Processo nº 476/2019 Data: 06.06.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “burla”.
Crime de “uso de documento de identificação alheio”.
Crime de “uso de documento falso”.
Absolvição.
Erro notório.
SUMÁRIO
1. O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
2. Incorre-se assim em “erro notório na apreciação da prova” se o Tribunal dá como “provado” que o arguido, usando documentos bancários e de identificação do ofendido, fez sucessivos “levantamentos de quantias monetárias” da conta bancária deste, dando, simultaneamente, como “não provado”, que o ofendido sofreu “prejuízo”.
O relator,
______________________
Processo nº 476/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. de 20.02.2019 decidiu-se absolver A, arguido com os sinais dos autos, da prática como autor e em concurso real dos crimes de “burla”, “uso de documento de identificação alheio” e “uso de documento falso”, p. e p. pelos art°s 211°, 251° e 244° do C.P.M. que lhe eram imputados; (cfr., fls. 138 a 145 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformado com a decretada absolvição do arguido, o Ministério Público recorreu, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “violação do princípio da livre apreciação da prova” e “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 151 a 155-v).
*
Respondeu o arguido, pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 159 a 162).
*
Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto douto Parecer pugnado também pela procedência do recurso por verificação do vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls.173 a 174-v).
*
Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 141 a 143-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o Ministério Público recorrer do Acórdão pelo Colectivo do T.J.B. proferido que absolveu o arguido da prática como autor e em concurso real dos crimes de “burla”, “uso de documento de identificação alheio” e “uso de documento falso”, p. e p. pelos art°s 211°, 251° e 244° do C.P.M., que lhe eram imputados.
É de opinião que incorreu o Colectivo a quo em “violação do princípio da livre apreciação da prova” e “erro notório na apreciação da prova”.
Vejamos.
De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 19.07.2018, Proc. n.° 538/2018, de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018 e de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias, (in “Lições de Direito Processual Penal”, pág. 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal que é livre, mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 11.10.2018, Proc. n.° 772/2018, de 24.01.2019, Proc. n.° 905/2018 e de 21.02.2019, Proc. n.° 34/2019).
Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).
E como se consignou no Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16, “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.
Ora, e sendo este o entendimento que se mostra de adoptar em relação ao sentido e alcance do vício de “erro notório”, cremos que o recurso merece provimento.
Como em – boa – síntese se salienta no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto, “(…), o douto Tribunal a quo deu por provado que (…) o arguido tinha procedido, sucessivamente, aos quatro levantamentos na conta bancária do dinheiro pertencente ao ofendido, aos quatro usos do bilhete de identidade de residente deste e às quatro assinaturas imitadas pelo arguido.
Importa assinalar acentuadamente que o douto Tribunal a quo deu ainda por provado que o arguido utilizou a verba de MOP$25,000.00 para pagar a sua dívida, e as restantes três verbas de MOP$40,000.00, MOP$50,000.00 e MOP$50,000.00 nas apostas em casino.
Na nossa óptica, a regra de experiência torna incontestável que são conscientes e intencionais os quatro levantamentos, as quatro exibições do bilhete de identidade alheio, as quatro simulações de assinatura bem como o pagamento da dívida própria e as apostas no casino.
À luz da regra de experiência e por não se descortinar, nas devidas alturas, nenhuma imputabilidade, parece-nos igualmente indiscutível que ao praticar intencionalmente os levantamentos, as exibições, as simulações de assinatura, o pagamento da sua dívida e as apostas no casino, o arguido tinha de saber perfeitamente que tais condutas suas provocariam prejuízos patrimoniais ao ofendido e benefícios ilegítimos para si próprio.
(…)”.
Nesta conformidade, e em face da “fundamentação” pelo Tribunal a quo exposta para dar por “não provado” o “prejuízo do ofendido” assim com o “elemento subjectivo” dos crimes que ao arguido eram imputados, (cfr., fls. 143-v a 144), evidente se nos apresenta que se incorreu no assacado vício.
Com efeito, o Tribunal a quo justificou a sua decisão quanto à referida matéria de facto (que deu como não provada) invocando, o “silêncio” do ofendido em audiência de julgamento.
Porém, esta “circunstância”, (no caso, aliás, compreensível, pelo facto de este ser irmão mais novo do arguido), não se mostra bastante para a decisão proferida, pois que se afigura (manifestamente) contrária às “regras de expediência” e da “normalidade das coisas”.
Em boa verdade, (e como provado está), o “dinheiro” foi, (efectivamente), levantado, (e gasto), o que até levou o ofendido, após se aperceber do seu desaparecimento da sua conta, a apresentar a competente queixa na Polícia Judiciária; (cfr., fls. 2 a 8).
E sendo este um “facto” (provado), o mesmo implica, necessariamente, um “prejuízo” para quem aquele pertencia.
Quanto ao “elemento subjectivo”, atenta a idade do arguido – nascido em 1988 – e o seu “modus operandi”, cremos também que indicam as regras de experiência que terá agido livre e conscientemente, não deixando de saber que causava “prejuízo” ao ofendido, (seu irmão), e que esta sua conduta era proibida e punida por lei.
Assim, constatado o assacado “erro”, há que decidir em conformidade com o estatuído no art. 418° do C.P.P.M..
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, decretando-se o reenvio dos autos para novo julgamento quanto à matéria em questão, proferindo-se, seguidamente, nova decisão.
Custas pelo arguido recorrido com a taxa de justiça de 5 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 06 de Junho de 2019
_________________________
José Maria Dias Azedo
_________________________
Chan Kuong Seng
_________________________
Tam Hio Wa
Proc. 476/2019 Pág. 16
Proc. 476/2019 Pág. 15