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Processo n.º 1025/2018 Data do acórdão: 2019-6-13
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– injúria
– difamação
– art.o 174.o, n.o 3, do Código Penal
– exceptio veritatis
– facto relativo à intimidade da vida privada ou familiar
– alteração da qualificação jurídico-penal dos factos provados
– acusação particular sem acusação conjunta do Ministério Público
– art.o 267.o, n.o 4, do Código de Processo Penal
– falta da legitimidade do Ministério Público
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. Nos termos do art.o 174.o, n.o 3, do Código Penal, não é aplicável a figura de exceptio veritatis quando se trata da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada ou familiar.
3. Sobre a questão da alteração jurídico-penal dos factos provados suscitada no parecer emitido pelo Ministério Público no âmbito do recurso penal em causa, tendo em conta que a assistente deduziu acusação particular contra a arguida pela prática de um crime de injúria e de um crime de difamação e depois disso o Ministério Público não chegou a acusar a arguida nos termos do art.o 267.o, n.o 4, do Código de Processo Penal, é de entender que o Ministério Público não tem legitimidade para suscitar tal questão.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1025/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida):
A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 440 a 454v do Processo Comum Colectivo n.° CR4-18-0014-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que a condenou como autora material de um crime consumado de difamação, p. e p. pelo art.o 174.o, n.o 1, do Código Penal (CP), na pena de cento e vinte dias de multa, à quantia diária de setenta patacas, e como autora material de um crime consumado de injúria, p. e p. pelo art.o 175.o, n.o 1, do mesmo Código, na pena de sessenta dias de multa, à quantia diária de setenta patacas, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, na pena única de cento e cinquenta dias de multa, à quantia diária de setenta patacas, no total de dez mil e quinhentas patacas de multa (convertível em cem dias de prisão, no caso de não ser paga nem substituída por trabalho), para além da obrigação de pagar à ofendida (já constituída assistente e também acusadora particular) a quantia de seis mil patacas destinada à reparação de danos morais desta, veio a arguida A, aí já melhor identificada, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão judicial o vício de erro notório na apreciação da prova (relativamente aos factos provados n.os 8, 10, 12 e 15), para rogar a absolvição do referido crime de difamação, ou o reenvio o processo nesta parte para novo julgamento (cfr. a motivação de recurso de fls. 460v a 465v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 468 a 470v dos autos), no sentido de manutenção do julgado.
Respondeu também a pessoa ofendida, preconizando (a fls. 485 a 495) a improcedência do recurso.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta (a fls. 506 a 507) pela improcedência manifesta do recurso, para além de sugerir, no tocante ao crime de injúria da arguida, a alteração da respectiva qualificação jurídico-penal dos factos para um total de quatro crimes de injúria.
Sobre a questão da alteração da qualificação jurídico-penal dos factos, não respondeu a arguida.
Concluído o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– a ofendida dos autos, então já constituída assistente, deduziu acusação particular contra a arguida, imputando a esta a autoria material, na forma consumada, de um crime de injúria e de um crime de difamação;
– após a acusação particular, o Ministério Público não chegou a acusar a arguida;
– a arguida pediu abertura da instrução, tendo o Juízo de Instrução Criminal acabado por pronunciar a arguida pela autoria material de um crime de injúria e de um crime de difamação;
– o acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 440 a 454v, cujo teor integral, que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória, se dá por aqui integralmente reproduzido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando:
A arguida ora recorrente assacou à decisão judicial recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova no respeitante aos factos provados n.os 8, 10, 12 e 15, para pedir a absolvição directa do seu crime de difamação, ou pelo menos o reenvio do processo para novo julgamento.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP) quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que a livre convicção do Tribunal recorrido tenha sido formada com violação de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou de quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou de quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, pelo que improcede o arguido vício de erro notório na apreciação da prova. (Nota-se que nos termos do art.o 174.o, n.o 3, do CP, nem é aplicável a figura de exceptio veritatis quando se trata da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada ou familiar).
Por fim, sobre a questão da alteração da qualificação jurídico-penal dos factos provados suscitada no parecer do Ministério Público: tendo em conta que a assistente deduziu acusação particular contra a arguida pela prática de um crime de injúria (para além de um crime de difamação) e depois disso o Ministério Público não chegou a acusar a arguida nos termos do art.o 267.o, n.o 4, do CPP, é de entender que o Ministério Público não tem legitimidade para suscitar tal questão, pelo que não é mister conhecer da mesma questão na presente lide recursória.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso pela arguida, com duas UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão ao Processo Comum Singular n.o CR2-19-0160-PCS do Tribunal Judicial de Base.
Macau, 13 de Junho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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