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Processo n.º 60/2019 Data do acórdão: 2019-6-13
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– art.o 61.o, n.o 5, do Código Penal
– funcionário público
– comunicação da sentença condenatória penal
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. A redacção do n.o 5 do art.o 61.o do Código Penal, dada a sua clareza, não permite suscitar qualquer dúvida sobre a sua interpretação, sendo certo que para efeitos do art.o 288.o do vigente Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, também deverá ser enviada certidão da decisão condenatória penal (uma vez transitada em julgado) de funcionário ou agente público ao serviço a que este pertence.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 60/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): B (B)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 117 a 119v do Processo Comum Singular n.° CR3-18-0290-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material de um crime consumado de furto, p. e p. pelo art.o 197.o, n.o 1, do Código Penal (CP), na pena de sessenta dias de multa, à quantia diária de trezentas patacas, no total, pois, de dezoito mil patacas, convertível em quarenta dias de prisão no caso de não ser paga nem substituída por trabalho, veio o arguido B, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando a essa decisão judicial, a título principal, a violação, na questão de verificação da legitimidade do exercício do direito de queixa da parte ofendida, do disposto nos art.os 38.o e 107.o do Código de Processo Penal (CPP), e, subsidiariamente, o vício de erro notório na apreciação da prova na indagação sobre a imputabilidade penal do próprio arguido (devido à perturbação da sua capacidade de cognição, causada pelo estado de cansaço excessivo ou insónia), bem como a violação do art.o 61.o, n.o 5, do CP, para rogar, a título principal, a declaração da extinção do procedimento penal dele (devido à falta da legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal contra ele), e, subsidiariamente, a absolvição directa do crime de furto (por força do princípio de in dubio pro reo) ou o reenvio do processo para novo julgamento, para além da também almejada revogação da decisão de determinação da comunicação da sentença condenatória penal aos Serviços de Saúde de Macau (cfr., em detalhes, a motivação de recurso de fls. 211 a 223v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 271 a 274v dos autos), no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta (a fls. 288 a 290v) pela improcedência do recurso, para além de reclamar (a fls. 299 a 299v) do despacho do relator (de fl. 296 a 296v) que determinou o arquivamento do presente processo penal por desistência da queixa.
Sobre a reclamação desse despacho do relator, respondeu o arguido (a fl. 302 a 302v) no sentido da manutenção do mesmo decidido.
Concluído o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– a sentença ora recorrida ficou proferida em 22 de Novembro de 2018 a fls. 117 a 119v, cujo teor integral, que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória, se dá por aqui integralmente reproduzido;
– por despacho do relator de fl. 296 a 29v, foi homologada a desistência da queixa assinada em Janeiro de 2019 a fl. 286 pelo senhor C, com consequente determinação do arquivamento do presente processo penal;
– conforme o teor conjugado de fls. 20, 32 e 37, o Ministério Público exerce a acção penal nos presentes autos com base na queixa então apresentada pelo mesmo senhor C, que é empresário individual que explora a “Agência de Desenvolvimento XXX” (cfr. o teor de fl. 37), responsável, por sua vez, pelo funcionamento quotidiano do posto de abastecimento de combustível “ESSO” em causa nos autos (cfr. mormente o teor de fl. 295), sendo o objecto subtraído pelo arguido sem autorização prévia do respectivo dono pertença dessa Agência.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, decidindo:
Desde já, é de conhecer da reclamação do despacho do relator de fl. 296 a 296v.
Aí, foi por lapso que o relator não atendeu ao limite temporal fixado no n.o 2 do art.o 108.o do CP para efeitos de possível desistência da queixa, qual seja, até à publicação da sentença da primeira instância, pelo que é de revogar a decisão homologatória da desistência da queixa, sem mais indagação por desnecessária.
Com o que é de passar a conhecer do mérito do recurso do arguido, por não haver qualquer circunstância a obstar ao seu conhecimento.
A primeira questão suscitada na motivação dele tem a ver com a questão da regularidade da queixa apresentada.
Ante os elementos referidos na parte II do presente texto decisório, coligidos dos autos, o senhor C deve ser considerado como ofendido dos autos com legitimidade (prevista no art.o 105.o, n.o 1, do CP) para apresentar a queixa penal contra o arguido.
E agora do subsidiariamente suscitado vício de erro notório na apreciação da prova.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que a livre convicção do Tribunal recorrido tenha sido formada com violação de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou de quaisquer regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou de quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, pelo que improcede o arguido vício de erro notório na apreciação da prova no atinente à indagação do alegado estado de inimputabilidade penal do arguido por causa da alegada perturbação da sua capacidade de cognição, alegadamente causada pelo estado de cansaço excessivo ou insónia dele.
Aliás, sobre isto, já explicou o Tribunal recorrido, com clareza e razoabilidade, as razões da sua livre convicção sobre o estado de consciência do arguido aquando da prática do facto de furto (cfr. a fundamentação probatória da sentença, escrita na página 3 do texto da sentença, a fl. 118).
Por fim, é também acertada a decisão do Tribunal recorrido de ordenar a comunicação da decisão condenatória em causa aos Serviços de Saúde de Macau, por comando do art.o 61.o, n.o 5, do CP, que reza que “Sempre que o funcionário for condenado pela prática de crime, o tribunal comunica a condenação à autoridade de que aquele depender”, norma essa cuja redacção, dada a sua clareza, não permite suscitar qualquer dúvida sobre a sua interpretação, sendo de frisar que para efeitos do art.o 288.o do vigente Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, também deverá ser enviada certidão da decisão condenatória penal (uma vez transitada em julgado) de funcionário ou agente público ao serviço a que este pertence.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em revogar o reclamado despacho homologatório da desistência da queixa, e em negar provimento ao recurso do arguido, mantendo, pois, a decisão condenatória da Primeira Instância.
Pagará o arguido as custas do seu recurso (com três UC de taxa de justiça), e as custas da reclamação do referido despacho (com uma UC de taxa de justiça) (por ele ter defendido a improcedência da reclamação).
Após o trânsito em julgado, comunique a presente decisão (com certidão também da sentença recorrida) aos Serviços de Saúde de Macau.
Macau, 13 de Junho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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