Proc. nº 943/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 06 de Junho de 2019
Descritores:
- Acidente de viação
- Culpa do condutor
SUMÁRIO:
Se um passageiro transportado no interior do autocarro vem a cair e a sofrer ferimentos, desde que, após a prova realizada, se desconheça qual a causa da queda, apenas tendo ficado apurado que esta ocorreu em circunstâncias não apuradas, não é possível imputar o evento a culpa do condutor do veículo.
Proc. nº 943/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I - Relatório:
A, Limited (A有限公司), com sede em Macau na Avenida da XX, XX, Edif. XX, XXº andar XX, -----
Instaurou no TJB (Proc. nº CV2-16-0034-CAO) acção sub-rogatória com processo ordinário contra: -----
B S.A. (B有限公司), com sede em Macau na Avenida da XX n.º XX Edifício XX, XXº andar.
Com os fundamentos apresentados constantes da petição inicial de fls. 2 a 6, pediu que fosse julgada procedente por provada a presente acção e, em consequência, a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de MOP$227.212,10 acrescida dos respectivos juros legais desde a data da citação.
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Na oportunidade, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente.
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É contra essa sentença que pelo presente recurso jurisdicional se insurge a autora, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
“1 - A douta sentença julgou o pedido da A. improcedente urna vez que considerou que a mesma não tinha logrado demonstrar que a queda da sinistrada tinha sido causada pela forma corno o veículo MP-XX-X2 tinha sido conduzido, o que impedia de se imputar causalmente esta queda à condução deste veículo.
2 - A recorrente discorda deste entendimento pois considera que as circunstâncias não apuradas mencionadas na resposta ao quesito 5º da Base Instrutória se referem à forma propriamente dita corno a ofendida Srª C caiu e não ao facto desta queda ter sido provocada pela travagem do autocarro.
3 - Porque não restam, nem podem restar dúvidas, ao tribunal de que a senhora caiu em virtude de urna travagem do condutor do autocarro.
4 - Isto mesmo é mencionado em vários documentos nos presentes autos e não foi posto em causa pela própria R.
5 - Ou seja, o que a R. colocou em causa foi a responsabilidade do condutor do autocarro na travagem brusca que fez e não o facto de a queda da senhora ter sido consequência dessa travagem.
6 - Ao contrário do que a douta sentença recorrida refere, a R. não desmente que a queda foi causada pela forma corno o veículo MP-XX-X2 estava a ser conduzido, ou seja, pela travagem brusca do mesmo.
7 - Aliás, a culpa na produção deste acidente pertenceu exclusivamente ao condutor do autocarro de matrícula MP-XX-X2, tal corno se comprova pelo acórdão proferido pelo 3º Juizo Criminal no processo nº CR3-16-0240-PCC, que ora se junta corno documento nº 1 ao abrigo do disposto no artigo 451º nº 2 do C.P.C ..
8 - A junção deste acórdão é admissível pois, tal corno decorre do estipulado na norma legal acima referida, este documento tornou-se necessário por virtude da ocorrência posterior, ou seja, derivado do facto da sentença recorrida ter posto em causa que a queda da sinistrada C se tivesse devido à condução do autocarro.
9 - Em face da mesma e em face do acima exposto dúvidas não podem ocorrer quanto à imputação da queda da sinistrada à condução (neste caso à travagem) do veículo segurado na R., motivo porque deverá ser alterada a decisão recorrida e substituída por outra que condene a R. a restituir à A. os montantes por esta dispendidos e que constam da matéria assente nos autos.
Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o Mui Douto suprimento de V. Excelências, deve, pelas apontadas razões, ser julgado procedente o presente recurso, condenando-se a R. a reembolsar a A. de todas as despesas por esta efectuadas em consequência do acidente de viação descrito nos autos, assim se fazendo a esperada e sã JUSTIÇA!”
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A ré respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
“I. Vem o Recurso a que ora se responde interposto da decisão proferida pelo douto Tribunal a quo que entendeu ser de julgar improcedente a acção instaurada pela Recorrente peticionando que a Recorrida fosse condenada no pagamento do montante de MOP$227,212.10.
II. O douto Tribunal a quo decidiu julgar improcedente a referida acção uma vez que não foram apuradas as circunstâncias em que se deu a queda da Recorrente no interior do autocarro, concluindo então que: “Autora não logrou demonstrar que a queda foi causada pela forma como o veículo MP-XX-X2 era conduzido o que impede que se impute esta queda à ora Recorrida”.
III. A Recorrida considera que as circunstâncias não apuradas mencionadas na resposta dada ao quesito 5.º apenas respeitam à forma como a Recorrente terá caído e não ao facto de que a queda se deu por causa de uma travagem brusca do autocarro!
IV. A interpretação que a Recorrente faz da resposta a tal quesito é no mínimo criativa e não tem qualquer correspondência com o texto em si, donde expressamente se extrai que não foram apuradas as circunstâncias que levaram à queda da Recorrente no interior do autocarro.
V. Ao arrepio da regra estabelecida no artigo 599.º, n.º 1 alínea b), a Recorrente limita-se a afirmar que existem documento nos autos donde se retira que a queda terá sido causada por uma travagem brusca, porém, estranhamente, não identifica nenhum desses documentos.
VI. É também falso que a ora Recorrida não tenha impugnado as circunstâncias em que se deu o acidente, pois que, na sua contestação, a ora Recorrida refere expressamente que não foi possível apurar a de quem foi a culpa na produção do acidente, motivo que levou aliás a que tal matéria viesse a ser quesitada sob o artigo 5.º da base instrutória, e que sobre ela tivesse concluído do douto tribunal não ter sido produzida prova, para além da existência da queda.
VII. No que concerne à junção pela Recorrente na presente sede de uma certidão da decisão proferida no âmbito de um processo-crime que correu termos pelo 3.º Juízo Criminal sob o n.º CR3-16-0240-PCC, sempre se dirá que tal junção é legalmente inadmissível e, como tal, não deve ser aceite o documento junto e nem as conclusões que a Recorrida do mesmo extrai.
VIII. A Recorrente invoca o artigo 451.º, n.º 2 do CPC, de modo a justificar tal junção nesta sede, referindo que este documento se tornou necessário por virtude da sentença recorrida ter concluído que nenhuma prova se fez quanto às circunstâncias em que se deu a queda da Autora.
IX. Porém, salvo devido respeito, atenta a causa de pedir da presente acção, atenta a matéria quesito no artigo 5.º da base instrutória e atenta as regras da distribuição do ónus da prova, a junção do referido documento reputava-se necessária e pertinente logo que que a Autora dele tomou conhecimento, ou seja, em 7 Julho de 2017, data em que a decisão ora junta foi proferida e notificada à Recorrente.
X. Quer tenha sido por opção, acreditando a Autora, ora Recorrente, que a prova carreada seria suficiente para provar o facto alegado, não sendo, portanto, necessária a junção do documento agora em discussão, quer tenha sido por esquecimento, a verdade é que a junção, nesta sede e nesta altura, é ilegal e carece de fundamento jurídico.
XI. Assim não se considerando, o que apenas se admite por cautela de patrocínio e por mero exercício hipotético, estar-se-ia a assumir que não há limites para a junção de documentos possibilitando-se a que a parte que vê a sua pretensão improceder poder, livremente e em completo desrespeito pelas regras previstas no CPC, juntar documentos comprovativos dos factos alegados na primeira instância, ainda que tais documentos tenham estado disponíveis a todo o tempo mas que optou não juntar.
XII. Nesse sentido, não se admite que o facto de ter perdido a acção, por não ter feito a prova de um facto alegado, constitua uma “ocorrência posterior” para efeitos do artigo 451.º n.º 2 do CPC, portanto, a junção do documento por parte da Recorrente deverá improceder, devendo, por conseguinte, ser desentranhado.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. douta mente suprirão:
a) Não deve ser admitida a junção da certidão do acórdão proferido pelo 3.º Juízo Criminal do TJB, no âmbito do processo n.º CR3-16-0240-PCC, por legalmente inadmissível e consequentemente ser ordenado o seu desentranhamento; e
b) No demais, deve o presente Recurso ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão Recorrida.
Termos em que farão V. Exas. JUSTIÇA!”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
- A A. exerce a indústria de seguros (alínea A) dos factos assentes).
- No dia 29 de Junho de 2014, pelas 14:20 horas, ocorreu um acidente de viação que causou ferimentos na senhora C (alínea B) dos factos assentes).
- Na data do acidente, a responsabilidade por danos causados a terceiros pelo autocarro de matrícula MP-XX-X2 testava transferida para a R através de um contrato de seguro do ramo Automóvel titulado pela apólice n.º 00XXXXX916 (alínea C) dos factos assentes).
- Nos termos constantes do Auto de Conciliação celebrado nos Serviços do Ministério Público em 19 de Fevereiro de 2016, cuja cópia consta de fls. 8 e cujos termos aqui se dão por reproduzidos, a A. efectuou o pagamento de MOP$227.212,10, à sinistrada, C, a título de compensação das despesas médicas (MOP$22.285,10), da Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho (MOP$40.812,00) e da incapacidade permanente parcial para o trabalho de 25% (MOP$164.115,00) (alínea D) dos factos assentes).
- A Autora celebrou com a D Limitada/ D Limitada/ Loja de Lavagem de Automóveis, um acordo denominado contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, através do qual esta, transferiu para a Autora a responsabilidade referente aos acidentes de trabalho ocorridos com os seus trabalhadores (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- A Autora e a D Limitada acordaram que o referido contrato de seguro cobria os acidentes ocorridos durante viagens de e para o local de trabalho ou seja “in itineri” (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
- Na data do acidente referido em B) dos factos assentes, a referida C era empregada da referida D Limitada (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
- No dia referido em B) dos factos assentes, C apanhou o autocarro de matrícula MP-XX-X2 para se dirigir ao local de trabalho onde iria iniciar o seu turno de trabalho (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
- Quando o autocarro estava a ser conduzido na Avenida de Venceslau de Morais e em circunstâncias não apuradas, C teve uma queda dentro do autocarro (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
- A queda provocou a C dores nas costas e uma fractura compressiva na vertebra L1 (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
- Na “data do acidente referido em B) dos factos assentes, C auferia o salário de MOP7.815,00 (resposta ao quesito 7.º da base instrutória).
- Em consequência da queda referida na resposta ao quesito 5º, C sofreu, pelo menos, 92 dias de incapacidade absoluta para o trabalho (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- Em consequência da queda referida na resposta ao quesito 5º, C sofreu uma redução permanente de 15% da sua capacidade para o trabalho (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- C nasceu em 25 de Outubro de 1954 (resposta ao quesito 11 º da base instrutória).
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III – O Direito
1 - O caso
A Autora, seguradora “A Limited”, celebrou com a D Limitada/ D Limitada/ Loja de Lavagem de Automóveis, um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho.
Por esse contrato, a segurada transferiu para a Autora a responsabilidade referente aos acidentes de trabalho ocorridos com os seus trabalhadores.
C, que era uma das suas empregadas, quando se deslocava em trabalho, caiu no interior de um autocarro público de passageiros em circunstâncias não apuradas.
A autora efectuou o pagamento à sinistrada MOP$ 227.212,00 a título de compensação pelas despesas médicas, incapacidade temporária absoluta e incapacidade permanente parcial.
Nos termos do art. 58º, nº1, do DL nº 40/95/M, de 14/08, por o acidente ter sido de trabalho e simultaneamente de viação, a seguradora pelo acidente de trabalho fica sub-rogada nos direitos do sinistrado em relação à seguradora pelo acidente de viação. Foi com base neste preceito que a acção sub-rogatória foi instaurada.
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2 - A sentença
A decisão da 1ª instância foi no sentido de julgar a acção improcedente, em virtude de, ao contrário do que vinha descrito na petição inicial, não se ter apurado as circunstâncias concretas em que o acidente se verificou (cfr. resposta ao art. 5º da BI).
A autora tinha alegado que a queda da passageira se deveu a duas travagens bruscas e violentas do condutor do veículo em que seguia, sem nada que o fizesse prever, mas após a prova feita apenas se ficou a saber que a queda da vítima no interior do autocarro de passageiros se deu em circunstâncias não apuradas.
Foi por essa razão, i.é., por não se ter apurado o circunstancialismo que motivou a queda da vítima, nomeadamente por se não ter demonstrado que a queda se deveu à forma como o veículo era conduzido, que na sentença não se pôde fazer a imputação do acidente à condução do veículo. Com tal fundamento, entendeu a 1ª instância que nem sequer o art. 496º do CC podia ser invocado no caso, razão pela qual julgou a acção improcedente.
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3 - O recurso
Nos fundamentos da sua impugnação, a autora/recorrente enfatiza que as “circunstâncias não apuradas” na resposta ao art. 5º da BI se referem à forma propriamente dita como a ofendida, C caiu, e não ao facto de a sua queda ter sido provocada pela travagem do autocarro. Para si, não há qualquer dúvida que foi em virtude da travagem brusca da passageira que ela caiu!
Por isso, considera que a culpa deste acidente se ficou a dever exclusivamente ao condutor do autocarro. A provar este facto, juntou um documento - acórdão proferido pelo 3º Juízo Criminal no Proc. nº CR3-16-0240-PCC – o qual, por ser tardio e não respeitar os requisitos dos arts. 451º, nº e 616º, nº1, do CPC, foi mandado extrair e devolver à apresentante.
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4 - Apreciando
4.1 - No recurso, a autora insiste em alegar que a passageira apenas caiu no interior do veículo em consequência de travagens bruscas efectuadas pelo respectivo motorista.
Daí que se insurja contra a decisão recorrida, por entender que a expressão “circunstâncias não apuradas” contida na resposta ao art. 5º da B.I. se refere à forma propriamente dita como a ofendida caiu e não ao facto desta queda ter sido provocada pela travagem brusca do autocarro. Porque, acrescenta a recorrente, “não resta nem pode restar dúvidas ao tribunal de que a senhora caiu em virtude uma travagem do condutor do autocarro”.
Ou seja, mais do que criticar a sentença, até parece que o propósito da recorrente é censurar a forma como o julgamento da matéria de facto foi efectuado.
Se essa foi a sua intenção, não fez o que devia, de acordo com o ónus que deriva do comando do art. 599º do CPC. Deveria ter impugnado concretamente a resposta ao art. 5º da BI e indicar quais os meios probatórios constantes do processo (v.g., qual ou quais os documentos dos autos que o tribunal não ponderou ou mal avaliou) ou de registo nele realizado (v.g., qual ou quais as testemunhas que sobre o assunto tenham deposto), com referenciação específica das passagens gravadas onde o testemunho de algum depoente pudesse fazer reverter a convicção do tribunal “a quo” sobre aquele facto.
Por falta de cumprimento deste dever, o recurso sobre a matéria de facto não pode ser apreciado.
Quanto à forma como o tribunal julgou aquele facto, nada temos a acrescentar, senão aceitar acriticamente a prova obtida sobre aquele facto.
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4.2 - A recorrente limita-se a considerar que a culpa na produção do acidente se deveu ao comportamento do condutor do autocarro. Nenhuma outra questão adicional trouxe ao recurso.
Contudo, face ao que está provado, apenas sabe o TSI que a passageira seguia no autocarro dirigindo-se para o seu local de trabalho e que, quando o veículo circulava na Av. Venceslau de Morais (resposta ao art. 4º da BI), ela “teve uma queda dentro do autocarro”, “em circunstâncias não apuradas” (resposta ao art. 5º da B.I.).
Qual foi o circunstancialismo de facto em que ocorreu a queda? Estava de pé ou sentada? Escorregou? Tropeçou em algum outro passageiro ou em algum objecto? Foi por causa de alguma travagem brusca efectuada pelo condutor do autocarro? Foi devido a alguma curva fechada feita pelo condutor em velocidade excessiva?
Nada sabemos, porque as circunstâncias não foram apuradas.
Sendo assim, nenhum juízo de culpa é possível extrair e imputar a quem quer que seja (condutor, vítima ou terceiro).
Deste modo, a pretensão do recurso tem que naufragar.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
T.S.I., 06 de Junho de 2019
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
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