;
41). Com a entrada em vigor da Lei n.º 12/2003, os funcionários públicos, incluindo o arguido, deixaram de gozar da isenção de imposto profissional de que, até então, beneficiavam;
42). O arguido, enquanto director, delegou na subdirectora C as competências próprias no que se refere à direcção, coordenação e fiscalização, entre outros, da Divisão Administrativa e Financeira (DAF), que era a divisão responsável pela instrução de todo o processamento da liquidação dos títulos de remuneração dos membros das comissões fiscais e sua conformidade legal e na Chefe do Departamento de Contabilidade Pública, a Dr.ª D, a competência para autorizar a liquidação e o pagamento das despesas que devem ser satisfeitas por conta das dotações inscritas no Orçamento e o arguido nunca avocou as competências delegadas ou subdelegadas;
43). O pagamento das remunerações dos membros das comissões fiscais, incluindo da CAVM, está previsto no Orçamento geral da RAEM (Capítulo 12. Despesas Comuns, sob a rubrica "Trabalhos Especiais Diversos), cuja proposta é previamente homologada pelo Exm.º Senhor Secretário para a Economia e Finanças e, de seguida, pelo Exm.º Senhor Chefe do Executivo, antes de ser submetido a aprovação da Assembleia Legislativa, mas da proposta submetida ao SEF não consta a previsão do número de sessões anuais a realizar pela CAVM;
44). A autorização, processamento e liquidação das remunerações dos membros da CAVM eram da competência delegada de subordinados e não do próprio arguido, o qual assinava as requisições dos títulos de pagamento;
45). O arguido não causou nem teve qualquer participação ou influência na divulgação pública dos factos em causa neste processo disciplinar;
46). O relatório do CA foi, por este, divulgado em 8 de Setembro de 2009;
47). O arguido é funcionário público desde 1990, tendo as testemunhas abonatórias abonado a favor do seu desempenho no exercíco desses cargos e do seu carácter.
De acordo com os elementos existentes nos autos, é tida por assente ainda a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:
* B, ora recorrente, é técnico superior assessor do quadro da DSF, no momento dos factos nomeado em comissão eventual de serviço no cargo do Director dos Assuntos Financeiros do Centro de ...... de Macau, S.A.;
* Na sequência do Relatório do Comissariado da Auditoria (adiante abreviadamente designado por CA) sobre o funcionamento da Comissão de Avaliação de Veículos Motorizados (adiante abreviadamente designado por CAVM), onde foram detectadas as situações, susceptíveis de constituir irregularidades ou ilegalidades, por despacho de 30JUN2009 do Chefe do Executivo, exarado na informação nº 11/SEF/2009, foi ordenada a instauração do processo disciplinar, destinado a apurar a eventual responsabilidade disciplinar que cabe a F, então Directora dos Serviços de Finanças, a G, então Coordenador do Núcleo de Apoio Jurídico da DSF e ao ora recorrente B;
* Findo o processo disciplinar, foi concluído e apresentado ao Chefe do Executivo o Relatório Final;
* Por despacho do Chefe do Executivo, foi aplicada a pena de 120 dias de suspensão ao ora recorrente, com fundamentos constantes do relatório final.
Inteirados do que comprovadamente se passou, passemos à apreciação das questões acima elencadas.
1. Da prescrição
O recorrente suscitou a questão de prescrição do procedimento disciplinar em relação aos factos ocorridos antes de 26MAIO2006 com fundamento de que o procedimento disciplinar prescreve passados 3 anos sobre a data em que a falta houver sido cometida e que só em 26MAIO2009 foi ordenada a instauração do processo de averiguações;
Ora, é tida por assente a seguinte matéria de facto, com relevância à boa decisão da questão de prescrição suscitada pelo recorrente:
* Por despacho nº 2/SEF/2009, datado de 26MAIO2009, do Secretário para a Economia e Finanças, foi ordenada a instauração do processo de averiguações sobre Comissões dos Impostos (fls. 16 do p. a.);
* Conforme configurados na acusação, os factos de que foi acusado o arguido, ora recorrido, tiveram lugar no período compreendido entre 01JAN2006 e 16MAIO2007, data em que cessaram as suas funções de Director dos Serviços de Finanças, e as funções, por inerência, de Presidente da CAVM;
* Foi acusado, em síntese, de que nesse período ordenou ou, pelo menos, permitir o desdobramento por várias actas de cada reunião, com a consequente multiplicação de abonos de retribuições a si próprio, bem como aos demais membros da Comissão, de modo a que a remuneração, a que se refere o artº 176º do ETAPM, e que auferiu nesse período já ultrapassou o limite máximo prevista nesse artigo;
* Além disso, foi acusado também de que, nesse período de tempo, ordenou ou, pelo menos, permitir a participação simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais da CAVM, de modo a beneficiar os membros suplentes cuja participação só tinha lugar em substituição dos correspondentes membros efectivos.
Na óptica do recorrente, “sendo a prescrição uma causa extintiva da responsabilidade, não é, assim, admissível punir o Recorrente por todos os factos constantes da Acusação que tenham ocorrido antes da referida data (26 de Maio de 2006), designadamente o alegado “desdobramento por várias actas de cada reunião com a consequente multiplicação de abonos de retribuições a si próprio, bem como aos demais membros da Comissão…….”.
Por outro alega ainda o recorrente que o sistema de elaboração de actas foi decidido em 2002 pela CAVM, tendo-se os seus membros, desde então, limitado a executar a tal decisão.
A propósito do direito supletivo do direito disciplinar na função pública de Macau, ensina o H, “o legislador de Macau quis que o direito penal fosse como que a “grande bíblia” do direito disciplinar local, consagrando uma disposição em que, sem rodeios, o elege como direito supletivo por excelência”.
Na verdade, reza o artº 277º do ETAPM que “aplicam-se supletivamente ao regime disciplinar as normas de Direito Penal em vigor na RAEM, com as devidas adaptações”.
Na esteira da tese defendida por H e bem alicerçada nesse artº 277º, é de concluir que a teoria da infracção penal, na parte referente à matéria de concurso de infracções e continuação criminosa, subjacente à feitura do artº 29º do Código Penal, se aplica, mutatis mutandis, às infracções disciplinares na função pública da RAEM.
Regressando ao caso sub judice, cremos que a boa decisão para a questão em causa deve ser precedida da correcta qualificação jurídica dos factos (na hipótese de serem susceptíveis de integrar o tipo de determinada infracção disciplinar) de que foi acusado o arguido, no período compreendido entre 01JAN2006 e 16MAIO2007.
Trata-se de uma questão de saber se os tais factos constituem uma única infracção disciplinar, uma pluralidade de infracções disciplinares ou uma realização plúrima de uma mesma infracção disciplinar que, foi ficcionada por lei como se fosse a unicidade de infracção para efeito de punição – artº 29º/2 do CP.
Antes de mais, pela forma como foram descritos os factos na acusação, é de afastar de hipótese de os qualificar como uma única infracção em sentido material, uma vez que a cada um dos actos de multiplicar as actas de reunião e de permitir a presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais está subjacente uma resolução ou vontade autónoma, ou seja, tantos projectos de factos quantas resoluções ou vontades, e o que é bem demonstrativo da pluralidade de infracções e evidentemente incompatíveis à unicidade de infracção ou a infracções permanentes.
Interesse averiguar se estamos perante uma situação de concurso de infracções, ou a da continuação de infracções.
Como se sabe, na teoria do crime, tanto o concurso efectivo de crimes como o crime continuado, constituem uma verdadeira pluralidade de crimes.
Pois nas palavras de Figueiredo Dias, o crime continuado, numa visão material das coisas, não deixa de ser uma unidade jurídica construída sobre uma pluralidade efectiva de crimes – in As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 296.
Ou seja, a lei ficciona uma pluralidade material como se fosse uma unidade jurídica para o efeito de punição.
Apesar de não nos interessar tanto a forma de punição, o certo é que, nos termos do disposto no artº 111º do CP, ex vi do artº 277º do ETAPM, o terminus a quo do prazo de prescrição de 3 anos a que se refere o artº 289º/3 do ETAPM varia conforme se trata de uma unidade de infracção ou de uma continuação de infracção.
Ou seja, se estamos perante um concurso efectivo de infracções disciplinares, o procedimento disciplinar de todos os actos de multiplicação de actas e permissão da presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões anteriores a 26MAIO2006 já prescreveu no momento do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, proferido em 26MAIO2009, por ter entretanto decorrido mais do que três anos.
Antes pelo contrário, se os factos integram uma continuação de infracções, o início do prazo de prescrição só corre desde o dia da prática do último acto, que in casu é o dia 15MAIO2007, em que se realizou a última reunião presidida pelo ora recorrente.
Não nos vamos debruçar muito sobre a doutrina de crime continuado, limitamo-nos a tentar qualificar os factos constantes da acusação a fim de saber se estamos perante uma continuação de infracções, a que se alude o artº 29º/2 do CP, ex vi do artº 277º do ETAPM.
Diz o artº 29º/2 do CP que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Ora, perante o quadro fáctico global, tal como descrito na acusação, temos presente a interpretação de que, não obstante a nítida pluralidade material de actos imputados ao arguido, ora recorrente, este deve beneficiar de punição a título de continuação de infracções dado que ele agiu sempre por forma homogénea (multiplicação de actas) e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior (a confissão do recorrente de que a prática de elaboração de actas por dia de reunião nas comissões fiscais foi instituído desde há 30 anos – vide o artº 80º da petição do recurso, e a permissão reiterada de participação simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais da CAVM, facilitada por um ambiente criado desde o início do funcionamento da CAVM) que leva o recorrente de ter cada vez menos liberdade de agir de outra maneira.
Portanto, cremos que todos os factos, objecto da acusação, ocorridos no período compreendido entre 01JAN2006 e 16MAIO2007, devem integrar-se numa verdadeira continuação de infracções disciplinares, a que se refere ao artº 29º/2 do CP, ex vi do artº 277º do ETAPM, pois não obstante a sua pluralidade material, formam a unidade jurídica.
Assim sendo, apesar de terem sido praticados antes de 26MAIO2006, o procedimento disciplinar desses factos anteriores não está prescrito, pois formam, com o resto dos factos posteriores a esta data, uma unidade jurídica por força do artº 29º/2 do CP, ex vi do artº 277º do ETAPM.
Improcede a alegada prescrição parcial dos factos.
2. Da falta de audiência;
O recorrente vem arguir a nulidade, por falta de audiência, do procedimento disciplinar que cominou com a prolação do acto ora recorrido.
A falta de audiência alegada pelo recorrente consiste na alegada insuficiência manifesta do tempo para a preparação e organização da defesa.
De acordo com o próprio texto da acusação, ao arguido foi inicialmente concedido o prazo de 10 dias para a apresentação da defesa escrita – artº 49º da Acusação.
Com fundamento na complexidade factual e jurídica e na extensão do processo disciplinar e na disponibilidade dos anexos do processo apenas 3 dias antes do termo do prazo inicial de 10 dias para a apresentação da defesa escrita, o então arguido, ora recorrente, pediu a prorrogação do prazo até ao limite legal máximo de 45 dias.
O pedido acabou por ser parcialmente acolhido, passando o prazo para a apresentação da defesa escrita ser prorrogado por mais 15 dias, perfazendo o prazo global de 25 dias.
Não obstante a prorrogação do prazo, o recorrente entende que o prazo de 25 dias é manifestamente insuficiente para a organização da defesa.
O regime de nulidades processuais no âmbito de procedimento disciplinar encontra-se regulado no artº 298º do ETAPM, que reza:
1. É insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do arguido em artigos de acusação, nos quais as infracções sejam suficientemente individualizadas e referidas aos preceitos legais infringidos, bem como a que resulte de omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade.
2. É equiparada à nulidade referida no número anterior a falta de audiência, na fase de defesa, das testemunhas indicadas pelo arguido nos termos do disposto no artigo 335.º
3. As restantes nulidades consideram-se supridas se não forem reclamadas pelo arguido até decisão final.
Ensina H que a expressão “audiência do arguido”, tem uma vocação mais ampla do que aquela que é sugerida pela sua literalidade, devendo antes ser entendida como um expediente que se alarga no conteúdo, do modo a que possa assegurar, e durante toda esta fase do procedimento, uma defesa completa ao arguido – in Manual de Direito Disciplinar, pág. 185.
Para o recorrente, o prazo de 25 dias é manifestamente insuficiente para a preparação e organização da defesa.
Ora, da simples leitura do texto da acusação deduzida contra o arguido, ora recorrente, não nos parece que os factos descritos se reportam a um caso complexo, não obstante o largo intervalo de tempo em que tiveram lugar.
A acusação contém 52 artigos, espalhados nas 29 páginas, tendo começado pela identificação do arguido e pelo seu currículo profissional, a que se seguem a descrição do funcionamento e a forma da documentação de reuniões da CAVM, o papel que desempenhava o arguido no âmbito da CAVM e nas reuniões, assim como a identificação e a descrição sumária da agenda das mesmas reuniões, e termina com o juízo de qualificação jurídica desses factos como integráveis nas ilegalidades e o juízo de imputabilidade desses factos ao arguido.
Mais se nota que só os dois artigos, os 22º e 23º que se debruçam sobre a identificação e a descrição sumária da agenda das mesmas reuniões já ocupa uma extensão das págs. 5 a 22 do texto da acusação.
Tal como se pode detectar facilmente com a leitura desses dois artigos, as reuniões decorreram de forma essencialmente homogénea.
Globalmente interpretados os factos constantes da acusação, o que se imputa ao arguido é o desdobramento sem justificação e a permissão da presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais da CAVM.
Os factos essenciais consistem simplesmente no desdobramento por várias actas de cada uma das reuniões durante o intervalo de tempo especificado na acusação, com vista a multiplicação de abonos de retribuições a si próprio e aos demais membros da CAVM, assim como a permissão da presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais da CAVM, por forma a beneficiar os membros suplentes que não tinham de estar presente fora das situações de ausência ou de impedimento dos correspondentes efectivos.
Para sustentar a sua tese de manifesta insuficiência do tempo para a preparação de defesa, o recorrente salienta o enorme número das páginas e dos volumes do próprio processo material de procedimento disciplinar e dos seus anexos.
Todavia, para nós o recorrente está a exagerar o volume dos trabalhos necessários à preparação de defesa.
Basta folhear e dar uma vista de olhos diagonal a alguns dos anexos que contém apenas actas mais ou menos padronizadas e anexos dos documentos que são essencialmente pedidos de avaliação de preços de veículos para o efeito de tributação, já sabemos que não é necessário examinar folha por folha, linha por linha, e palavra por palavra nestes documentos.
Na verdade, tendo em conta os factos imputados ao arguido, que são essencialmente factos pessoais dele próprio, pergunta-se quê interesse tem para saber qual é a marca de veículo em causa? qual é a sua cilindrada? de quê país é o fabrico e em que o ano se fabricou? assim como qual é o conteúdo todos os pormenores dos respectivos catálogos?
Portanto, tendo em conta estas circunstâncias todas, cremos que a fixação em 25 dias do prazo para a defesa está longe de ter a virtualidade de comprometer uma defesa completa do arguido, pois, essencialmente falando, o ataque contra o qual o arguido tem de se defender não é mais do que o desdobramento por várias actas de cada reunião, com a consequente multiplicação de abonos de retribuições a si próprio e aos demais membros da CAVM, em prejuízo do erário público, executados por forma essencialmente homogénea, assim como a permissão, injustificada, da presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais da CAVM, por forma a beneficiar os membros suplentes que não tinham de estar presente fora das situações de ausência ou de impedimento dos correspondentes efectivos.
Improcede assim essa parte do recurso.
3. Da falta de requisitos legais da acusação;
O recorrente assaca à acusação a inobservância das exigências legais de requisitos formais e substanciais, dizendo que muitos dos actos imputados ao arguido não são individualizados por artigos, não foi imputado a cada ilícito o dever funcional violado nem a pena aplicável, não foi identificada a motivação do arguido em relação aos factos que lhe são imputados, nem o grau da sua participação nos mesmos, por um lado, e imputa à acusação de ter emitido juízos de valor, interpretações e conclusões jurídicas, por outro lado.
Na óptica do recorrente, as tais irregularidades são geradoras da nulidade insuprível da falta de audiência a que se refere o artº 289º/1 do ETAPM.
Não tem razão o recorrente.
O recorrente selecciona os artigos 22º e 23º para demonstrar a não descrição, por artigos, dos actos cuja prática é imputada ao arguido.
Lidos os dois artigos, 22º e 23º, verificamos que o artº 22º visa elencar e identificar individualmente as 92 reuniões da CAVM realizadas durante o período compreendido entre 05JAN2006 e 10MAIO2007, e o número das actas elaboradas em cada uma dessas reuniões e que no artº 23º foram elencadas, linha por linha e individualmente as reuniões presididas pelo arguido e em que participaram não só os membros efectivos, como também os suplentes da comissão.
Portando, não se percebe sinceramente como é que a tal individualização pode infringir a norma que exige a articulação dos factos.
Por outro lado, basta uma leitura simples do próprio texto da acusação, nomeadamente nos seus artºs 23º, 34º, 37º, 39º, 43º e 44º, onde foram identificados deveres funcionais cuja violação foi imputada ao arguido, as penas aplicáveis.
Quanto à motivação do arguido em relação aos factos que lhe são imputados e ao grau da participação do arguido nos factos, é de realçar que, tal como sucede com o grau de culpa e de ilicitude, o grau da participação não é facto material mas sim juízo de censura a extrair da interpretação global dos factos imputáveis ao arguido e que ao contrário do que disse o recorrente, foi expressamente indicada a motivação para a prática dos factos.
Para nós, existe uma grande abundância dos factos descritos na acusação capazes de demonstrar a motivação do arguido em relação aos factos que lhe são imputados e o grau da participação do arguido nos factos, nomeadamente os factos descritos no artº 20º, onde ao arguido, enquanto presidente da CAVM, foram imputados os factos de ter ordenado, ou pelo menos, permitir o desdobramento por várias actas de cada reunião, com a consequente multiplicação de abonos de retribuições a si próprio, bem como aos demais membros.
Finalmente o recorrente disse ainda que a acusação padece da nulidade insuprível por ter emitido juízos de valor, interpretações e conclusões jurídicas.
Como se sabe, no procedimento disciplinar, a acusação define e fixa o thema probandum, que consiste no conjunto dos factos materiais, descritivos ou demonstrativos do lugar, do tempo, da motivação da sua prática, do grau de participação que o arguido teve na prática dos factos, e capazes de fundamentar a aplicação ao arguido de sanções disciplinares previstas na lei, assim como todas as outras circunstâncias, atenuantes e agravantes, com relevância à determinação concreta de sanções disciplinares.
E a acusação visa assegurar um efectivo e consistente direito de defesa do arguido e os seus direitos de contraditoriedade e audiência.
No mesmo sentido defende também H, ensinando que “a acusação é o momento ou fase processual mais solene de todo o procedimento e que lhe marca o destino, pois é com ela que o trabalhador da Administração fica a saber com rigor o que lhe é imputado e é ela que define e delimita o objecto do processo daí em diante, não só no que toca à organização da defesa mas também quanto à amplitude da decisão final, que obrigatoriamente se terá que conter nos limites dessa mesma acusação – ibidem, pág. 182.
Regressamos à questão sub judice.
Na esteira do que defendemos e do Douto ensinamento do Conselheiro H, podemos concluir tranquilamente que, desde que contenha na acusação factos materiais que fixa e delimita o thema probandum, os direitos de contraditoriedade e audiência do arguido ficam desde logo assegurados e que o simples facto de a acusação ter emitido juízos de valores, interpretações e conclusões jurídicas de per si não tem qualquer relevância na apreciação da sua validade processual e substancial, pois o que interesse essencialmente à validade de uma acusação é a sua capacidade, pelo seu conteúdo, permitir ao arguido alcançar os factos materiais que lhe são imputados e lograr defender-se de modo que entender adequado.
É o que sucede in casu.
Alias, conforme se vê na defesa escrita apresentada pelo arguido, quer pela extensão dos seus articulados quer pelo seu conteúdo, ele mostrou-se bem inteirado dos factos materiais que lhe são imputados e revelou ter compreendido o sentido e alcance da acusação.
Assim, tendo a acusação cumprido a sua função mais nobre de garantir a audiência e defesa do arguido, cai por terra toda a tese defendida pelo recorrente de que a acusação padece da nulidade insuprível por falta de requisitos legais.
4. Das nulidades insupríveis por falta de audiência
O recorrente imputa ao acto recorrido “três nulidades”.
Em primeiro lugar, o recorrente entende que o acto recorrido é nulo por vício da falta de audiência do arguido, com fundamento na não notificação atempada de prova requerida e na falta de oportunidade (em tempo útil) para a sua consulta, e na omissão da notificação da junção de uma acta da CAVM, cuja junção requereu, tudo nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 122.º do CPA e do artigo 298.º do ETAPM.
Mais concretamente falando, o recorrente disse que só tinha sido notificado da junção dos documentos que solicitou na contestação no momento posterior ao início da inquirição das testemunhas por ele arroladas, de modo a que ele não podia confrontar as testemunhas com os tais documentos.
É verdade que na contestação o arguido requereu ao Ilustre Instrutor a junção, mediante a requisição junto do CA e da DSF, de determinados documentos e pediu que a inquirição das testemunhas fosse agendada para momento posterior à junção aos autos de todos estes documentos, por forma a permitir o confronto das testemunhas com estes documentos e informações que, na sua óptica se revelava essencial para a sua cabal defesa.
Posteriormente, na sequência da inquirição de uma das testemunhas arroladas pelo arguido, este pediu a requisição junto da DSF e a junção aos autos da cópia da acta nº 180/CAVM/2009.
Pedido esse que foi deferido e o documento requisitado veio a ser enviado mediante o ofício da DSF datado de 14DEZ2009 e incorporado nos autos a fls. 2569.
Vem agora dizer que, tal acta, cujo teor não era do seu conhecimento, e mesmo após a sua junção aos autos, não lhe foi notificado para sobre ela exercer o direito ao contraditório.
Na óptica do recorrente, a não notificação atempada da junção daquelas provas e a falta de notificação da junção da acta constituem nulidade insuprível da falta de audiência.
Em face do que foi suscitado pelo recorrente, cremos que a boa decisão tem de passar pelo apuramento da razão de ser do artº 298º do ETAPM, que fixa o regime das nulidades formais do procedimento disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública.
O artº 298º do ETAPM, que tem a seguinte redacção:
(Nulidades)
1. É insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do arguido em artigos de acusação, nos quais as infracções sejam suficientemente individualizadas e referidas aos preceitos legais infringidos, bem como a que resulte de omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade.
2. É equiparada à nulidade referida no número anterior a falta de audiência, na fase de defesa, das testemunhas indicadas pelo arguido nos termos do disposto no artigo 335.º
3. As restantes nulidades consideram-se supridas se não forem reclamadas pelo arguido até decisão final.
Como se sabe, a validade dos actos processuais depende da sua correspondência ao modelo legal quanto a «quem» pode praticar os actos, a «quando», a «onde» e a «como» devem ser praticados os actos.
Constituem nulidades processuais a prática dos actos processuais ou a omissão da prática dos actos processuais que representam o desvio ou a inobservância do tal modelo legal.
No entanto, por razões sobretudo que se prende com o grau da importância do bem jurídico que o ritualismo processual visa tutelar, ou com o grau da sua violação, por um lado, e pelos valores da economia e celeridade processual, por outro, a lei não faz equiparar, quanto às consequências, todas as inobservâncias do ritualismo processual, mas sim procura harmonizar, mediante a concordância prática, o carácter imperativo e solene do modelo legal do procedimento e a celeridade processual e o aproveitamento do processado.
O tratamento dessas inobservâncias é bipartido consoante a gravidade dos vícios que representam a lesão dos bens jurídicos.
Segundo este critério, só quando estiver em causa a lesão de bens jurídicos importantes e/ou o grau da sua violação for de tal maneira elevado que fique lesado o conteúdo essencial dos bens jurídicos tutelados pelo ritualismo legalmente prescrito, a lei não tolera a sua violação e comina expressamente a sanção da nulidade insuprível, invocável a todo o tempo por qualquer interessado e susceptível de ser declarada a todo o tempo por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal – artº 298º/1 do ETAPM e artº 123º do CPA.
E residualmente, quaisquer violações do ritualismo processual diversas daquelas que tenham sido expressamente qualificadas como nulidades insupríveis só constituem nulidades secundárias ou relativas, dependentes da arguição atempada pelo interessado, que se tornarão automaticamente sanadas se decorrido o certo intervalo de tempo sem que tenham sido arguidas.
Na esteira desse entendimento, é de concluir que não basta a violação de uma norma que comina expressamente a nulidade insuprível para legitimar a invalidação, a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, do acto viciado e consequentemente de todos os actos dele dependentes e eventualmente de todo o procedimento.
É sim preciso indagar, caso a caso, a gravidade do vício em causa, ou seja, averiguar se, atendendo às circunstâncias concretas do caso, houve lesão do conteúdo essencial do bem jurídico em causa e o grau da violação do mesmo bem jurídico, a fim de ajuizar se o desvio ao ritualismo processual é de tal maneira violento que não pode deixar de desencadear as sanções mais gravosas que a lei faz corresponder às nulidades insupríveis, mesmo com o enorme prejuízo aos valores da economia e da celebridade processual, também dignos da tutela jurídica.
Regressando ao caso sub judice.
É tido por assente que o arguido foi notificado em 16NOV2009 da junção aos autos dos documentos e que a inquirição da primeira testemunha foi agendada para o dia 10NOV2009.
Para o recorrente, a não notificação atempada da junção dos documentos implica a falta de audiência, geradora da nulidade insuprível.
É certo que por força do princípio do contraditório, ao arguido deve ser assegurada a oportunidade de se pronunciar sobre a eventualidade de realização das diligências probatórias ordenadas ex oficio pelo instrutor e contradizer o conteúdo das provas oficiosamente obtidas ou produzidas pelo instrutor, uma vez que estas provas a produzir ou a juntar podem ter conteúdo que o arguido desconhece e que lhe é desfavorável.
Portanto o conteúdo essencial da contraditoriedade fica tutelado se ao arguido for assegurada a possibilidade de impugnar as diligências probatórias ex oficio ordenadas e contradizer ou pronunciar-se sobre os meios de prova ex oficio mandados juntar aos autos no decurso do procedimento disciplinar
Como se sabe, as provas tem por função a demonstração da realidade dos factos – artº 334º do CC.
In casu, foi por iniciativa e a requerimento do próprio arguido que se adquiriram e juntaram aos autos os tais documentos e a acta nº 180/CAVM/2009 da CAVM.
Tratam-se das provas pré-constituídas, ou seja, já existem no mundo não por causa da instauração do procedimento disciplinar nem foram nele produzidas.
Portanto, ao contrário do que se sucede com as provas a produzir, cujo conteúdo ou mensagem o requerente da prova pode não conhecer, o arguido ora recorrente não pode deixar de conhecer o conteúdo dos documentos cuja junção requereu e que são provas pré-constituídas.
Ora, pela lógica das coisas e pelo seu estatuto e pela posição processual do arguido que patrocina no âmbito de um procedimento disciplinar, o Ilustre Mandatário deve actuar, e cremos que actuou mesmo, exclusivamente no interesse do arguido, limitando-se a requerer ou juntar provas para comprovar factos demonstrativos da inocência ou da menor responsabilidade do arguido.
Na verdade, não faz parte do conteúdo essencial do direito de audiência assegurar ao arguido o contraditório em relação aos meios de prova que ele próprio pediu para juntar aos autos, ou seja, para contradizer o que ele próprio oferece ou resulta da defesa.
Assim, tanto a alegada não notificação atempada da junção dos documentos do CA e da DSF, como a simples omissão da notificação da junção da acta nº 180/CAVM/2009 da CAVM, não têm a virtualidade de ofender o conteúdo essencial da contraditoriedade, e portanto nunca podem constituir nulidade insuprível e quanto muito só podem gerar a mera nulidade secundária a que se refere o artº 298º/3 do ETAPM.
Em relação aos documentos requisitados ao CA e à DSF, que o arguido alegou pretender utilizá-los para confrontar as testemunhas por ele arroladas aquando da sua inquirição, a eventual nulidade secundária adveniente da não notificação atempada ao arguido já ficou desde há muito tempo sanada nos termos do disposto no artº 108º/1-c) do CPP, subsidiariamente aplicável ao procedimento disciplinar.
Diz o artº 108º/1-c) do CPP que as nulidades ficam sanadas se os participantes processuais interessados se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia.
In casu, foi justamente esta situação que aconteceu.
Pois conforme se vê nas actas em que foi documentada a inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido, o Ilustre Mandatário presente na audiência exerceu o seu direito de inquirir as testemunhas arroladas sem que tivesse levantado a questão da não disponibilidade dos documentos para confrontar as testemunhas nos termos peticionados na sua contestação.
Já em relação à omissão da notificação da junção da acta nº 180/CAVM/2009 da CAVM, a eventual nulidade secundária também ficou sanada por não ter sido arguida pelo arguido até à prolação do despacho ora recorrido, nos termos prescritos no artº 298º/3 do ETAPM.
Improcede a arguição da primeira nulidade insuprível por falta de audiência.
Em segundo lugar, o recorrente suscitou a questão de falta de audiência, geradora da nulidade insuprível, por várias alegadas ilegalidades ocorridas na diligência da produção da prova testemunhal do Secretário para a Economia e Finanças.
Passamos a apreciá-las uma por uma.
a) Alega o recorrente que: Não é possível confirmar nos autos, no âmbito da diligência requerida pela defesa, quando e em que termos foi efectuada a notificação do SEF para depor por escrito, não sendo possível, inclusivamente, verificar se a transmissão foi com a completa e integral cópia dos artigos a que foi indicado.
Aqui o recorrente imputa à produção da prova testemunhal uma série das invalidades, quais são o erro na designação do cargo que o então SEF I ocupava no Governo da RAEM, constante do ofício da notificação do seu arrolamento como testemunha no procedimento disciplinar.
Ora, trata-se de um lapso manifesto de escrita e em nada afecta a validade de notificação nem o direito de defesa do arguido.
É verdade que consta no cabeçalho do ofício que “Exmº Senhor Dr. I, Mui Ilustre Secretário para a Administração e Justiça do Governo da Região Administrativa Especial de Macau” (subl. nosso) – vide fls. 2284 do Processo Disciplinar. Todavia, pela notoriedade do nome do Dr. I e pela resposta efectivamente dada ao ofício pelo próprio Dr. I a fls. 2423 a 2424 do Processo Disciplinar, cremos com toda a certeza que o ofício chegou ao seu destinatário certo.
O recorrente questionou a tempestividade do exercício do direito de depor por escrito do SEF, uma vez que para ele, não constando do processo disciplinar elementos demonstrativos da data em que foi notificado o SEF e da data em que o SEF juntou aos autos o seu depoimento por escrito, não se sabe se foi observado o prazo legal de 10 dias a que se refere o artº 527º/2 do CPC, à luz do qual se alguma dessas pessoas preferir depor por escrito, remete ao tribunal da causa, no prazo de 10 dias a contar da data do conhecimento referido no número anterior, declaração, sob compromisso de honra, relatando o que sabe quanto aos factos indicados.
Bom, para nós, independentemente da observância ou não desse prazo meramente ordenador, que não estamos em condições objectivas para ajuizar por falta de elementos nos autos, é de dizer que, mesmo na hipótese de não observado o prazo, tal não constituiria nulidade insuprível por falta de audiência do arguido, a que se refere o artº 298º/1 do ETAPM, uma vez que tendo sido o depoimento por escrito efectivamente junto aos autos e levado ao conhecimento do arguido, em nada fica comprometido o direito de audiência de arguido. Portanto, existiria quanto muito uma mera nulidade secundária, já sanada com prolação da decisão final ora recorrida por não ter sido tempestivamente arguida.
b) Alega o recorrente que: Não foi, nem é, possível conferir e confirmar nos autos os termos em que foi feita a eventual tradução da matéria a que o SEF devia responder, sendo certo, porém, que a tradução em causa não terá sido feita pelo intérprete nomeado nos autos, como deveria ser, nos termos do n.º 3 do artigo 293.º do ETAPM.
O recorrente disse que só foi junta aos autos a cópia do ofício para a notificação do SEF, e não também a cópia do seu anexo que era a matéria de defesa alegada pelo arguido sobre a qual o SEF devia depor. Portanto com a falta da junção da cópia integral, o recorrente disse que não sabia se esta matéria alegada pela defesa, redigida em português, foi traduzida para chinês, o que era indispensável, uma vez que o SEF, como é notório do conhecimento público, não domina a língua portuguesa.
Ora, com a apresentação do seu depoimento por escrito pelo SEF e pelo seu teor (vide as fls. 2423 a 2424), é de afastar de todo em todo quaisquer preocupações por parte do recorrente da falta do envio do anexo ao SEF e da não compreensão do teor da matéria sobre a qual teria de depor o SEF por a matéria de defesa escrita em português não ter sido acompanhada da respectiva tradução.
É uma questão falsa!
c) Mas alega o recorrente que : A testemunha não respondeu a matéria relevante à qual tinha sido indicada, não tendo para tal sido instada, novamente, a depor pelo Exmo. Instrutor (como requerido pelo Recorrente), o qual acabou por se substituir à testemunha ao responder no lugar desta; Foi negado ao Recorrente o direito potestativo de ouvir o SEF em inquirição pessoal, nos termos do n.º 4 do artigo 527.º do CPC; e, ainda que não estivesse verificado o requisito deste artigo, o que não é de presumir; e Não lhe foi dada a possibilidade de pedir esclarecimentos ao depoimento incompleto e incongruente prestado pelo SEF.
Tendo em conta o teor do depoimento por escrito do SEF a fls.2423 a 2424 dos autos do procedimento disciplinar, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e o thema probandum consistente na matéria dos artºs 46º, 50º 167º, 185º, 190º, 220º, 225º e 338º alegada pela defesa, cujo teor também se dá aqui por reproduzido, não vemos em que termos o depoimento se apresenta incompleto por forma a justificar a necessidade de audiência pessoal do SEF, tal como decidiu e bem o Ilustre Instrutor no seu despacho a fls. 2675 a 2676 dos autos do procedimento disciplinar.
Aliás, nos termos do disposto no artº 527º/2 do CPC, ex vi do artº 126º/1 do CPP, subsidiariamente aplicável ao procedimento disciplinar, é inimpugnável a decisão do Instrutor sobre o pedido para a convocação da testemunha com a prerrogativa de depor por escrito para prestar esclarecimento em audiência pessoal.
Pelo que ficou dito supra, improcedem todas as questões que se prendem com a alegada nulidades assacada ao depoimento por escrito prestado pela testemunha I, então SEF.
Finalmente, o recorrente imputou, nas motivações do recurso, ao acto recorrido a terceira e a última nulidade insuprível por não audição dos cinco deputados arrolados como testemunhas.
O arguido arrolou cinco deputados como testemunhas e estes não vieram a ser inquiridos como tais nos autos do procedimento disciplinar.
No seu despacho que deu por encerrada a instrução, o Ilustre Instrutor justificou a não audição dos cinco deputados nos termos seguintes:
…….
2. Em 30 de Outubro de 2009, através do Ofício nº 62/GCE/PD/ACMS/2009 (fls. 1358 e 1359) foi solicitada autorização da Mesa da Assembleia Legislativa para audição das referidas testemunhas tendo sido solicitada «urgência na decisão, atento o disposto no nº 1 do artigo 336.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM)».
......
40. Por tudo isto, considero que é suficiente a prova produzida para formar a livre convicção do instrutor relativamente a esta matéria da defesa, pelo que suspender o processo para aguardar pela hipotética audição dos deputados arrolados como testemunhas de defesa, até pela incerteza sobre a resposta da Assembleia Legislativa – quer quanto ao tempo, quer quanto ao sentido da mesma – seria uma medida meramente dilatória, arrastando a decisão do processo por tempo indeterminado, o que não se compadece com a própria natureza do procedimento disciplinar, atrás referida, nem com o próprio interesse dos arguidos em verem concluído o processo. – vide as fls. 2698 dos autos do procedimento disciplinar.
Vem agora o recorrente dizer que compulsados os autos, o Recorrente não encontra juntos aos mesmos, qualquer comprovativo de entrega de tal ofício na sede da Assembleia Legislativa, seja por protocolo, seja por correio registado, seja por qualquer outra legalmente admissível para o efeito.
Ora, consta das fls. 1358 e 1359 dos autos do procedimento disciplinar a cópia do ofício nº 6262/GCE/PD/ACMS/2009, através do qual o Ilustre Instrutor solicitou ao Presidente da Assembleia Legislativa da RAEM que fossem autorizados os cinco deputados arrolados como testemunhas a depor no âmbito do procedimento disciplinar.
E temos, logo a seguir nas fls. 1360 dos mesmos autos, presente uma cópia de um ofício emanado e assinado pelo próprio punho do Senhor Chefe do Executivo que se serviu de correio para fazer chegar o ofício nº 6262/GCE/PD/ACMS/2009 ao Presidente da Assembleia Legislativa da RAEM.
Ora, não obstante serem cópias, tratando-se de peças produzidas no âmbito de um procedimento disciplinar, e cuja autenticidade e cujo teor não foram fundadamente questionados, ambas as cópias têm a força probatória suficiente para comprovar que o ofício nº 6262/GCE/PD/ACMS/2009 foi efectivamente feito chegar ao seu destinatário que é justamente o Presidente da Assembleia Legislativa da RAEM.
Ao contrário do que sucede como os cidadãos em geral, os deputados da Assembleia Legislativa não podem depor como testemunhas senão para tal autorizados pela Mesa da Assembleia Legislativa – artº 30º da Lei n.º 3/2000, nos termos do qual os Deputados carecem de autorização da Mesa da Assembleia Legislativa para poderem intervir em juízo como testemunhas, peritos ou jurados, e para poderem ser ouvidos como declarantes ou arguidos, salvo, neste último caso, quando detidos em flagrante delito.
Ao estatuir como estatuiu nesse artigo 30º, o nosso legislador fez claramente a opção por fazer prevalecer a dignidade dos membros do órgão legislativo quando confrontados com a possibilidade de serem convocados para serem inquiridos, como meio de prova, pelas entidades dos poderes executivo e judicial, nos processos sob a direcção de um desses poderes, mesmo em detrimento ou até sacrifício da verdade material perseguida no âmbito desses processos.
Assim, face ao silêncio e à inércia por parte da Assembleia Legislativa quanto à solicitação a ela dirigida mediante o ofício nº 6262/GCE/PD/ACMS/2009, feito chegar ao seu Presidente através do solene ofício nº 8618/GCE/2009, emanado e subscrito pelo próprio punho do Chefe do Executivo, não resta ao Ilustre Instrutor outra alternativa que não seja a de não aguardar eternamente a esperada autorização da Mesa da Assembleia Legislativa e dar por encerrada a instrução, uma vez que, face à opção do nosso legislador, o bem jurídico da verdade material não foi elegido como valor supremo no nosso ordenamento jurídico ou valor superior ao da protecção da dignidade soberana dos Ilustres membros da Assembleia Legislativa.
Sem mais delonga, é de concluir que o Ilustre Instrutor bem andou ao decidir como decidiu dando por encerrada a instrução, em vez de esperar eternamente a tal autorização.
Resultando da opção do nosso legislador pela superioridade do bem jurídico da protecção da dignidade do poder legislativo face aos outros poderes, a não inquirição ou a impossibilidade da inquirição dos deputados arrolados, por falta da autorização da Mesa da Assembleia Legislativa, em caso algum, tem a virtualidade de constituir nulidade no procedimento disciplinar.
5. Da incompetência do Chefe do Executivo para ordenar a instauração do processo disciplinar
Na sequência da apresentação do relatório de averiguações e sob proposta do Senhor Secretário para a Economia e Finanças, o Senhor Chefe do Executivo determinou a instauração do processo disciplinar contra F, G e B, ora recorrente.
O recorrente vem agora dizer que, tendo em conta as circunstâncias do caso e face ao disposto nos artºs 318º e 319º do ETAPM, o Senhor Chefe do Executivo não é competente para a instauração do processo disciplinar.
Os artºs 318º e 319º do ETAPM têm a seguinte redacção:
Artigo 318.º
(Princípio geral)
1. A competência disciplinar dos superiores envolve sempre a dos seus inferiores hierárquicos dentro do serviço.
2. É competente para instaurar procedimento disciplinar a entidade responsável pelo serviço a que o infractor será afecto no momento da prática da infracção, cabendo-lhe também proferir a decisão respectiva, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes.
Artigo 319.º
(Pluralidade de arguidos)
1. Quando vários funcionários ou agentes de um mesmo serviço sejam arguidos da prática de factos entre si conexos e a que correspondam diferentes penas, será competente para instaurar o procedimento disciplinar a entidade que tiver poderes para aplicar a pena mais elevada.
2. Se os arguidos pertencerem a diversos serviços, deferir-se-á a competência ao Governador, independentemente das penas aplicáveis.
Para o recorrente, não se verificando in casu a situação da pluralidade dos arguidos pertencentes a diversos serviços, tipificada no artº 319º/2 do ETAPM, não se pode aplicar a estatuição do mesmo preceito para reconhecer ao Senhor Chefe do Executivo a competência para a instauração do processo disciplinar.
E tendo em conta as circunstância do caso, a competência para a instauração do processo disciplinar é própria do Senhor Secretário para a Economia e Finanças, pois lhe é conferida directamente por lei, nos termos conjugados dos artºs 318º e 319º/1 do ETAPM, uma vez que, na óptica do recorrente, de duas uma, ou os arguidos tinham todos o mesmo dirigente directo, ou como o arguido G foi erradamente constituído arguido por estar vinculado à Administração Pública por um contrato individual de trabalho, também erradamente reportado não pertencente à DSF por exercer funções de acordo com instruções directamente recebidas da DSF, não pode ser um dos factores determinantes da competência para a instauração do processo disciplinar.
De acordo com preceituado no artº 318º/2 do ETAPM, o momento a que se deve atender para a determinação da competência disciplinar em razão da categoria funcional do visado é o momento da prática dos factos indiciados.
Pela ordem lógica e cronológica, a decisão que determina a instauração de um processo disciplinar precede sempre a abertura do processo disciplinar.
Assim, a questão de saber a quem pertence a titularidade da competência disciplinar é aferida e decidida apenas com base em elementos disponíveis, muitas vezes ainda escassos, nesse momento ainda anterior à abertura do processo, que são apenas uma mera notitia criminis ou indícios do ilícito.
Pode acontecer que, no âmbito e ao longo do procedimento disciplinar se vão apurando a posteriori circunstâncias e factos diversos daqueles que foram reportados como indiciados no momento da decisão ordenando a instauração do processo, nomeadamente quanto à categoria funcional do arguido, à modalidade do seu vínculo funcional à Administração Pública.
In casu, não obstante a omissão, no relatório de averiguações, da identificação dos indivíduos a quem foi imputada a prática dos factos susceptíveis de constituir violação dos deveres de zelo, de isenção e lealdade, estes indivíduos são reportados como funcionários públicos – vide fls. 9 dos autos do procedimento disciplinar.
E foi com base no teor desse relatório que o Senhor Secretário para a Economia e Finanças propôs ao Senhor Chefe do Executivo a instauração do processo disciplinar.
De acordo com os elementos dos autos, disponíveis aquando da instauração do processo disciplinar, no momento dos factos, F, era Subdirectora da DSF, G era Assessor do Secretário (fisicamente afectado à DSF) para a Economia e Finanças e B era Director da DSF.
Em síntese, os elementos disponíveis no momento da instauração do processo são: três visados eram todos funcionários públicos, dos quais um era assessor do Senhor Secretário para a Economia e Finanças e dois pertenciam à DSF.
O que corresponde justamente à pluralidade dos arguidos pertencentes a diversos serviços, a que se refere o artº 319º/2, à luz do qual o Senhor Chefe do Executivo é competente para a instauração do processo disciplinar.
Urge agora averiguar se a eventual alteração das circunstâncias, inicialmente determinantes da competência disciplinar, conduz à invalidação da decisão que determinou a instauração do processo, ou seja, se pode gerar o vício processual da “incompetência superveniente”.
Tal como sucede com a maioria das questões sobre a interpretação das normas processuais, a boa decisão sobre esta questão tem de passar pela identificação do bem jurídico que os artºs 318º e 319º do ETAPM visam tutelar.
O artº 318º tem em vista determinar a titularidade da competência disciplinar no caso da unicidade do arguido, ao passo que o artº 319º fixa nos seus nºs 1 e 2, a competência disciplinar nas situações da pluralidade dos arguidos pertencentes ao mesmo serviço e nas da pluralidade dos arguidos pertencentes a diversos serviços, respectivamente.
Em síntese, em qualquer dessas 3 situações, verificamos que o nosso legislador teve o cuidado de assegurar a reserva do poder disciplinar ao superior hierárquico dos funcionários visados.
Assim, se a eventual alteração superveniente das circunstâncias determinantes da competência disciplinar puser em causa a tutela do bem jurídico da superioridade hierárquica do titular da competência disciplinar para com todos os arguidos visados, já estamos a enfrentar o dilema da invalidação de todo o processado, ou a necessidade de suprir ou fazer sanar a invalidade mediante a ratificação de todo o processado pela entidade legalmente competente.
Todavia, já não assim se a eventual alteração superveniente conduz a uma situação de excesso da superioridade hierárquica e por isso a tal superioridade fica tutelada em maior grau do que é legalmente exigido, o bem jurídico em nada é afectado, até fica melhor tutelado.
Em tal hipótese, é de fazer prevalecer o princípio do aproveitamento dos actos processuais, corolário dos princípios da economia e da celeridade processual, e não temos argumento para justificar a invalidação do despacho que determinou a instauração do processo e de todos os actos cuja validade dele depender, nem a necessidade da ratificação pela titular competente desses actos entretanto praticados.
É justamente o que sucede no caso sub judice.
Com efeito, a instauração do processo disciplinar contra o ora recorrente foi determinada pelo Senhor Chefe do Executivo, que está no topo de toda a máquina administrativa da RAEM e que em face do disposto no artº 318º/1 do ETAPM, detém os poderes disciplinares que têm todos os seus subordinados e é sempre competente para tal.
Assim sendo, as circunstâncias posteriormente apuradas da não perseguição do arguido G por ser vinculado à Administração Pública mediante contrato individual de trabalho e da pertença à DSF de ambos os dois restantes arguidos F e B não têm a virtualidade de invalidar, com fundamento na incompetência, o despacho que ordenou a instauração do presente processo disciplinar e de todos os actos que dele dependerem.
Improcede portanto o invocado vício da incompetência do Senhor Chefe do Executivo.
6. Dos vícios por violação da lei;
O recorrente entende que se verificou, desde cedo e ao longo do processo, a violação de vários princípios fundamentais, quer do direito administrativo, em geral, quer do direito disciplinar, em especial, nomeadamente do inquisitório e do direito a um julgamento justo.
Então, passemos a debruçar-nos sobre eles um por um.
a) Da não audição do Deputado J.
Vem agora o recorrente questionar a bondade da decisão do Ilustre Instrutor que considerou justificada a não comparência da testemunha J na diligência para a produção da prova testemunha, apenas com um telefonema, não documentado nos autos.
Ora, a questão da não audição de J já foi tratada supra por nós. Enquanto deputado da Assembleia Legislativa, não pode depor como testemunhas senão para tal autorizado pela Mesa da Assembleia Legislativa – artº 30º da Lei n.º 3/2000. Não tendo sido dada tal autorização, a questão de falta de justificação ou irrazoabilidade da dispensa para depor não passa de ser uma falsa questão;
b) O recorrente acusa o Ilustre Instrutor de não ter incluído no elenco dos factos provados a matéria por ele alegada de que o Comissariado da Auditoria tinha conhecimento há longa data de que outras comissões fiscais também elaboravam várias actas por dia, que os seus membros recebiam por acta (ou sessão), que dessas actas não constavam as horas de início e termo das reuniões e que nunca se pronunciou sobre qualquer irregularidade, não tendo emitido qualquer recomendação ou instrução a esse respeito no passado e questiona a credibilidade do depoimento prestado pela testemunha K sobre esta matéria, e a livre convicção do Ilustre Instrutor a este respeito, nomeadamente as razões que justificaram a não recomendação ou instrução para fazer face às situações irregulares detectadas.
Para nós é inócua a não inclusão desta matéria no elenco dos factos provados, uma vez que qualquer pessoa deve ter a consciência de ter de pautar a sua conduta de acordo com os critérios estabelecidos nos normativos jurídicos e morais que não pode deixar de saber, nunca podendo justificar a sua actuação desviante dos tais critérios com a falta da recomendação ou instrução por parte de outrem. Assim sendo, é-nos irrelevante a tal matéria por não ter a virtualidade de influir no juízo quanto à existência e ao grau da ilicitude dos factos e à existência e ao grau da culpa do recorrente.
c) O recorrente acusa o Ilustre Instrutor de actuar com parcialidade e má fé na apreciação das provas por não ter dado como provado que as actas de reuniões da CAVM foram elaboradas de acordo com critérios pré-definidos por uma decisão colegial, desde há 30 anos e reconfirmados na reunião da CAVM realizada em 10SET2009, e que na Nota Justificativa no orçamento dos Serviços de Finanças vem claramente discriminado que o montante proposto se refere às remunerações a abonar às comissões fiscais e louvados, com indicação da remuneração individual do número de membros a remunerar e do número de sessões previstas.
Comecemos pela alegada existência dos critérios pré-definidos por uma decisão colegial, desde há 30 anos e reconfirmados na reunião da CAVM realizada em 10SET2009, segundo os quais foram elaborada a pluralidade das actas numa única reunião.
Trata-se de matéria de defesa alegada na contestação, nomeadamente nos seus artigos 166º e 167º, que apesar não ter sido expressamente dito, a tal matéria foi manifestamente alegada para tentar atenuar, senão excluir a responsabilidade do arguido.
Ora, conforme se vê na acusação, o arguido foi acusado, inter alia, de ordenar ou, pelo menos, permitir o desdobramento por várias actas de cada reunião, com a consequente multiplicação de abonos de retribuição a si próprio, bem como aos demais membros da Comissão, no período de 1 de Janeiro de 2006 a 16 de Maio de 2007 e nesse mesmo período de tempo exerceu as funções de presidente nas reuniões da CAVM em que, pelo menos nos dias especificados no artº 23º da acusação, participaram, simultaneamente, os membros efectivos e os membros suplentes da Comissão, em violação do disposto no nº 2 do artigo 15º da Lei nº 5/2002, o qual dispõe expressamente que os membros suplentes substituem os efectivos nas suas ausências, daí tendo resultado o pagamento de avultadas quantias relativas a retribuições não devidas aos membros suplentes, com o consequente prejuízo para o erário público.
Se é certo que, tal como sucede no processo penal, ao arguido não cabe o ónus de provar a sua inocência, não é menos verdade que o arguido tem todo o direito de se defender contra os factos que lhe tenham sido imputados, negando directamente a realidade desses factos, ou alegando factos ou circunstâncias capazes de excluir ou atenuar a culpa e a ilicitude dos factos cuja veracidade não impugnou.
Assim, ao exercer este direito de defesa, como sucede in casu, é ao arguido que cabe o ónus de alegar a matéria de defesa e prová-la, e ao instrutor do processo compete a produção, o exame e a valoração dos meios de prova para o efeito requeridos e/ou apresentados pelo arguido, a fim de decidir sobre a comprovação da matéria de defesa, sem prejuízo, naturalmente, do poder inquisitório para o apuramento da verdade material com vista à boa decisão da instrução.
In casu, após a realização das diligências probatórias, nomeadamente a produção das provas testemunhais requeridas, e o exame e a valoração dessas provas e de outras provas documentais apresentadas pelo arguido e requisitadas junto de várias entidades, o Ilustre Instrutor não deu como provada esta matéria.
Vem agora o recorrente acusa o Ilustre Instrutor de ser “parcial na selecção da prova que fez para dar como não provada a existência de uma deliberação colegial quanto à adopção do funcionamento da CAVM, nomeadamente quanto à elaboração de actas por critérios, independentemente de daí resultarem várias actas por dia”.
Para sustentar a sua tese, o recorrente apoiou-se na convicção por ele formada com as provas testemunhais entretanto produzidas e com os documentos juntos aos autos, nomeadamente a nota justificativa do Orçamento Geral da RAEM de 2009 e a acta nº 180/CAVM/2009, respectivamente a fls. 1900 e 2570 dos autos do procedimento disciplinar, não tendo todavia indicado o erro que, na sua óptica, o Ilustre Instrutor cometeu na apreciação das provas.
Para nós, a tal denúncia de falta da imparcialidade é injusta e infundada.
Na verdade, o Ilustre Instrutor não seleccionou as provas para decidir de facto sobre o thema probandum, o que fez não é mais do que o uso do poder/dever que lhe foi legalmente atribuído e imposto de valorar as provas admitidas aos autos com vista à formação da sua livre convicção quanto à comprovação ou não da tal matéria.
Em relação às provas testemunhais, entendemos que o recorrente não fez mais do que questionar, com a convicção que ele próprio formou, a livre convicção do Ilustre Instrutor.
Os dois documentos invocados pelo recorrente para tentar eximir-se à sua responsabilidade disciplinar não têm a virtualidade de abalar a convicção formada pelo Ilustre Instrutor.
Na verdade, o que vimos no documento constante das fls. 1897 e s.s dos autos do procedimento disciplinar é a informação sobre a qual o capítulo e rubrica do Orçamento Geral da RAEM dos anos 2006 a 2009, relativas às remunerações a abonar aos membros das comissões fiscais e louvados.
Tratando-se de justificações do Orçamento Geral da RAEM para a realização das despesas resultantes do funcionamento das comissões fiscais, que para nós, nunca podem ser interpretadas como directivas dirigidas ao recorrente, enquanto Presidente da CAVM, por forma a obrigá-lo a ordenar ou, pelo menos, permitir o desdobramento por várias actas de cada reunião, com a consequente multiplicação de abonos de retribuição a si próprio, bem como aos demais membros da Comissão, e a participação simultânea dos membros efectivos e os membros suplentes da Comissão.
Na verdade, não cremos que ao aprovar o Orçamento Geral da RAEM a Assembleia Legislativa debruçou-se sobre os critérios das actas elaboradas nas reuniões da CAVM e os pagamentos a cada um dos seus membros.
No que diz respeito à acta nº 180/CAVM/2009, a fls. 2570 e s.s. dos autos do procedimento disciplinar, não lhe atribuímos qualquer valor probatório, uma vez que a alegada “ratificação” foi produzida numa reunião presidida pela co-arguida F, a que a acta nº 180/CAVM/2009 se reporta, numa altura em que o procedimento disciplinar já tinha sido instaurado contra o ora recorrente e a arguida F.
Portanto, em caso algum, o tal documento dá para comprovar o facto de existirem os critérios pré-definidos por uma decisão colegial, desde há 30 anos.
Improcede assim a impugnação da matéria de facto.
d) Finalmente o recorrente diz que a matéria de facto assente contém matéria conclusiva, uma vez que no ponto 11 da página 68 do Relatório Final onde se considera provado que houve “avultadas duplicações de pagamentos de retribuições não devidas ao arguido e aos demais elementos da CAVM”.
Admitimos que a expressão não devidas é algo conclusiva.
Todavia, não podemos olhar só a expressão em si, mas sim olhá-la no contexto em que está inserida.
O ponto 11 tem a seguinte redacção: No período de 1 de Janeiro de 2006 a 16 de Maio de 2007, nos dias que constam do artigo 22º da acusação (o qual aqui se dá por reproduzido) foram elaboradas várias actas por cada dia de reunião, nalguns casos relativamente a pedidos de uma mesma entidade e noutros, referentes ao mesmo modelo de veículos; resultando desse facto avultadas duplicações de pagamentos de retribuições não devidas ao arguido e aos demais elementos da CAVM.
O artigo 22º da acusação, por sua vez, elencou 393 actas em 92 reuniões.
Ora na companhia desses elementos numéricos, ou seja, em média, mais do que 3 actas por dia em que se realizou uma reunião, a expressão não devidas para adjectivar as duplicações das retribuições apresenta-se como um facto conclusivo, que é aceitável meter-se na matéria de facto. Pois é sempre apoiada nos factos materiais que permitem um homem médio dizer se as tais duplicações são efectiva e objectivamente não devidas.
Assim, improcede in totum a impugnação da matéria de facto.
7. Do erro nos pressupostos de direito no que respeita à duplicação das actas e à correspondente pagamento de remuneração por acta aos membros da CAVM
O recorrente começou por impugnar a imputação a ele do facto da duplicação das actas e o do correspondente pagamento de renumeração por acta aos membros da CAVM, tendo para o efeito alegado que a duplicação das actas não era da sua autoria singular, mas sim resultou de uma actuação conjunta de todos os membros da CAVM que é um órgão colegial e independente da DSF.
Nota-se que não ficou provada uma deliberação por todos os membros no sentido de que se procedesse à duplicação das actas em cada uma das reuniões da CAVM e ao pagamento de remuneração por acta aos membros da CAVM.
O que acontece é que foi elaborada uma pluralidade das actas em cada uma das reuniões.
O recorrente, enquanto Presidente da CAVM, a ele cabe presidir as reuniões, dirigindo e decidindo sobre fixação da agenda, a forma como se elaboraram as actas com vista à documentação das discussões e das deliberações tidas nas reuniões.
Assim, a duplicação das actas, nos termos descritos na matéria de facto assente, não pode deixar de ser imputável ao recorrente.
Curiosamente falando, por um lado, o recorrente tentou eximir-se da sua responsabilidade pessoal quanto à duplicação das actas, dizendo que o facto aqui em causa, ou seja, a elaboração de várias actas por dia de reunião e correspondente remuneração dos seus membros, diz respeito ao funcionamento de um órgão colegial e independentemente, como é o caso da CAVM (cf. o artº 276º da petição de recurso), mas por outro lado admitiu, embora implicitamente, que a indicação das horas de início e de termo das reuniões, reputada pelo recorrente como mera formalidade não essencial das actas da CAVM devia ser do seu domínio singular, pois alegou, na contestação, para tentar justificar a tal omissão que “face às elevadas responsabilidades do arguido na estrutura orgânica da DSF e face ao volume de trabalho diário do mesmo, não lhe era exigível que tivesse em atenção as formalidades não essenciais das actas da da CAVM, sobretudo quando estas correspondem a uma minuta já existente e aceite por todos os membros do referido órgão colegial” (cf. o artº 155º da contestação)!
A eventual co-responsabilidade dos outros membros, havendo-a, só será objecto da apreciação em outra sede, mas nunca no presente recurso.
Nesse mesmo sentido, podemos citar aqui, de novo, os doutos ensinamentos, já citados no relatório final, pelo Ilustre Instrutor, que ao presidente de um órgão colegial (membro qualificado do mesmo) cabe um papel abrangente que se não esgota nos aspectos burocráticos do funcionamento do colégio, da lei ele também recebe um ónus, o de zelar pelo cumprimento da legalidade. Nessa medida, deve chamar a atenção dos membros do órgão para o atropelo da lei que esta ou aquela posição de alguns deles pode representar – Lino Ribeiro e Cândido de Pinho, Código do Procedimento Administrativo de Macau, anotado e comentado, pág. 159.
A seguir, o recorrente tentou excluir a sua culpa, dolosa ou negligente, e convencer o Tribunal de que lhe faltou a consciência da ilicitude dos factos, uma vez que ele nunca configurou a elaboração de mais de uma acta por dia de reunião e correspondente remuneração dos seus membros como violação de algum dever a que estivesse adstrito, pelas circunstâncias de:
a) "O princípio do desdobramento de actas por cada dia de reunião já se encontrava instituído em outras comissões fiscais existentes na DSF, nalgumas delas desde meados dos anos 80 do século passado e nalguns casos, consta dos seus manuais de funcionamento." - ponto 25., pág. 73 do Relatório Final;
b) "As outras Comissões Fiscais existentes no âmbito da DSF também elaboram mais do que uma acta por dia de reunião, sendo que, com referência aos anos de 2006 a 2008, a média de sessões (e actas) por dia de reunião de cada uma dessas comissões varia entre um mínimo de 1,62 e um máximo de 18,50; procedimento este que se encontra instituído de há muito tempo nessas Comissões" - ponto 33., pág. 75 do Relatório Final;
c) "O Comissariado da Auditoria realizou, em 2000 e 2003, averiguações e auditorias de resultados a três comissões fiscais existentes na DSF" - ponto 8., pág. 71 do Relatório Final;
d) "No ano de 2000, o Comissariado de Auditoria requereu à DSF informação relativa à contribuição predial urbana, nomeadamente ao funcionamento das avaliações aos imóveis e respectiva remuneração dos membros e louvados das comissões de avaliação de prédios, tendo recebido resposta da DSF, com a qual foi enviado ao CA o manual sobre a avaliação de imóveis." - ponto 35., pág. 75 do Relatório Final;
e) "Os membros, secretários e louvados daquela Comissão eram remunerados por "sessão", revertida na correspondente acta, sendo que as sessões não equivaliam a um dia de reunião, antes eram elaboradas segundo critérios de divisão por assuntos, previamente estabelecidos." - ponto 36., pág. 75 do Relatório Final;
f) "O CA, no ano de 2000, a fim de proceder a auditoria financeira, desenvolveu um trabalho de recolha de dados relativos aos diplomas legais aplicáveis à remuneração atribuída por cada avaliação, aos louvados da Comissão Permanente de Avaliação de Prédios, bem como aos da 2.ª Avaliação de Prédios juntamente à Direcção dos Serviços de Finanças. A recolha de dados é uma diligência normal desenvolvida para efeitos de auditoria junto dos "sujeitos de auditoria" (…) nem era necessário emitir recomendações para a referida situação." - Ofício do CA n.º 0706/585/GCA/200, a fls. 1438, citado no 1.º parágrafo da pág. 118 do Relatório Final;
g) "Em Junho de 2003, o CA procedeu a uma auditoria de resultados sobre o funcionamento das Comissões de Fixação de Imposto Complementar e Imposto Profissional." - ponto 37., pág. 75 do Relatório Final;
h) O CA tinha conhecimento da falta de indicação das horas de início e termo das reuniões nas actas de outras comissões fiscais, bem como da existência de várias actas por dia de reunião, sem que tenha feito qualquer recomendação ou reparo - como consta do 2.º parágrafo da pág. 163 do Relatório Final, quando o Exmo. Instrutor reconhece que tal afirmação é verdadeira;
i) "O pagamento das remunerações dos membros das comissões fiscais, incluindo da CAVM, está previsto no Orçamento Geral da RAEM (Capítulo 12. Despesas Comuns, sob a rubrica "Trabalhos Especiais Diversos), cuja proposta é previamente homologada pelo Exmo. Senhor Secretário para a Economia e Finanças e, de seguida, pelo Exmo. Senhor Chefe do Executivo, antes de ser submetido a aprovação da Assembleia Legislativa" - ponto 43., pág. 76 do Relatório;
j) A Nota Justificativa do Orçamento, que todos os anos é apresentada ao SEF para aprovação, discrimina a remuneração individual, do número de membros a remunerar e do número de sessões previstas quanto a algumas comissões fiscais – cfr. documento junto aos autos pela DSF a fls. 1900 e ss.
É de lembrar que, relativamente à duplicação das actas e à consequente multiplicação das remunerações pagas ao arguido e aos demais membros da CAVM, o arguido, ora recorrente, foi imputado e punido pela prática, a título de dolo, desses factos integrantes da violação do dever de isenção e do dever de zelo.
Tentou agora o recorrente afastar a sua culpa, quer a título de dolo, quer a título de negligência, com fundamento na falta de consciência de ilicitude do facto não censurável.
A ilicitude consiste na natureza antijurídica de um facto ofensivo de um ou vários bens jurídicos dignos da protecção jurídica.
No fundo, o recorrente veio defender que ele não tinha conhecimento do carácter anti-jurídico da sua actuação ao longo do período de tempo a que se reportam os autos, uma vez que, atendendo às tais circunstâncias todas, não passou pela sua consciência ética a desconformidade da sua conduta com o exigido pela ordem jurídica.
Ora, diz o artº 16º/1 do CP, aqui subsidiariamente aplicável, que age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
Antes de mais, é de afastar a sua interpretação literal dessa norma, no sentido de que se exige ao agente do facto que tenha conhecimento sobre a violação de uma determinada norma jurídica, pois se assim fosse, só os juristas poderiam cometer ilícitos.
E de realçar que a simples ignorância da lei também não exclui a culpa.
Ao que parece, o que in casu o recorrente alega para a sua defesa não é a falta de conhecimento indispensável da lei ou da proibição legal para uma correcta orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude.
Mas sim a falta de advertência a si próprio no sentido de ilicitude.
Para nós, atendendo às circunstâncias concretas nos autos, não se põe a questão de falta de consciência de ilicitude, pois de maneira nenhuma podem existir a tal falta de advertência no sentido de ilicitude e a falta de esforço ou desejo continuado, por parte do próprio recorrente, de corresponder às exigências do direito.
Senão vejamos.
O recorrente era, no momento dos factos, Director dos Serviços das Finanças.
A Direcção dos Serviços de Finanças é um serviço que orienta, coordena e fiscaliza a actividade financeira do sector público administrativo da RAEM – artº 1º da lei orgânica da DSF, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 30/99/M.
Nas suas atribuições, encontramos a de organizar o Sistema de Contabilidade Pública e o Orçamento Geral da RAEM, promovendo e dirigindo o seu funcionamento e execução e assegurando a normalidade na administração financeira da RAEM – artº 2º/-a) da lei orgânica.
Enquanto nomeado para desempenhar as funções do dirigente máximo da DSF, o recorrente tinha um dever reforçado de conhecer as normas jurídicas que regulam as actividades da DSF e procurar manter-se sempre técnico-juridicamente informado e preparado para lidar com dinheiros públicos.
Admitimos que a falta de consciência de ilicitude poderá existir frequentemente naqueles casos em que a questão da ilicitude surja particularmente discutida ou controvertida, nomeadamente nos casos de inseminação artificial, esterilização, interrupção voluntária da gravidez, auxílio ao suicídio, e eutanásia, todavia, no caso sub judice, a tal discutibilidade ou controvertibilidade obviamente não está presente.
Na verdade, enquanto funcionário público de alta categoria, com vasta e longa experiência no exercício de cargos dirigentes na DSF, tal como assim qualificado no artº 2º da acusação, o facto, a ele imputado, de ter permitido a multiplicação das actas de uma reunião por forma a fazer corresponder a cada uma acta uma sessão, cujo número seria tido em conta para o efeito do cálculo das remunerações a pagar aos seus membros e a fim de possibilitar uma pluralidade de remunerações pagas a si próprio e aos outros membros da CAVM não se pode explicar pela sua atitude pessoal juridicamente desvaliosa que o impediu a consciência ética de decidir correctamente a questão do desvalor do facto, mas sim pela atitude, ao decidir agir como agiu, do simples desinteresse em saber o resultado da sua conduta, não obstante a representação consciente da violação da lei como consequência possível da sua actuação.
Além disso, o facto comprovado de que em todas as actas duplicadas das reuniões semanais, não foi feita a indicação das horas de início e de termo.
Ante este facto, cremos que qualquer homem médio, se tiver presente ainda que o número das actas varia de 2 a 8 por cada dia de reuniões, num curto de período de tempo da parte da manhã, normalmente com o início pelas 11h30 e dura entre uma hora e meia e duas horas, consegue notar facilmente que algo, manifestamente exagerado e irregular, senão ilegal, aconteceu.
Se um homem médio pode notar a irregularidade senão a ilegalidade dessa prática, não percebemos como é que o arguido, a quem, por razões que vimos, é exigido maior prudência e cuidado reforçado quando lidava com dinheiros públicos, pode não ter consciência dessa irregularidade ou ilegalidade.
É portanto de afastar a tentativa de procurar convencer este Tribunal de que actuou sem a consciência da ilicitude da sua conduta.
Tal como concluiu e bem o Ilustre Instrutor, para nós o arguido agiu, pelo menos, a título de dolo eventual.
Na verdade, atendendo às circunstâncias do caso, o recorrente deve ter conhecimento necessário a uma correcta e indispensável orientação da consciência ético-socialmente sedimentada para o problema de ilicitude, e portanto não pode deixar de ter representado como consequência possível a violação dos seus deveres de isenção, de zelo e de lealdade, quando agir como agiu, e mesmo assim agiu conformando-se com aquela eventual violação da lei e mostrando-se indiferente ao dever-ser jurídico exigido a todos os funcionários públicos.
Além disso, o recorrente invocou ainda, como causa da exclusão da culpa, que em relação a esses factos de que foi acusado, nenhuma censura e rejeição foi tecida pelo Comissariado da Auditoria, pela Assembleia Legislativa e até pelo próprio Secretário para a Economia e Finanças, que na sua óptica, são todos cientes da forma de funcionamento de reuniões da CAVM e da multiplicação das actas e dos consequentes pagamentos de remunerações.
Para nós, a alegada inércia, a não reacção, ou a omissão por parte de tais entidades, quanto muito, facilita a actuação do recorrente ou a continuação da actuação do recorrente, mas nunca tem a virtualidade de funcionar como causas de exclusão ou diminuição substancial da culpa do recorrente por ter agido como agiu, dado que perante a tal inacção ou inércia, nunca ficou diminuída a liberdade do recorrente de não agir como agiu ou agir de outra maneira.
E que, para nós, estas circunstâncias todas só demonstram um fenómeno muito triste e infelizmente ocorrido numa comunidade como a nossa, que se deve reger sempre pelo princípio do Estado de Direito, fenómeno esse que se não explica senão pela inércia e pela inacção por parte de quem tem o poder e dever para o travar.
Mas uma coisa é certa, nem por isso o ora recorrente pode dizer que lhe falta a consciência de ilicitude.
Quanto ao argumento de que tendo delegado na Subdirectora da DSF a competência para a autorização, processamento e pagamento das remunerações aos membros da CAVM, o recorrente não pode ser responsabilizado por culpa in vigilando relativamente à actividade do delegado, tal culpa não opera por si só, quando o delegante não tem, efectivamente, consciência da ilicitude da actividade do delegado, entendemos que não tem razão o recorrente.
Por um lado, conforme se vê supra, concluímos que o recorrente agiu com culpa dolosa, pelo menos a título de dolo eventual, o que faz cair por terra a tese do recorrente.
Tendo sido ciente do que se passou, o recorrente, enquanto delegante, mantém uma responsabilidade in elegendo e in vigilando – cf. Lino Ribeiro e Cândido Pinho, ob. cit. Pág. 214.
Por outro lado, foi o próprio recorrente quem assinou as requisições dos títulos de pagamento das quais constavam individualmente os nomes dos membros da CAVM e quem beneficiou directamente do pagamento das remunerações duplicadas, enquanto Presidente da CAVM!
Improcede esta parte do recurso.
8. Do erro nos pressupostos de direito referente à participação simultânea dos membros efectivos e suplentes
Defende o recorrente que, no que diz respeito à participação simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais, está em causa um facto colegial, e não individual de um agente, que resulta de uma deliberação colegial da CAVM em nome do princípio da eficiência, já que as reuniões semestrais envolviam uma elevada carga de trabalho, não havendo qualquer responsabilidade individual ou vontade a imputar ao recorrente.
Para sustenta a sua tese, o recorrente repetiu grosso modo aquilo que ficou dito em relação à duplicação das actas e a consequente duplicação das remunerações pagas aos membros da CAVM.
Igualmente também damos por reproduzido aquilo que ficou dito por nós, em relação à duplicação das actas e a consequente duplicação das remunerações pagas aos membros da CAVM, para, mutatis mudantis imputar a título de dolo eventual a permissão da presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais e a consequente remuneração dos suplentes, uma vez que, face ao disposto no artº 15º/1 e 2 da Lei nº 5/2002, improcedente esta parte do recurso, os membros suplentes foram nomeados para intervir em substituição dos efectivos quando estes ausentes ou impedidos, o que enquanto Director da DSF, o arguido, ora recorrido, não pode deixar de representar a violação desses normativos como consequência possível da presença simultânea de ambos os tipos de membros.
9. Do erro na qualificação jurídica dos factos
O recorrente defende que ele não agiu com dolo.
No seu ponto de vista, ao punir como puniu a título de dolo com a aplicação de uma pena de suspensão, a entidade recorrida errou na qualificação dos factos.
Ora, conforme se vê supra nos pontos 7 e 8, já concluímos que que o recorrente permitiu com dolo a duplicação das actas e o consequente pagamento das remunerações correspondentemente duplicados e permitiu com dolo a presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais.
Assim, limitamos a reproduzir aqui as razões já por nós expostas supra, julgando inexistente o invocado erro na qualificação jurídica.
Todavia, cabe fazer nota aqui.
Ora na fundamentação no Relatório Final, o Ilustre Instrutor entendeu que, no que respeita à permissão da presença simultânea dos membros efectivos e suplentes e a consequente remuneração dos suplentes, o arguido, ora recorrente, violou dolosamente os deveres de isenção, de zelo e de lealdade – cf. pág. 124 do Relatório Final.
Todavia, na parte das conclusões, diz o Ilustre Instrutor que “……e pelo menos com negligência ao permitir, que nas reuniões suplentes da CAVM, em simultâneo, com os membros efectivos,……” - cf. pág. 178 do Relatório Final.
Afinal é doloso ou negligente?
Trata-se de uma discrepância! Ou a falta de rigor, pois diz o Ilustre Instrutor pelo menos com negligência, expressão essa que pode ser interpretada habilmente no sentido de que não é afastado o dolo.
Quid iuris?
Admitindo embora a verificada discrepância ser um falha, senão um erro, não consideramos que, conforme se verá infra, a tal discrepância tem a virtualidade de conduzir à anulação do acto punitivo.
Importa saber qual é a relevância da distinção entre o dolo e a negligência na matéria disciplinar.
A propósito da culpabilidade nas infracções disciplinares, ensina o Conselheiro H que o regime disciplinar é menos exigente em matéria de culpa que o penal, pois que se contenta com a mera negligência para haver infracção,……, enquanto que na área criminal o dolo é a regra e a negligência a excepção – ob. cit. pág. 60.
Reza o artº 12º do CP que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
No Direito Penal, a forma de imputação do facto ao seu agente, a título de dolo, ou a título de negligência, tem extrema relevância para a sua qualificação jurídica.
É sempre crime se for doloso o facto que preenche o tipo legal objectivo.
Já não é assim quando for negligente, pois consoante a existência ou não de uma norma especial afirmativa da sua punibilidade, o facto negligente pode ser criminalmente censurável ou pode não ter qualquer dignidade penal.
Neste primeiro caso, estamos perante os chamados crimes negligentes.
Assim, ao contrário do que sucede com o Direito Penal, a distinção entre a imputação do facto a título de dolo ou a imputação a título de negligência, na matéria disciplinar, já não releva para a qualificação jurídica e a consequente punibilidade do facto.
O que se compreende, pois que em grande parte das situações com dignidade disciplinar o comportamento passível de perseguição resulta de mero descuido ou falta de cuidado do agente – H, op. cit. pág. 60.
Na esteira desses ensinamentos e desse nosso entendimento, podemos concluir que se a distinção entre o dolo e a negligência tem a relevância para qualificar os tipos de crimes, isto é, tipo fundamental (crime doloso) e tipo privilegiado (crime negligente), e até não reconhecer a um facto a dignidade penal, não obstante preenchimento do tipo objectivo, já no Direito Disciplinar a mesma distinção limita-se a influir na determinação concreta de pena.
Ou seja, a distinção entre o dolo e a negligência influi qualitativamente no Direito Penal, e apenas quantitativamente no Direito Disciplinar.
Regressando ao caso sub iudice, o Ilustre Instrutor qualificou como dolosa a conduta do arguido de ter permitido a presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais e a consequente remuneração dos suplentes, mas propôs a punição, pelo menos, a título de negligência.
Não é muito feliz esta expressão “pelo menos com negligência ao permitir ……”.
Todavia, em vez de prejudicar, esta falta de rigor, cometida pelo Ilustre Instrutor, traz ao arguido uma vantagem manifesta, pois acaba por favorecer o arguido com a “atenuação” de pena, embora não justificada.
Pois em vez de vir a ser punido pela prática das duas infracções, ambas dolosas, só veio a ser punido pela prática de uma infracção dolosa em concurso com uma outra negligente.
Sempre o tratamento mais favorável e portanto, do que não se pode queixar o recorrente!
Por outro lado, ao contrário do que sucede com a punição do concurso de infracções penais, o ETAPM estabelece regras próprias para a punição da pluralidade de infracções disciplinares.
No Direito Penal, os crimes concorrentes não perdem a sua autonomia na fixação da pena do concurso, pois são as penas parcelares correspondentes a cada um dos crimes que contribuem para a determinação concreta da pena única mediante o chamado cúmulo jurídico – artº 71º/2 do CP.
Já não é assim no Direito Disciplinar.
Face ao disposto no ETAPM, o legislador optou por fazer uma ficção jurídica para o efeito de punição da ai designada “acumulação de infracções” (artº 283º/1-h): em vez de considerar as infracções concorrentes como uma pluralidade das infracções, a lei manda tratar o conjunto dessas infracções praticadas como se constituísse uma única infracção.
In casu, ficou provada a prática pelo arguido das duas infracções disciplinares.
À luz do sistema da punição do concurso das infracções estatuído no ETAPM, que é o da absorção pura quanto ao número de vezes de formulação de censura e da exasperação quanto ao quantum da pena, a falta de rigor, ora cometida pelo Ilustre Instrutor, que consiste em imputar ao arguido a título de negligência o facto de ter permitido a presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais, tem apenas um valor muito diminuto para a determinação da pena unitária.
Ante o dilema entre reparar o vício mediante a anulação do acto recorrido e salvaguardá-lo, optamos por não anular o acto.
Opção essa que se justifica quer pela falta de interesse de agir por parte do recorrente, uma vez que a falta de rigor cometida pelo Ilustre Instrutor joga sempre a favor do recorrente e nunca prejudica e que lhe já foi assegurada a oportunidade para se pronunciar sobre a sua culpa, que abrange não só eventualidade da imputação a título de dolo, como também a da imputação a título de negligência, quer pelo grau diminuto da importância dessa falta de rigor para o fundamento da pena, que in casu deve ceder perante o valor tutelado pelo princípio do aproveitamento dos actos processuais.
Pelo que, não é de anular o acto recorrido, dada a importância diminuta da falha e a falta de interesse de agir por parte do recorrente.
E permanecendo uma infracção dolosa, cai por terra toda a tese do recorrente de que as infracções meramente negligentes não podiam ser punidas com a pena de suspensão.
10. Da inverificação da circunstância agravante prevista no artº 283º/1-b) do ETAPM
O recorrente diz que o acto recorrido é anulável por padecer, na determinação da pena, da dupla valoração de uma mesma circunstância agravante.
Na parte da conclusão do Relatório Final, para cujos fundamentos remeteu o acto recorrido do Senhor Chefe do Executivo, consta que “os aludidos factos constituem infracção disciplinar já que houve por parte do arguido violação dos deveres de isenção previsto na alínea a) do nº 2 e no nº 3; do dever de zelo estabelecido na alínea b) do nº 2 e nº 4 e do dever de lealdade consagrado na alínea d) do nº 2, nº 6, todos do artº 279º do ETAPM, tendo cometido a infracção disciplinar prevista na alínea n) do nº 2, do artº 315º, do ETAPM – porquanto com os factos por ele praticados lesou os interesses patrimoniais públicos que lhe cumpria administrar, fiscalizar, defender e realizar – , à qual aquele mesmo artigo faz corresponder, em abstracto, a pena única de demissão ou de aposentação compulsiva.”
……
Mas consta que “…… militam contra o arguido as circunstâncias agravantes da alínea b) do nº 1 do artº 283º do ETAPM, porquanto houve produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público e o arguido podia e devia prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta……”
Na óptica do recorrente, a circunstância que foi duplamente valorada pela entidade recorrida é a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público porquanto o recorrente foi condenado no sentido em que a infracção se consubstancia na “intenção de obterem para si ou terceiros benefícios ilícitos (……) lesarem os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar”.
O recorrente labora num equívoco.
O artº 283º /1-b) do ETAPM dispõe, como circunstância agravante a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta (subl. nosso).
Ao passo que o artº 315º/2-n) do ETAPM elenca, com um dos factos puníveis com a pena de demissão ou de aposentação compulsiva a prática por um funcionário de um facto culposo com intenção de obterem para si ou para terceiro qualquer benefício ilícito, faltarem aos deveres do seu cargo, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados ou lesarem, em negócio jurídico ou por mero acto material, os interesses patrimoniais que no todo ou em parte lhes cumpre administrar, fiscalizar, defender ou realizar.
Ora, uma coisa é a intenção de conseguir um resultado, e outra coisa é produção efectiva de um resultado.
Portanto, ao aplicar como aplicou cumulativamente ambos os normativos, não estava a entidade recorrida valorar duplamente um mesmo facto ou uma mesma circunstância.
Pois no disposto no artº 315º/2-n) do ETAPM, a lesão do bem jurídico consiste na prática de um facto com vista a um resultado, cuja verificação não é exigida para o preenchimento do tipo. É o que sucede com os chamados delitos formais ou da mera actividade.
Por sua vez o artº 283º /1-b) do ETAPM exige, para funcionar como uma circunstância agravante, a produção de um resultado, cuja verificação não se integra nos elementos constitutivos do tipo da infracção que é de mera actividade, diversa do que sucede com o chamado delito ou crime de resultado, em que a produção efectiva do resultado é contida no tipo legal do crime com um dos seus elementos constitutivos.
Sem mais delongas, é de julgar manifestamente improcedente a imputação do vício da violação da lei nos termos invocados.
11. Do erro grosseiro na graduação da pena
O arguido foi punido com a pena única de 120 dias de suspensão.
Para o recorrente, a sua actuação, quanto muito, de mera negligência, não merece o tal quantum da pena.
Todavia, conforme se vê repetidamente supra, ao arguido é imputado a título de dolo pelo menos quanto a uma das infracções provadas.
Assim, cessa a tese de excesso da pena por se tratar de uma infracção meramente negligente.
Diz ainda o recorrente que a pena aplicada no caso em concreto é manifestamente desproporcional, injusta e desmerecida, a qual apenas se compreende por erro grosseiro na avaliação dos factos aqui em causa ou por clara violação do princípio da imparcialidade, ao ceder a pressões externas ao processo, que exigiam a condenação do Recorrente numa sanção grave, em função daquela que foi a condenação pública, através dos meios de comunicação social, de que este foi vítima antes da conclusão do processo – cf. artº 360º da petição do recurso.
Tratam-se de afirmações vagas e conclusivas, carecendo de um mínimo do apoio fáctico e sem a devida concretização em que consistem a manifesta desproporcionalidade e injusteza da pena, e o alegado erro grosseiro, as alegadas pressões externas ao processo.
Antes pelo contrário, atendendo aos factos assentes e às circunstâncias apuradas, nomeadamente os deveres inerentes as funções para as quais foi nomeado, a duração do intervalo de tempo em que se reiterava a prática dos factos, os prejuízos que os factos causaram ao erário público, e todas as circunstâncias atenuantes a favor do arguido especificadas no Relatório Final, consideramos equilibrada e não merecedora da censura a medida concreta da pena fixada em 120 dias, numa moldura abstracta de 10 dias a 240 dias de suspensão, já substancialmente reduzida por efeito atenuativo operado pela verificação da atenuante modificativa a que se refere o artº 314º/3 do ETAMP, à luz do qual ponderado o especial valor das circunstâncias atenuantes ou agravantes que se provem no processo, poderá ser especialmente atenuada ou agravada a pena, aplicando-se pena de escalão mais baixo ou de escalão superior do que ao caso caberia.
Não há portanto erro, muito menos erro grosseiro na determinação concreta da pena.
12. Da ordem para a efectivação da reposição das quantias auferidas pelo recorrente em contravenção do limite máximo legal a que se refere o artº 176º do ETAPM.
Para além da permissão da duplicação das actas e da consequente duplicação das remunerações pagas a si próprio e aos demais membros da CAVM e da permissão da presença simultânea dos membros efectivos e suplentes nas reuniões semestrais, o arguido foi acusado de ter permitido as remunerações pagas a si próprio, à então Subdirectora da DSF F e a G, ambos co-arguidos nos autos, em valores superiores ao limite anual máximo de remuneração fixado no artº 176º do ETAPM.
O recorrente veio a ser “absolvido” da acusação disciplinar na parte respeitante a esta infracção.
Não obstante a sua “absolvição” da acusação, a entidade recorrida dirigiu uma ordem no mesmo acto punitivo, ora recorrido, à DSF para proceder à efectivação da reposição das quantias recebidas por ele em contravenção do limite anual máximo de remunerações fixado no artº 176º do ETAPM, ainda não prescritas.
Inconformado, veio o recorrente reagir contra o decidido nesta parte com fundamento na ilegalidade dessa ordem da efectivação da reposição das quantias a liquidar.
A ordem para a efectivação da reposição das quantias a liquidar foi sugerida no Relatório Final nos termos seguintes: “Propomos ainda que a DSF proceda à efectivação da reposição das quantias recebidas por ambos os arguidos, em contravenção do limite anual máximo de remunerações previsto no artigo 176º do ETAPM, ainda não prescritas.
O recorrente impugnou a ordem por entender que, para o efeito do limite anual máximo de remuneração a que se refere o artº 176º/1 do ETAPM:
a) Não devem ser consideradas as remunerações por ele auferidas por causa das suas funções exercidas no âmbito da CAVM, por terem a natureza de senha de presença;
b) Deve ser atendido apenas o valor das remunerações líquido do imposto profissional;
c) Deve ser levado em conta o aumento do vencimento máximo da tabela indiciária para o índice 1100, operado por via da Lei nº 15/2009, que tem efeito retroactivo a 31JUL2007; e
d) Não devem ser consideradas as remunerações por ele auferidas após 16MAIO2007 junto do Centro de ...... de Macau, SA, onde passou a desempenhar, em regime de comissão eventual de serviço e ao abrigo de contrato individual de trabalho.
Em relação às remunerações por ele auferidas no âmbito das reuniões da CAVM, o arguido defende que estas não deveriam ter sido incluído no cálculo do limite anual máximo de remunerações fixado no artº 176º/1 do ETAPM, por terem a natureza equivalente à de senha de presença que por força do artº 176/2 do ETAPM, é expressamente excluída no cômputo do tal limite.
A atribuição de senhas de presença encontra-se regulada no artº 215º do ETAPM, que reza:
1. Aos trabalhadores da Administração Pública de Macau são devidas senhas de presença pela sua participação em reuniões, quando as mesmas resultam da sua integração em conselhos, comissões, equipas de projecto ou grupos de trabalho e, precedendo autorização do Chefe do Executivo, se realizem fora do horário normal de trabalho.
2. O montante da senha de presença é correspondente a 10% do índice 100 da tabela indiciária.
3. Ao pessoal com isenção de horário de trabalho, nomeadamente de direcção e chefia, não são devidas senhas de presença.
4. O abono de senhas de presença, nos termos do n.º 1, é autorizado pelo dirigente do respectivo Serviço ou Organismo.
5. Mediante despacho do Chefe do Executivo, pode ser autorizado o pagamento de senhas de presença a pessoas estranhas aos Serviços Públicos que sejam designadas para integrarem as reuniões previstas no n.º 1, ainda que as mesmas se realizem dentro das horas normais de serviço.
De acordo com o preceituado desse artigo, o recorrente não tem direito a senha de presença, pois esta é atribuída aos trabalhadores da Administração Pública de Macau que participarem em reuniões que se realizem fora do horário normal de trabalho (nº 1) e ao pessoal que não seja de direcção nem de chefia (nº 3).
In casu, o arguido era Director da DSF no momento dos factos e as reuniões tiveram lugar dentro da hora normal de trabalho – vide o ponto 6) dos factos tidos provados da matéria de acusação.
Qualquer uma dessas circunstâncias já é suficiente para afastar a invocada natureza (de senha de presença) das remunerações dos membros da CAVM, reguladas no artº 15º/3 da Lei nº 5/2002, dispondo que os membros da Comissão de Avaliação de Veículos Motorizados e o respectivo secretário auferem uma remuneração fixada anualmente por despacho do Chefe do Executivo, sob proposta do director dos Serviços de Finanças.
A seguir, afirma o recorrente que o montante a ter em conta tem que ser líquido de imposto profissional descontado.
O recorrente não explicou porque é que só deve ser tido em conta o montante líquido de imposto profissional descontado.
Não sabemos com que fundamento o recorrente afirmou assim.
Todavia, não tem razão o recorrente, pois a remuneração é o preço do trabalho prestado, ao passo que o imposto profissional é uma prestação, normalmente pecuniária, a favor da Administração sobre o rendimento proveniente do exercício de uma profissão, cada uma dessas prestações nasce e é regulada por uma relação jurídica própria que não tem nada a ver com a outra.
É verdade que a obrigação de pagar imposto profissional diminui necessariamente o rendimento líquido e consequentemente o poder de compra do contribuinte, mas nem por isso o valor das remunerações por ele auferidas fica quantitativamente reduzido.
Quanto aos fundamentos c) e d), é de frisar que agora ainda não é altura oportuna nem aqui é sede própria para a sua abordagem, uma vez que enquanto não tiverem sido liquidadas as quantias a repor pela entidade competente em execução do acto recorrido, com a indicação específica e pormenorizada das remunerações tidas em conta para o efeito, do seu quantum, do período de tempo a que se reportam e das entidades que as processaram, não estamos em condições nem vale a pena apreciar estes dois fundamentos ora invocados pelo recorrente, os quais poderão ser perfeitamente objecto da impugnação em sede de liquidação das quantias a repor, se for caso disso.
De qualquer maneira, tendo em conta o facto comprovado de que o recorrente auferiu as remunerações indevidamente multiplicadas por causa das suas funções exercidas no âmbito da CAVM, cujo valor é tão elevado que necessariamente fez o seu rendimento anual ultrapassar o limite máximo fixado no artº 176º do ETAPM, é sempre legal e legítima a ordem, dirigida à DSF para a efectivação da reposição das quantias auferidas pelo recorrente, em contravenção daquele limite máximo legal, no período de tempo a que se reportam os factos do procedimento disciplinar.
Assim sendo, improcede a impugnação a esta ordem.
Em conclusão:
20. Por força do disposto no artº 277º do ETAPM, a teoria da infracção penal, na parte referente à matéria de concurso de infracções e continuação criminosa, que constitui a mens legislatoris subjacente à feitura do artº 29º do Código Penal, aplica-se, mutatis mutandis, às infracções disciplinares na função pública da RAEM.
21. Desde que contenha na acusação factos materiais que fixa e delimita o thema probandum e desta forma ficam assegurados os direitos à contraditoriedade e à audiência do arguido, o simples facto de a acusação ter emitido juízos de valores, interpretações e conclusões jurídicas de per si não tem qualquer relevância na apreciação da sua validade processual e substancial, pois o que interesse essencialmente à validade de uma acusação é a sua capacidade, pelo seu conteúdo, permitir ao arguido alcançar os factos materiais que lhe são imputados e lograr defender-se de modo que entender adequado.
22. A validade dos actos processuais depende da sua correspondência ao modelo legal quanto a «quem» pode praticar os actos, a «quando», a «onde» e a «como» devem ser praticados os actos. Constituem nulidades processuais a prática dos actos processuais ou a omissão da prática dos actos processuais que representam o desvio ou a inobservância do tal modelo legal.
23. Pela lógica das coisas e pelo seu estatuto e pela posição processual do arguido que patrocina no âmbito de um procedimento disciplinar, o mandatário deve actuar no interesse do arguido, limitando-se a requerer ou juntar provas para comprovar factos demonstrativos da inocência ou da menor responsabilidade do arguido. Assim, no âmbito de procedimento disciplinar, a não notificação atempada ou a omissão da notificação da junção das provas requisitadas a requerimento do arguido não têm a virtualidade de ofender o conteúdo essencial da contraditoriedade, e portanto nunca podem constituir nulidade insuprível e quanto muito só podem gerar a mera nulidade secundária a que se refere o artº 298º/3 do ETAPM.
24. Na matéria das invalidades processuais dos actos praticados no procedimento disciplinar, por razões sobretudo que se prende com o grau da importância do bem jurídico que o ritualismo processual visa tutelar, ou com o grau da sua violação, por um lado, e pelos valores da economia e celeridade processual, por outro, a lei não faz equiparar, quanto às consequências, todas as inobservâncias do ritualismo processual, mas sim procura sempre harmonizar, mediante a concordância prática, o carácter imperativo e solene do modelo legal do procedimento e a celeridade processual e o aproveitamento do processado. O que justifica a distinção entre as nulidades primárias ou insupríveis e as nulidades secundárias ou relativas.
25. Segundo este critério de bipartição do tratamento das nulidades processuais, só quando estiver em causa a lesão de bens jurídicos importantes e/ou o grau da sua violação for de tal maneira elevado que fique lesado o conteúdo essencial dos bens jurídicos tutelados pelo ritualismo legalmente prescrito, a lei não tolera a sua violação e comina expressamente a sanção da nulidade insuprível, invocável a todo o tempo por qualquer interessado e susceptível de ser declarada a todo o tempo por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal – artº 298º/1 do ETAPM e artº 123º do CPA.
26. E residualmente, quaisquer violações do ritualismo processual diversas daquelas que tenham sido expressamente qualificadas como nulidades insupríveis só constituem nulidades secundárias ou relativas, dependentes da arguição atempada pelo interessado, que se tornarão automaticamente sanadas se decorrido o certo intervalo de tempo sem que tenham sido arguidas.
27. Na esteira desse entendimento, é de concluir que não basta a violação de uma norma que comina expressamente a nulidade insuprível para legitimar a invalidação, a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, do acto viciado e consequentemente de todos os actos dele dependentes e eventualmente de todo o procedimento.
28. É portanto preciso indagar, caso a caso, a gravidade do vício em causa, ou seja, averiguar se, atendendo às circunstâncias concretas do caso, houve lesão do conteúdo essencial do bem jurídico em causa e o grau da violação do mesmo bem jurídico, a fim de ajuizar se o desvio ao ritualismo processual é de tal maneira violento que não pode deixar de desencadear as sanções mais gravosas que a lei faz corresponder às nulidades insupríveis, mesmo com o enorme prejuízo aos valores da economia e da celebridade processual, também dignos da tutela jurídica.
29. Ao contrário do que sucede como os cidadãos em geral, os deputados da Assembleia Legislativa não podem depor como testemunhas senão para tal autorizados pela Mesa da Assembleia Legislativa – artº 30º da Lei n.º 3/2000, nos termos do qual os Deputados carecem de autorização da Mesa da Assembleia Legislativa para poderem intervir em juízo como testemunhas, peritos ou jurados, e para poderem ser ouvidos como declarantes ou arguidos, salvo, neste último caso, quando detidos em flagrante delito. Ao estatuir como estatuiu nesse artigo 30º, o nosso legislador fez clara e conscientemente a opção por fazer prevalecer a dignidade soberana dos membros do órgão legislativo quando confrontados com a possibilidade de serem convocados para serem inquiridos, como meio de prova, nos processos sob a direcção de um dos outros poderes, executivo e/ou judicial, mesmo em detrimento da verdade material no âmbito desses processos.
30. Resultando da opção do nosso legislador pela superioridade do bem jurídico da protecção da dignidade soberana do poder legislativo face aos outros poderes, a não inquirição ou a impossibilidade da inquirição dos deputados arrolados, por falta da autorização da Mesa da Assembleia Legislativa, em caso algum, tem a virtualidade de constituir nulidade no procedimento disciplinar.
31. Se, em face do disposto nos artºs 318º e 319º do ETAPM, o despacho que ordena a instauração de um processo disciplinar tiver sido emanado por quem é competente em razão dos elementos, nomeadamente a categoria e o vínculo do visado à Administração Pública, disponíveis e reportados como correctos no momento da abertura do processo, o eventual apuramento dos elementos determinantes da competência disciplinar, diversos daqueles que já foram atendidos para a determinação da competência disciplinar de quem já ordenou a instauração, não conduz à invalidação do despacho que ordenou a instauração do processo nem à de todos os actos entretanto praticados cuja validade dele depender, desde que a instauração tenha sido ordenada pelo Chefe do Executivo que, em face do disposto no artº 318º/1 do ETAPM, detém os poderes disciplinares que têm todos os seus subordinados e é sempre competente para instaurar quaisquer funcionários/a alteração superveniente não implique enfraquecimento da protecção do bem jurídico que os artºs 318º e 319º do ETAPM visam tutelar.
32. Se é certo que, no âmbito de um procedimento disciplinar, tal como sucede no processo penal, ao arguido não cabe o ónus de provar a sua inocência, não é menos verdade que o arguido tem todo o direito de se defender contra os factos que lhe tenham sido imputados, negando directamente a realidade desses factos, ou alegando factos ou circunstâncias capazes de excluir ou atenuar a culpa e a ilicitude dos factos cuja veracidade não impugnou.
33. Ao presidente de um órgão colegial (membro qualificado do mesmo) cabe um papel abrangente que se não esgota nos aspectos burocráticos do funcionamento do colégio, da lei ele também recebe um ónus, o de zelar pelo cumprimento da legalidade. Nessa medida, deve chamar a atenção dos membros do órgão para o atropelo da lei que esta ou aquela posição de alguns deles pode representar.
34. Tendo em conta que a Direcção dos Serviços de Finanças é um serviço que orienta, coordena e fiscaliza a actividade financeira do sector público administrativo da RAEM e que nas suas atribuições, encontra-se inter alia a de organizar o Sistema de Contabilidade Pública e o Orçamento Geral da RAEM, promovendo e dirigindo o seu funcionamento e execução e assegurando a normalidade na administração financeira da RAEM, o arguido, enquanto nomeado para desempenhar as funções do dirigente máximo da DSF e com vasta e longa experiência no exercício de cargos dirigentes na DSF, tinha um dever reforçado de conhecer as normas jurídicas que regulam as actividades da DSF e procurar manter-se sempre técnico-juridicamente informado e preparado para lidar com dinheiros públicos.
35. Assim, o facto, a ele imputado, de ter permitido a multiplicação das actas de uma reunião por forma a fazer corresponder a cada uma acta uma sessão, cujo número seria tido em conta para o efeito do cálculo das remunerações a pagar aos seus membros e a fim de possibilitar uma multiplicação indevida de remunerações pagas a si próprio e aos outros membros da CAVM, não se pode explicar pela sua atitude pessoal juridicamente desvaliosa que o impediu a consciência ética de decidir correctamente a questão do desvalor do facto, mas sim pela atitude, ao decidir agir como agiu, do simples desinteresse em saber o resultado da sua conduta, não obstante a efectiva representação consciente da violação da lei como consequência possível da sua actuação.
36. No Direito Penal, a forma de imputação do facto ao seu agente, a título de dolo, ou a título de negligência, tem extrema relevância para a sua qualificação jurídica. Nesta segunda situação, consoante a existência ou não de uma norma especial afirmativa da sua punibilidade, o facto negligente pode ser criminalmente censurável ou pode não ter qualquer dignidade penal. Ao contrário do que sucede com o Direito Penal, a distinção entre a imputação do facto a título de dolo ou a imputação a título de negligência, na matéria disciplinar, já não releva para a qualificação jurídica e a consequente punibilidade do facto. O que se compreende, pois que em grande parte das situações com dignidade disciplinar o comportamento passível de perseguição resulta de mero descuido ou falta de cuidado do agente.
37. Se a distinção entre o dolo e a negligência tem a relevância para qualificar os tipos de crimes, isto é, tipo fundamental (crime doloso) e tipo privilegiado (crime negligente), e até não reconhecer a um facto a dignidade penal, não obstante o efectivo preenchimento do tipo objectivo, já no Direito Disciplinar a mesma distinção limita-se a influir na determinação concreta de pena.
38. Na matéria de infracção disciplinar, se uma norma exige, para considerar um facto violador de um determinado dever funcional, que o mesmo facto tenha sido levado a cabo pelo agente com a intenção de produzir um certo resultado e uma outra norma dispõe que a produção efectiva de um mesmo resultado funciona como a circunstância agravante daquele facto para o efeito de punição, a aplicação cumulativa de ambas as normas não viola o princípio ne bis in idem, pois não há aqui a dupla valoração de uma mesma circunstância.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar improcedente in totum o recurso do acto recorrido.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 20 UC.
Registe e notifique.
RAEM, 09MAIO2019
Fui presente (Relator) Joaquim Teixeira de Sousa Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto) Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto) José Cândido de Pinho
219/2010-92