Proc. nº 536/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 06 de Junho de 2019
Descritores:
- Procuração
- Extinção da procuração
- Efeitos em relação a terceiro
- Prova
- Princípio da imediação e da livre apreciação da prova
SUMÁRIO:
1 - Nos termos do art. 258º, nº1, do CC a procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia, ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto se outra for a vontade do representado.
2 - Cessando a relação jurídica do negócio-base (mútuo), extingue-se também a procuração e os respectivos poderes por ela transmitidos.
3 - O nº 1 do art. 259º do CC estabelece um conhecimento efectivo, por parte do terceiro, da extinção da procuração devida a modificação ou revogação, conhecimento que lhe deve ser transmitido por parte dos interessados. Se não ficar provada a transmissão desse conhecimento, presume-se que o terceiro ignora a existência da causa de extinção da procuração. E nesse caso, o negócio que consigo tiver sido celebrado não será afectado.
4 - Diferente é a situação referida no nº 2. Aí, já não se impõe o dever de dar a conhecer ao terceiro a causa da extinção. No entanto, ao contrário do que resulta do nº1, não se estabelece nele uma presunção de ignorância por parte do terceiro. Daí que lhe caberá provar que ignorava, sem culpa, a extinção da procuração, sob pena de ineficácia do negócio em relação a si.
5 - O princípio da imediação e da livre apreciação das provas impossibilita, em regra, o tribunal de recurso de censurar a relevância e credibilidade que o tribunal recorrido tiver atribuído ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu. A partir do momento em que o julgador respeita o espaço de liberdade que é próprio da sua livre convicção e não ultrapassa os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho, no tocante à matéria de facto, só nos casos e moldes restritos dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser feita.
Proc. nº 536/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
A, de sexo masculino, titular do BIRM n.º 13XXXXX(7) emitido pela DSI em 11 de Setembro de 2007, instaurou no TJB (Proc. nº CV3-16-0043-CAO) contra: ----
1º Réu: B, de sexo masculino, casado com C no regime da comunhão de adquiridos, titular do BIRM n.º 73XXXXX(8) emitido pelo DSI (anexo 2), residente na Rua do XX, n.º XX, Avenida do XX, n.º XX e Rua do XX, n.º XX, Edf. XX, XXº andar XX, ----
e ----
2ª Ré: C, de sexo feminino, casada com B no regime da comunhão de adquiridos, titular do BIRM n.º 13XXXXX(4) emitido pelo DSI (anexo 3), residente na Rua do XX, n.º XX, Avenida do XX, n.º XX e Rua do XX, n.º XX, Edf. XX, XXº andar XX, ----
Acção de reivindicação, pedindo o reconhecimento de propriedade sobre uma fracção habitacional que identifica e a condenação dos RR a lha restituírem.
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Na contestação, os RR deduziram pedido reconvencional.
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Foi, na oportunidade, proferida sentença, que julgou procedente a acção e improcedente a reconvenção.
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É contra essa sentença que ora se insurgem os RR no presente recurso jurisdicional, em cujas alegações produziram as seguintes conclusões:
“1. A extinção da relação jurídica subjacente à emissão da procuração faz extingui-la. Em consequência, o procurador (aparente) que aja invocando a procuração extinta faz apelo a uma relação de representação que já não existe.
2. É entendimento unânime da doutrina que, quando a extinção da procuração resulte de causa distinta da revogação - como, por exemplo, da cessação da relação subjacente -, é ao terceiro que cabe o ónus de provar o seu desconhecimento não culposo, ou seja, a sua boa fé. A lei estabelece nitidamente consequências distintas para as diferentes causas de extinção da procuração, a ponto de separá-las em pontos diferentes do mesmo artigo.
3. Quando a extinção da procuração se fique a dever à sua revogação, fica o dominus investido no dever de levar tal facto ao conhecimento de terceiros, por meios idóneos, para que não lhe sejam oponíveis os negócios celebrados pelo procurador aparente.
4. Pelo contrário, se o dominus, depois de revogar a procuração, não cuidar de levar esse facto ao conhecimento de terceiros através de meios idóneos, fica então sujeito a que os actos praticados pelo procurador aparente lhe sejam oponíveis. Assim não será quando o dominus demonstre que, no momento da conclusão do negócio, o terceiro, com quem o procurador aparente contratou em seu nome, tinha conhecimento da extinção da procuração.
5. Para os casos de extinção da procuração em virtude da sua revogação, estabeleceu o legislador uma presunção de desconhecimento pelo terceiro, a qual determina uma inversão do ónus da prova, cabendo o dominus ilidir tal presunção, sob pena de, caso o não faça, os negócios celebrados pelo procurador aparente lhe serem oponíveis.
6. Quando a extinção da procuração resulte de facto extintivo distinto da revogação (v.g. a cessação da relação jurídica subjacente à procuração), o legislador estabeleceu uma solução diferente, tendo, inclusivamente, tido o cuidado separá-la sistematicamente dos casos de extinção por revogação da procuração, isolando-a no n.º 2 do art.º 259.º:
7. Em vista, quer do isolamento sistemático da solução, quer da diferença significativa na redacção dos preceitos, não seria lógico que deles resultassem soluções jurídicas idênticas.
8. O legislador demarcou dois regimes de protecção do terceiro para duas situações distintas: um para os casos de revogação expressa da procuração pelo dominus, outro para os casos em que a extinção da procuração ocorre por motivo distinto do da revogação, v.g. a cessação da relação jurídica subjacente à emissão da procuração.
9. No primeiro caso, regido pelo art.º 259.º/1 CC, a lei impõe ao dominus um dever de publicitar, através de meios idóneos, a revogação da procuração. Quando não o cumpra, fica a presumir-se a ignorância do terceiro, presunção que o dominas pode ilidir, demonstrando que o terceiro tinha efectivo conhecimento da revogação no momento da conclusão do negócio.
10. No segundo caso, já a lei não impõe aquele dever de informação ao dominus; porém, já o terceiro não beneficia de uma presunção de ignorância semelhante à estatuída no art. º 259.º/1, cabendo ao terceiro fazer prova de dois factos: (i) de que, no momento em que contratou, desconhecia a extinção da procuração (ou, em alternativa, do facto determinante da emissão da procuração, i.e., da cessação da relação jurídica subjacente; e (ii) de que esse seu desconhecimento não lhe é imputável a título de culpa.
11. No primeiro caso, existe uma declaração expressa do dominus a revogar a procuração. Esta declaração directamente parte da sua vontade contratual e encontra-se inteiramente no domínio da sua esfera de actuação. Por isso a lei lhe impõe aquele dever de informação, o qual constitui um verdadeiro encargo em sentido técnico, cujo cumprimento o beneficia e o incumprimento o prejudica no plano probatório.
12. No segundo caso, o legislador não impõe ao dominus um dever de informação semelhante ao do art.º 259.º/1, logo também não lhe impondo as consequências nefastas do seu incumprimento.
13. Cabe ao terceiro provar, não só que desconhecia a extinção da procuração (ou da respectiva relação subjacente), como, também, que esse desconhecimento não lhe é imputável a título de culpa.
14. O terceiro não teria que fazer prova do desconhecimento efectivo, mas sim de que tenha exercido deveres de diligência ajustados à situação de facto concretamente considerada.
15. Todo o comércio jurídico contém em si uma certa porção de risco, que a lei pretende minimizar ou reequilibrar, numa ponderação entre tutela da confiança e protecção da autonomia privada. Não existem negócios perfeitamente isentos de risco.
16. A compra e venda em que uma das partes, designadamente o vendedor, é representado por procurador, não sendo de todo anormal, também não constitui o paradigma do comércio jurídico.
17. Quanto mais um negócio se afasta do seu paradigma, tanto mais cuidado devem as partes colocar na sua preparação, conclusão e execução.
18. Quando alguém propõe um negócio, apresentando-se como representante do vendedor, cabe ao comprador, para salvaguarda da sua própria posição, exercer um mínimo de diligência no sentido de apurar as razões que levam a que o negócio esteja a ser proposto naqueles modos.
19. É a prova do cumprimento deste dever de diligência que se espera do terceiro, e não do desconhecimento culposo efectivo.
20. Na réplica, o RECORRIDO limitou-se a deduzir defesa por impugnação, quando, na verdade, lhe caberia ter alegado factos que demonstrassem ter exercido aquele dever mínimo de diligência que determinaria que o seu desconhecimento não lhe era imputável a título de culpa, invocando factos impeditivos do direito invocado pelos RÉUS-RECONVINTES.
21. Porém, limitou-se a dizer que desconhecia a relação de empréstimo, não tendo alegado quaisquer factos demonstrativos do exercício daqueles deveres de diligência.
22. Ao julgar como julgou, o douto tribunal a quo violou a norma do art.º 259.º/2 do Código Civil.
Nestes termos, e nos mais de Direito, com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por outra que declare a ineficácia do negócio em relação aos Recorrentes, assim se rogando a habitual Justiça de Vossas Excelências.”.
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O autor da acção respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
“A. No caso sub judice, os recorrentes deduziram a excepção de ineficácia para se oporem ao pedido de reivindicação formulado pelo recorrido, e deduziram a reconvenção de declaração da ineficácia com os mesmos fundamentos.
B. De acordo com a lógica no art.º 563.º do CPC, deve o tribunal a quo seguir esta lógica derivada do princípio da economia processual, e conhecer primeiro da excepção deduzida pelos recorrentes – ou seja a ineficácia oponível a terceiro.
C. Importa ter presente que, para se opor ao pedido de reivindicação formulado pelo autor, não se mostra suficiente o simples fundamento de representação sem poderes, porque a respectiva ineficácia é apenas relativa, e não basta para ser oponível a terceiro.
D. Assim, para se opor a terceiro, ou seja ao recorrido, os recorrentes precisam não só alegar a representação sem poderes, mas também afastar a oponibilidade do recorrido à representação sem poderes, quer dizer, têm de provar que o recorrido teve conhecimento das causas extintivas da procuração ou desconheceu culposamente as mesmas, de modo a destruir a protecção jurídica do recorrido, isto é, a oponibilidade à representação sem poderes.
E. De acordo com o art.º 335.º, n.º 2 do CC, a invocada ineficácia constitui facto impeditivo do direito, pelo que cabe aos recorrentes/réus fazer a prova dos factos constitutivos da excepção, alegados por eles.
F. Se assim não for entendido, parece que não se pode esclarecer quem é onerado com a prova desse facto, então, nos termos do art.º 335.º do CC, o respectivo facto referido na reconvenção dos recorrentes deve ser qualificado como constitutivo do direito, e em consequência, deve ser provado pelos recorrentes/reconvintes.
G. Se não for sufragado o acima exposto sobre o ónus da prova, entende o recorrido que dos elementos constantes dos autos também resulta que ele, sem culpa, desconheceu as causas extintivas da procuração.
H. Atento o facto de que o recorrido adquiriu o imóvel envolvido “AD18” por um preço superior ao de mercado, é absolutamente impossível que o recorrido tivesse conhecimento da liquidação de toda a dívida por parte do 1º recorrente.
I. Quanto à questão de se o recorrido, sem culpa, desconheceu a liquidação da dívida pelo 1º recorrente, entende o recorrido que em 14 de Junho de 2010, D tinha apenas 3 meses de vida, assim, parece que ele não precisou prestar falso depoimento. Nas declarações prestadas por D, ele afirmou que até 2005, o 1º recorrente apenas lhe devolveu cerca de HKD$400.000,00, quer dizer, até ao momento da morte, D ainda entendeu que o 1º recorrente não tinha pago integralmente a dívida.
J. Então, no dia 12 de Novembro de 2004, mesmo que o recorrido perguntasse a D se o 1º recorrente tinha devolvido toda a dívida, iria receber, sem dúvida, uma única resposta de D, isto é, o 1º recorrente ainda não reembolsou integralmente a dívida.
K. Ao contrário, se D, sabendo bem que o 1º recorrente já tinha liquidado a dívida, ainda insistisse em vender o imóvel pertencente ao 1º recorrente, perante a mesma pergunta do recorrido, também iria dar a mesma resposta, senão, porque é que usou a procuração para vender o imóvel envolvido “AD18”?
L. Se coubesse ao recorrido o ónus de provar que desconheceu, sem culpa, a liquidação da dívida, segundo o art.º 437.º do CPC, o respectivo facto não consta dos factos assentes, pelo que são os recorrentes que beneficiam com isso.
M. Por isso, a dúvida sobre o respectivo facto deve resolver-se de forma desfavorável aos recorrentes, isto é, reconhecer que o recorrido desconheceu, sem culpa, a liquidação da dívida pelo 1º recorrente.
N. A testemunha E alegou que, “Eu também tinha esta dúvida e perguntei ao Sr. F, que por sua vez, perguntou-me como podia constituir advogado para retirar a fracção em causa. Parece que ele mencionou que o marido da proprietária estava a cumprir a pena na prisão e tinha filho com a esposa, ademais, ele próprio estava a requerer a residência por investimento e não queria complicar o problema. Ele tinha lugar para habitar, pelo que não retirou, temporariamente, a fracção em causa”.
O. Em comparação com as testemunhas oferecidas pelos recorrentes, a testemunha acima referida não tem qualquer relação de parentesco com ambas as partes, pelo que é honesto e confiável, e deve-se aceitar os seus depoimentos e dar como provado o facto de “o Autor simpatizou com a condição da 2ª Ré, e permitiu tacitamente à 2ª Ré e ao seu filho menor continuar a viver na fracção autónoma ‘AD-18’”.
P. O tribunal a quo deu como não provado o facto constante do quesito 9º da base instrutória porque as testemunhas do recorrido não podiam alegar, de forma clara, os respectivos factos, e em segundo lugar, o recorrido trabalhou no Clube de VIP G, frequentado por D, e não retirou a fracção por vários anos depois da compra e venda.
Q. Antes de mais nada, qual é a relação entre o facto de que o recorrido, após a aquisição do imóvel envolvido, não exigiu de imediato a sua restituição, e a questão de se o recorrido teve ou não conhecimento da relação de empréstimo entre o recorrente B e D?
R. Além disso, mesmo depois da outorga da escritura pública de compra e venda, também é possível que o recorrido só tivesse conhecimento da relação de empréstimo entre D e o 1º recorrente quando exigiu a restituição do imóvel em causa. Assim, parece que a consideração feita pelo tribunal a quo não excluiu, necessariamente, a possibilidade de que o recorrido só tivesse conhecimento dos respectivos factos após a outorga da escritura pública de compra e venda.
S. E, quando o recorrido foi trabalhador do Clube de VIP G, exerceu a função de motorista do patrão do Clube, pelo que não apareceu frequentemente no Clube de VIP e não conheceu D e o 1º recorrente.
T. É de perguntar, como é que poderia o recorrido, na qualidade de motorista, ter conhecimento da relação de crédito e da dívida entre os jogadores?
U. Por isso, entende o recorrido que faltam outros factos que sustentem a lógica ou dedução do tribunal a quo, que reconheceu que o recorrido sabia o litígio pecuniário entre os jogadores com base em apenas o facto de o recorrido trabalhar no Clube de VIP G, sendo tal lógica contrária à lógica normal.
V. A compra e venda do imóvel envolvido foi praticada com intervenção de agente imobiliário, pode-se ver que o recorrido não sabia previamente que D pretendia vender o imóvel dos recorrentes, e nem se diga que teve conhecimento da relação de empréstimo entre eles.
W. O facto constante do quesito 9º da base instrutória assentou na impugnação do art.º 46.º da contestação, pelo que para provar o facto concreto constitutivo da excepção, recai sobre os recorrentes o ónus probatório.
X. Há muitas lacunas no fundamento com que o tribunal a quo deu como não provado o facto constante do quesito 9º da base instrutória, pelo que deve-se dar como provado o respectivo facto.
Y. Quanto à impugnação das respostas aos factos constantes dos quesitos 15º, 16º, 22º, 24º a 29º, 31º e 32º da base instrutória, o tribunal a quo disse que já decorreu mais de 10 anos desde a constituição da dívida, pelo que é difícil para os recorrentes apresentar prova do reembolso integral. No entanto, há contradições evidentes entre essa razão e o que aconteceu no presente caso, isso porque, na contestação, os recorrentes apresentaram, de imediato, os recibos que possuíram.
Z. Conforme as fls. 87 dos autos, D, antes da sua morte, alegou que o 1º recorrente tinha reembolsado apenas cerca de HKD$400.000,00 até 2010, e para cada reembolso, veio emitir um recibo ao 1º recorrente.
AA. Se os recorrentes quisessem reembolsar imediatamente toda a quantia emprestada e em consequência, recuperar o imóvel, porque é que não teriam exigido ao credor D a emissão de recibo para cada reembolso? Se o credor não emitisse o recibo, também poderia o 1º recorrente ter recusado o reembolso.
BB. Pelo que é ilógica a presunção do tribunal a quo, assente na razão acima referida, de que os recorrentes pagaram integralmente a quantia emprestada, e tal razão não é susceptível de fazer presumir, de forma directa e segura, os factos que pretende provar.
CC. O tribunal a quo reconheceu que depois do empréstimo, o 1º recorrente procedeu de imediato ao reembolso em prestações, o que revelou a sua atitude positiva e correspondeu-se aos elementos constantes das fls. 100 dos autos, pelo que devia ser provado o pagamento integral da quantia emprestada.
DD. Conforme os elementos constantes das fls. 100 dos autos, verificou-se no 1º reembolso de USD$4.000,00, alegado pelos recorrentes, a indicação de “H”, mas os recorrentes nunca mencionaram quem é “H”, ou que entregaram as quantias ao recorrido (sic.) através desta pessoa. No entanto, na contestação, os recorrentes alegaram expressamente que a referida quantia foi recebida por D em pessoa, razão pela qual, parece que os elementos nesta folha estão em desconformidade com os factos assentes.
EE. Por outro lado, é de mencionar que os elementos a fls. 100 dos autos foram preenchidos pelos próprios recorrentes. A admissão, por parte do tribunal a quo, do respectivo documento como prova, equivale, obviamente, à permissão ao 1º recorrente prestar depoimento de parte por escrito, de modo a alegar factos que se militam a favor dele, violando o art.º 345.º do CC.
FF. Além disso, ao participar o facto à PJ, os recorrentes não se consideraram necessariamente proprietários, mas ao contrário, trata-se de uma reacção directa à ocupação do imóvel. E se os recorrentes se consideram proprietários não tem qualquer relação directa com a liquidação ou não da dívida, pelo que a presunção do tribunal a quo não serve de prova válida para firmar os respectivos factos.
GG. Por fim, o tribunal a quo entendeu que o recorrido só exigiu aos recorrentes a restituição do imóvel vários anos depois, e presumiu, assim, que o recorrido (sic.) já reembolsou toda a quantia emprestada.
HH. Mas como acima referido, o respectivo facto só pode revelar a anormalidade da acção do recorrido; segundo o senso comum, também não se pode presumir que os recorrentes já reembolsaram o dinheiro, porque o destinatário do reembolso foi D e não o recorrido.
II. Na verdade, depois de se tornar o proprietário do imóvel envolvido, o recorrido pretendeu sempre a recuperação da ocupação do imóvel, mas precisou trabalhar frequentemente fora de Macau e tinha dificuldade em tratar do assunto, pelo que no dia 14 de Dezembro de 2007, conferiu poderes a I para a gestão do imóvel.
JJ. Por isso, não obstante que o recorrido só exigisse a restituição do imóvel vários anos depois, não se pode demonstrar directamente que o recorrido (sic.) já tinha liquidado toda a dívida.
KK. Consta da contestação o respectivo facto (art.º 49.º da contestação), só que o tribunal a quo não o levou à base instrutória, e em consequência, não conseguiu proferir uma decisão correcta sobre o facto, pelo que, nos termos do art.º 590.º, n.º 3 do CPC, pede-se ao MM.º Juiz para mandar baixar os autos, para a apreciação da questão em causa.
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Por todos os fundamentos de facto e de direito acima expostos, pede-se ao MM.º Juiz para:
I. Julgar integralmente improcedente o recurso dos recorrentes, e manter a decisão do tribunal a quo; ou
II. Se assim não for entendido, julgar procedente a impugnação das respostas aos quesitos 2º, 9º, 15º, 16º, 22º, 24º a 29º, 31º e 32º da base instrutória, deduzida pelo recorrido, e procedeu à convolação correspondente; e
III. Nos termos do art.º 590.º, n.º 3 do CPC, mandar baixar os autos, para a apreciação dos elementos de facto indispensáveis à boa decisão.”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
“- A fracção autónoma envolvida situa-se na Rua do XX, n.º XX, na Avenida do XX, n.º XX e na Rua do xx, n.º XX, Edf. XX (descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXX3, e inscrita na matriz predial sob o n.º 7XXX4), XXº andar XX. (alínea A) dos factos assentes)
- Segundo o registo da Conservatória do Registo Predial, no dia 2 de Outubro de 1987, o “Território de Macau” concedeu, por arrendamento e através da escritura pública lavrada a fls. XX do Livro XX da DSF, os imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs 2XXX1, 2XXX2, 2XXX3 e 2XXX4, à J, Limitada. (alínea B) dos factos assentes)
- Em 18 de Dezembro de 1989, a referida concessão por arrendamento foi registada na Conservatória do Registo Predial por inscrição n.º 3XXXL. (alínea C) dos factos assentes)
- Em 21 de Dezembro de 1995, foi registada a constituição da propriedade horizontal do imóvel descrito sob o n.º 2XXX3. (alínea D) dos factos assentes)
- Em 23 de Fevereiro de 2000, o promotor do empreendimento, isto é, J, Limitada, através do procurador K, outorgou com o 1º Réu e a 2ª Ré a escritura pública de compra e venda e hipoteca, no 2º Cartório Notarial em Macau. (alínea E) dos factos assentes)
- Através da referida escritura, o promotor do empreendimento vendeu a fracção autónoma “AD-18” aos 1º e 2ª Réus. (alínea F) dos factos assentes)
- Em 6 de Março de 2000, o 1º Réu e a 2ª Ré foram registados como proprietários da fracção autónoma “AD-18”, sob inscrição n.º 1XXX2G. (alínea G) dos factos assentes)
- Em 2 de Abril de 2003, o 1º Réu e a 2ª Ré passaram uma procuração a favor de D no Cartório Notarial do Notário Privado L (vide o anexo 6 da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido). (alínea H) dos factos assentes)
- Segundo a referida procuração, o 1º Réu e a 2ª Ré conferiram a D os poderes para prometer vender, vender, prometer hipotecar, hipotecar, ou alienar ou constituir ónus por qualquer outra forma, a fracção autónoma “AD-18” em causa, por preço e condição que se acha conveniente, bem como o poder de receber o preço da venda e emitir o respectivo recibo ou declaração de quitação. (alínea I) dos factos assentes)
- Em 13 de Novembro de 2004, D, na qualidade de procurador dos proprietários (o 1º Réu e a 2ª Ré) da fracção autónoma “AD-18”, outorgou com o Autor a escritura pública de compra e venda de imóvel. (alínea J) dos factos assentes)
- Em 23 de Novembro de 2004, através da escritura pública lavrada a fls. 120 do Livro n.º 312 do Notário Privado L em 13 de Novembro de 2004, o Autor foi registado como proprietário do imóvel em causa na Conservatória do Registo Predial, sob inscrição n.º 9XXX1G. (alínea K) dos factos assentes)
- A partir de 2010, o autor pretendeu tomar posse do imóvel em causa. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- O autor pediu aos Réus para que desocupassem o imóvel mas foi recusado. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Em 19 de Agosto de 2015, o Autor enviou, através do Advogado M, carta ao 1º Réu e à 2ª Ré, exigindo que estes desocupassem o imóvel no prazo de 30 dias. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- Em 10 de Setembro de 2015, o 1º Réu recebeu a supracitada carta enviada pelo Advogado M. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- Mas, no prazo de 30 dias após a recepção da carta, o 1º Réu e a 2ª Ré ainda não desocuparam a fracção autónoma “AD-18”. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Até à data da intenção da presente acção, o 1º Réu e a 2ª Ré ainda habitam a fracção autónoma “AD-18” envolvida. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- No início do ano de 2003, o 1º Réu, B, pediu emprestada a quantia de HKD$800.000,00 a D. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- D emprestou essa quantia ao 1º Réu. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- Para garantir o pagamento, D exigiu ao 1º Réu que emitisse a seu favor uma procuração com poderes para vender a fracção referida em A). (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- Essa procuração referida em H) tinha como única função servir de garantia ao pagamento do empréstimo. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- Tendo o procurador, D, deixado claro que a procuração serviria apenas como garantia do pagamento do empréstimo, e assumido o compromisso de não a utilizar, e de a devolver, caso o 1º Réu pagasse totalmente a quantia emprestada mais os juros. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- O 1º Réu entregou a D a quantia de USD$4.000,00 como pagamento parcial do empréstimo. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- Posteriormente, o 1º Réu efectuou dois pagamentos directamente a D: um no valor de MOP$12.000,00; outro no valor de RMB¥40.000,00. (resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- Em 27 de Junho de 2003, o 1º Réu pagou a D a quantia de HKD$90.000,00, equivalente a MOP$92.700,00. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- No dia 1 de Julho de 2003, o 1º Réu pagou a D a quantia de HKD$90.000,00, equivalente a MOP$92.700,00. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- Em 26 de Agosto de 2003, o 1º Réu fez novo pagamento a D de quantia de HKD$90.000,00, equivalente a MOP$92.700,00. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- Em 26 de Setembro de 2003, N, familiar do 1º Réu, procedeu ao depósito da quantia de RMB¥10.000,00, na conta pessoal de D. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- Em 29 de Setembro de 2003, N, familiar do 1º Réu, procedeu ao depósito da quantia de RMB¥100.000,00, na conta pessoal de O, conforme instruções de D. (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
- No dia 10 de Outubro de 2003, o 1º Réu entregou a quantia de HKD$50.000,00, equivalente a MOP$51.500,00 a D. (resposta ao quesito 22º da base instrutória)
- Em 15 de Outubro de 2003, N, familiar do 1º Réu, procedeu ao depósito da quantia de RMB¥50.000,00, na conta pessoal de O, conforme instruções de D. (resposta ao quesito 23º da base instrutória)
- Em 30 de Outubro de 2003, o 1º Réu entregou a quantia de HKD$50.000,00, equivalente a MOP$51.500,00 a D. (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
- No dia 10 de Novembro de 2003, o 1º Réu entregou a quantia de RMB¥80.000,00, a D. (resposta ao quesito 25º da base instrutória)
- No mês Novembro de 2003, o 1º Réu entregou mais a quantia de HKD$50.000,00, equivalente a MOP$51.500,00 a D. (resposta ao quesito 26º da base instrutória)
- Em 14 de Dezembro de 2003, o 1º Réu entregou a quantia de HKD$45.000,00, equivalente a MOP$46.350,00, a D. (resposta ao quesito 27º da base instrutória)
- Em 16 de Dezembro de 2003, o 1º Réu entregou a quantia de HKD$15.000,00, equivalente a MOP$15.450,00, a D. (resposta ao quesito 28º da base instrutória)
- O 1º Réu entregou a D, no dia 17 de Dezembro de 2003, a quantia de HKD$20.000,00, equivalente a MOP$20.600,00. (resposta ao quesito 29º da base instrutória)
- E, por último, em 13 de Abril de 2004, N, familiar do 1º Réu, procedeu ao depósito da quantia de RMB¥32.000,00, na conta pessoal de P, conforme instruções de D. (resposta ao quesito 30º da base instrutória)
- Na sequência dos pagamentos acima referidos, o 1º Réu pediu a D que lhe devolvesse a procuração. (resposta ao quesito 31º da base instrutória)
- D recusou devolver a procuração, fazendo exigências contínuas de que o 1º Réu lhe entregasse mais dinheiro. (resposta ao quesito 32º da base instrutória)”.
Acrescenta-se o seguinte facto alegado pelos RR na sua contestação e admitido expressamente pelo autor na sua réplica (art. 619º, nº1, al. a, 1ª parte e b), do CPC):
- O autor trabalha desde 2000 na sala VIP “G” no casino “XX” ao serviço de P.
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III – O Direito
1 - O caso
O réu da acção, B, teria pedido emprestada a quantia de 800 mil patacas a D, o qual, por não ter dinheiro suficiente para o empréstimo, ele mesmo se financiou junto de P, funcionário de uma sala VIP do casino XX, onde o autor trabalhava.
O mutuante Q, como garantia de cumprimento e pagamento da quantia mutuada, teria exigido ao jogador uma procuração com plenos poderes para vender a casa do réu, o que este e esposa fizeram. E na posse da procuração, vendeu a casa ao autor.
O autor quis que os RR lhe entregassem a casa, mas estes recusam-se a abandonar a fracção.
Este é o quadro de facto que ilustra a causa de pedir da acção.
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2 - Os contestantes defenderam na acção que o R, B, chegou a liquidar a dívida do mútuo e que, portanto, se extinguiu a obrigação e, consequentemente, também a procuração emitida em favor de D, nos termos do art. 258º, nº1, do Código Civil. Daí, o pedido reconvencional de declaração de ineficácia da transmissão operada pela escritura de compra e venda da fracção ao autor.
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3 - A sentença considerou:
- Que a procuração acima aludida foi emitida como garantia do pagamento da quantia mutuada;
- Que, com o pagamento integral em Dezembro de 2003 da quantia mutuada, se extinguiu o negócio-base (mútuo) e que a procuração, nesse caso, deveria ter sido devolvida;
- Que com a extinção da dívida, se extinguiu a procuração, nos termos do art. 258º, nº1, do Código Civil;
- Que o procurador D já não tinha poderes para representar os RR na venda a que procedeu;
- Que a venda é, em princípio, ineficaz em relação aos constituintes, nos termos do art. 261º, nº1, do CC;
- Que, no entanto, a extinção da procuração não é oponível em relação ao autor, nos termos do nº2, do art. 259º, do CC, por os RR não terem provado a culpa do autor no desconhecimento dessa extinção da procuração.
- Que, consequentemente, a ineficácia da compra e venda não se estende ao autor.
- Que, por isso, a acção seria procedente e improcedente a reconvenção, e assim decidiu.
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4 - O recurso
No recurso interposto pelos RR, vem suscitada a errada interpretação do art. 259º, nº2, do Código Civil efectuada na sentença.
No entender dos RR/recorrentes, a extinção da procuração deveria ser oponível ao autor, de forma a que a venda lhe não fosse eficaz.
Esta é, verdadeiramente, a grande questão que urge conhecer no presente recurso.
O artigo em causa tem o seguinte teor:
Artigo 259.º
(Protecção de terceiros)
1. As modificações e a revogação da procuração devem ser levadas ao conhecimento de terceiros por meios idóneos, sob pena de lhes não serem oponíveis senão quando se mostre que delas tinham conhecimento no momento da conclusão do negócio.
2. As restantes causas extintivas da procuração não podem ser opostas a terceiro que, sem culpa, as tenha ignorado.
Importa, no entanto, convocar o disposto no art. 258º, nº1, do Código, que prescreve que “A procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia, ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto se outra for, neste caso, a vontade do representado”
Parece claro, face à matéria de facto apurada, que o mutuário, ora recorrente marido, chegou a devolver toda a importância mutuada. Razão pela qual, por cessação da relação jurídica do negócio-base (mútuo), se extinguiu também a procuração e os respectivos poderes por ela transmitidos.
Ora, o que se discute é se essa extinção pode ser oposta ao autor, enquanto terceiro adquirente da fracção, vendida ao abrigo da procuração.
Ao caso é aplicável o nº2 do art. 259º do CC: A ineficácia resultante da extinção da procuração não será oponível ao terceiro se este ignorar sem culpa a causa extintiva da procuração.
Tal como se mostra elaborado o nº2 do art. 259º, parece ser evidente que só o interessado terceiro deve afastar a culpa; ou seja, apenas sobre o terceiro recai o ónus de prova de que desconhecia, sem culpa, a extinção da procuração.
Ou seja, o nº 1 do artigo estabelece um conhecimento efectivo, por parte do terceiro, da extinção da procuração devida a modificação ou revogação, conhecimento que lhe deve ser transmitido por parte dos interessados. Se não ficar provada a transmissão desse conhecimento, presume-se que o terceiro ignora a existência da causa de extinção da procuração. E nesse caso, o negócio que consigo tiver sido celebrado não será afectado.
Diferente é a situação referida no nº 2 (é o nosso caso). Aí, já não se impõe o dever de dar a conhecer ao terceiro a causa da extinção. No entanto, ao contrário do que resulta do nº1, não se estabelece nele uma presunção de ignorância por parte do terceiro. Daí que lhe caberá provar que ignorava, sem culpa, a extinção da procuração (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., pág. 247, em anotação ao art. 259º do Código Civil português; no mesmo sentido, Raul Richard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, em Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pág. 649).
Ou seja, a diferença reside no regime da prova:
No primeiro caso (nº1), o representado terá que provar que o terceiro conhecia a revogação e a modificação.
No segundo (nº2), a invocação da boa fé caberá ao terceiro (Helena Mota, em Abuso de Representação – Uma análise da problemática subjacente ao artigo 269º do Código Civil de 1966, Coimbra Editora, 2001, pág. 153; Menezes Cordeiro, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, II, Coimbra Editora, 2006, pág. 412 e em Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, 2005, pág. 100).
Assim sendo, o terceiro que queira beneficiar do esquema representado no nº 2 terá que invocar e provar o seu desconhecimento nos termos gerais (Ac. do STJ, de 7/03/1995, Proc. nº 86220, in CJ/STJ, 1995, I, pág. 113-116). E isto é assim, porque a tutela do terceiro não opera quando ele conhecesse ou devesse conhecer a extinção da procuração. Significa isto que o art. 259º dá expressão ao princípio geral de que o conhecimento efectivo (nº1) ou o desconhecimento culposo (nº2) não são merecedores de protecção (Heinrich Ewald Horster, A parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2014, pág. 487).
Ora, quando o autor celebrou o contrato de compra e venda da fracção logo tomou necessariamente conhecimento de que o outorgante D intervinha na qualidade de procurador dos RR, até por esse ser um elemento expresso constante da própria escritura (fls. 57-58 dos autos).
Mas, sendo o autor, A, empregado da sala VIP “G” e trabalhando para P (que, ao que parece, teria emprestado parte do dinheiro a D, que, por seu turno, posteriormente o teria emprestado ao 1º R B), tudo leva a crer que o autor, se eventualmente não sabia da razão da procuração, foi pelo menos muito incauto e negligente no apuramento da razão pela qual Q intervinha na escritura de compra e venda como representante do vendedor B; deveria ter-se inteirado sobre essa causa. E se o tivesse feito junto do representado - ou do próprio representante, pois que o conhecia -, logo iria apurar que a dívida do mútuo estava paga e que, por essa razão, a procuração já estava extinta.
Ao não fazê-lo, agiu com culpa, o que submete o caso directamente à previsão do nº2, do art. 259º do CC (“a contrario”). Dito de outra maneira, uma vez que o autor não afastou a culpa no desconhecimento, a causa extintiva da procuração já lhe pode ser oposta. É como se o procurador tivesse agido sem poderes na venda que fez ao autor.
Repare-se, por outro lado, que a matéria alegada pelo autor na sua réplica, de que não sabia da relação de empréstimo entre D, foi dada por não provada. Quer dizer, o autor não conseguiu afastar a culpa a que se refere o nº2, do art. 659º. Isto significa que a extinção da procuração, decorrente da extinção do negócio-base pelo pagamento, pode ser oposta ao terceiro/autor tornando ineficaz o negócio celebrado de compra e venda.
Dizendo isto, está o TSI a tomar posição no sentido de que o ónus de prova da “sem culpa” caberia ao autor, na senda da doutrina acima citada, e, consequentemente, no sentido de que não incumbiria aos RR a prova do facto contrário (nomeadamente, demonstrando o conhecimento ou desconhecimento culposo pelo autor).
Em suma, tendo esta questão sido levantada na contestação pelos RR/ reconvintes, deveria o Autor ter na réplica invocado factos claros que, se provados, demonstrassem o dever mínimo de diligência que revelasse que o desconhecimento da extinção da procuração não lhe podia ser imputável a título de culpa.
Quer dizer, os RR suscitaram na contestação/reconvenção matéria impeditiva ou extintiva do direito do autor, ao alegarem que a dívida do mútuo estava totalmente paga e que, por isso, a procuração estava extinta, o que se tornaria oponível ao autor. Provaram-na.
Face a essa matéria reconvencional, ficaria cometida ao autor a tarefa de alegar e demonstrar factos dos quais resultasse a diligência indispensável da sua parte no sentido de tentar obter o conhecimento - ou desconhecimento não culposo-, da extinção a que acima fizemos referência, pois essa era, por seu lado, matéria exceptiva e peremptória cuja prova, nos termos acima analisados, lhe cumpria efectuar (art. 335º, nº2, do CC).
Neste sentido, é de proceder o recurso dos RR.
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5 - A título subsidiário, e ao abrigo do art. 590º, nºs 2 e 3, do CPC, o autor/recorrido impugna determinados pontos da matéria de facto, especificamente dos arts. 2º, 9º, 15º, 16º, 22º, 24º a 29º, 31º e 32º da BI.
Apreciemos.
Quanto ao art. 2º da BI (“O autor simpatizou com a condição da 2ª ré, e permitiu tacitamente à 2ª ré e ao seu filho menor continuar a viver na fracção autónoma AD-18 sem cobrar nada?”), o tribunal deu-o como não provado.
O autor/recorrido, acha que se deve dar por provado, a partir do depoimento da testemunha E.
Contudo, o seu depoimento sobre esta matéria (ver transcrição na resposta alegatória ao recurso) é muito curto e nem sequer foi assertivo ou categórico, além de não incidir especificamente sobre a matéria concreta do quesito.
Improcede, pois, a impugnação nesta parte.
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O quesito 9º tinha o seguinte teor: “Ao outorgar a escritura pública de compra e venda referida na alínea J) dos factos assentes, o Autor não teve conhecimento da relação de empréstimo entre D e o 1º Réu?”.
O tribunal deu resposta negativa, mas o recorrido acha que deveria dar-se por provado. No entanto, as razões invocadas pelo recorrido não são mais do que um juízo subjectivo enquadrado num apelo à lógica das coisas. Ora, inferir uma prova através do recurso à lógica não é o mesmo que demonstrar a realidade dos factos. De modo que o recorrido não foi capaz de revelar, ou convencer, que não teve conhecimento da relação de empréstimo. O próprio tribunal “a quo” no acórdão que julgou a matéria de facto também não deixou de justificar a resposta negativa em termos que nos parecem razoáveis e sensatos. Por isso, não nos merece censura a resposta dada ao quesito.
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Quanto aos quesitos 15º a 32º da BI (referentes ao pagamento da quantia mutuada pelos RR/recorrentes ao mutuante D), e que o tribunal deu como provados, entende o recorrido que tal não podia acontecer. No seu entender, se apenas foram apresentados alguns recibos de pagamentos feitos em numerário, não podia ser dado como provado o pagamento das restantes quantias quesitadas uma vez que para elas não houve emissão de quaisquer recibos. Ou seja, para o recorrido, o tribunal não podia ter considerado que a dívida do mútuo estava saldada.
A questão é pertinente, na medida em que para a mesma factualidade, o recorrido invoca razões para não se poder presumir judicialmente o pagamento integral, ao passo que o tribunal presumiu o contrário.
Mas, ainda aqui, a razão ainda parece estar do lado do tribunal “a quo”, face à série de argumentos que invocou no aludido acórdão para justificar a sua posição acerca da prova do facto. O tribunal recorreu à presunção judicial com recurso a raciocínios e inferências de ponderação e bom senso, aqui dados por reproduzidos para todos os efeitos, que o TSI não está em condições de refutar, já que todos eles são plausíveis.
Ou seja, não ofereceu o recorrido melhor prova que fosse capaz de afastar o sentido daquela presunção judicial e, sendo assim, este tribunal de recurso manifesta a sua adesão à forma como a 1ª instância respondeu aqueles quesitos.
Vale a pena lembrar que:
“O princípio da imediação e da livre apreciação das provas impossibilita, em regra, o tribunal de recurso de censurar a relevância e credibilidade que o tribunal recorrido tiver atribuído ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu. A partir do momento em que o julgador respeita o espaço de liberdade que é próprio da sua livre convicção e não ultrapassa os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho, no tocante à matéria de facto, só nos casos e moldes restritos dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser feita.” (Ac. do TSI, de 1/06/2017, Proc. nº 760/2016).
E que:
“Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Reapreciada e valorada a prova de acordo com o princípio da livre convicção, se não conseguir chegar à conclusão de que houve erro manifesto na apreciação da prova, o recurso tem que improceder.” (Ac. do TSI, de 22/11/2018, Proc. nº 1134/2017).
Deste modo, também nesta parte improcede a impugnação.
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Por fim, invocando subsidiariamente o art. 590º, nº3, do CPC, o recorrido pretende que se quesite o facto do art. 49º da contestação.
O art. 49º da contestação tinha o seguinte teor:
“Portanto, de duas uma: ou o Autor sabia todas estas coisas, e portanto agiu de má fé e em conluio com D para prejudicar os Réus; ou, então, não as sabia, porque não fez por se informar, pelo que o seu conhecimento é culposo e só a ele imputável”.
Ora, como é fácil de ver, esta matéria jamais podia ser quesitada, não só porque é conclusiva, como também nem sequer é afirmativa e antes se limita a equacionar, em alternativa, duas linhas de possibilidade material.
De resto, esta matéria conclusiva nem sequer foi alegada pelo autor; era ele quem deveria ter alegado e provado os factos que revelassem o desconhecimento da situação da extinção da procuração ou demonstrassem tudo ter feito para apurar esse facto (qual a causa da procuração e se esta ainda estava operativa por a dívida causal ainda não ter sido paga).
A sua pretensão, portanto, não merece acolhimento.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em:
1 - Conceder provimento ao recurso, revogando a sentença, e
Em consequência,
2 - Julgar improcedente a acção e procedente a reconvenção, em razão do que se declara ineficaz a venda efectuada por D ao autor, ordenando-se o cancelamento da respectiva inscrição registral.
Custas pelo autor em ambas as instâncias.
T.S.I., 06 de Junho de 2019
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
Proc. nº 536/2018 31