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Proc. nº 155/2017
Recurso contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 11 de Julho de 2019
Descritores:
- Caducidade preclusiva
- Actividade vinculada
- Lei Básica (arts. 6º, 103º e 120º, da Lei Básica)

SUMÁRIO:

I - A caducidade-preclusiva pelo decurso do prazo geral máximo da concessão impõe-se, inevitavelmente, à entidade administrativa competente. É, pois, um acto vinculado, por ter a sua raiz mergulhada na circunstância de esse efeito caducitário decorrer directamente ope legis, sem qualquer interferência do papel da vontade do administrador. É da lei que advém fatalmente a caducidade.

II - Os princípios gerais de direito administrativo constituem limites intrínsecos da actividade administrativa discricionária e não vinculada.

III - Os artigos 6º, 7º e 103º da Lei Básica não apresentam qualquer relevância para os casos em que é declarada administrativamente a caducidade de uma concessão e em que, consequentemente, não está em causa propriedade privada da concessionária.

Proc. nº 155/2017

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
IENG FOUR LIMITADA, em chinês “盈科有限公司”, com sede na XXXXXX, ----
Interpõe neste TSI recurso contencioso -----
Do despacho de 15 de Dezembro de 2016, proferido pelo CHEFE DO EXECUTIVO,----
Que declarou a caducidade da concessão de um terreno sito na zona industrial de Seac Pai Van por despacho nº 162/GM/89.
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Na petição inicial formulou as seguintes conclusões:
“(i) O acto administrativo recorrido
1. No dia 9 de Novembro de 1990, o então Governo Português de Macau outorgou com a Empresa de Construção e Obras de Engenharia, San Tak Fat, Limitada (presente “IENG FOUR LIMITADA”) a escritura pública do contrato de concessão, através da qual foi autorizada a concessão, por arrendamento e com dispensa de hasta pública, de um terreno, sito na zona industrial de Seac Pai Van, lote “SQ1”, na ilha de Coloane, à recorrente.
2. Por o prazo de arrendamento do terreno concedido ter expirado no dia 8 de Novembro de 2015, o Chefe do Executivo proferiu despacho no dia 15 de Dezembro de 2016, declarando a caducidade da concessão do referido terreno.
(ii) Falta da audiência dos interessados
3. Ao abrigo dos dispostos nos art.ºs 10.º, 93.º, n.º 1, 96.º e 97.º do CPA, com base no princípio da participação, deve ser assegurada a participação dos interessados, através da audiência, nos respectivos procedimentos administrativos antes da formação, por parte da Administração Pública, das decisões que disserem respeito aos seus interesses, de modo a defender os seus direitos, e só nos casos previstos na lei, não há lugar ou fica dispensada a audiência acima referida.
4. O Despacho de 15 de Dezembro de 2016 proferido pelo Chefe do Executivo, além de declarou a caducidade da concessão do lote SQ1, também resultou na reversão, por parte da recorrente, das benfeitorias por qualquer forma incorporadas no terreno, livre de qualquer ónus ou encargos, para a RAEM, sem direito a qualquer indemnização.
5. Tal despacho é um acto decisório praticado sobre uma situação única e concreta.
6. Indicou-se no parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas o seguinte: “De acordo com o art.º 48.º, n.º 1, aplicável por força dos art.ºs 212.º e 215.º, todos da Lei n.º 10/2013 - «Lei de Terras», e pelo facto de o prazo de arrendamento de 25 anos, fixado pela cláusula 2ª do contrato, ter expirado em 8 de Novembro de 2015 e a concessão ser ainda provisória, não pode a mesma ser renovada. Assim, foi declarada a caducidade da concessão do lote SQ1 pelo decurso do prazo de arrendamento. (caducidade que causou a perda do direito)”
7. Mas ao fazer a decisão da declaração de caducidade, o Chefe do Executivo não procedeu à audiência da recorrente.
8. E não se verificam a inexistência e a dispensa de audiência dos interessados previstas respectivamente pelos art.ºs 96.º e 97.º do CPA.
9. A falta da audiência dos interessados acima referida inquinará a decisão de declaração da caducidade do vício de forma.
10. De acordo com o art.º 124.º do CPA, o acto em causa deve ser anulado por violar o princípio da participação e faltar a audiência dos interessados.
(iii) Violação do princípio da boa fé
11. Deve a Administração observar o princípio da boa fé quando estabelece qualquer relação com os particulares ou pratica actos a eles.
12. Deve a Administração agir de acordo com o princípio da boa fé, quer na negociação da concessão do terreno, quer no cumprimento do contrato de concessão e no processo de declaração da caducidade da concessão.
13. Em 1990, a Administração celebrou com a recorrente o contrato da concessão do terreno, e a recorrente creu que podia, conforme o contrato, construir o edifício nele indicado, e a Administração também iria cumprir o contrato, entregar-lhe, nos termos legais, o supracitado terreno, proceder, oportunamente, ao aplanamento do terreno e à construção de infra-estruturas circundantes, bem como emitir todos os documentos necessários para a construção do edifício.
14. A Administração não aplicou multa à recorrente por não concluir o aproveitamento do terreno dentro do prazo de aproveitamento, porque, segundo o que a recorrente creu, esta não violou o contrato.
15. Em 2010, a Administração realizou estudos sobre os 113 terrenos, indicando que o não aproveitamento do terreno em causa não era imputável à recorrente, fazendo com que esta cresse que não iria sofrer de consequências desfavoráveis.
16. Em 2011, a Administração teve um encontro com a recorrente e os concessionários dos outros lotes em Seac Pai Van, no qual se discutiram a execução de obras de aplanamento por explosão e de construção e infra-estruturas no terreno concedido, pelo que a recorrente tinha razão fundamentada para crer que após o aplanamento do terreno, a Administração iria discutir com ela o planeamento do terreno concedido, emitir-lhe a planta de alinhamento e proceder à alteração do contrato da concessão.
17. Em 2012, a Administração realizou a permuta de terrenos com o lote SN da zona industrial de Seac Pai Van. E no Parecer n.º 3/IV/2013 da 1ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, relativo à Lei de Terras, os proponentes afirmaram que seriam tratadas especialmente os casos em que a não conclusão do desenvolvimento não era imputável ao concessionário, fazendo com que a recorrente cresse que quando o não aproveitamento do terreno não era imputável ao concessionário, a Administração iria adoptar soluções específicas.
18. A Administração é responsável pelos documentos concretos assinados ou emitidos, bem como pelas informações dadas verbalmente ou por escrito, razão pela qual a recorrente tinha a confiança justa, crendo que não iria sofrer de consequências desfavoráveis causadas pela falta de desenvolvimento do lote SQ1 no prazo fixado pelo contrato de concessão.
19. A Administração praticou, repetidamente, actos que quebraram a confiança da recorrente, não lhe entregou o terreno concedido, não procedeu oportunamente ao aplanamento do terreno e à construção de infra-estruturas circundantes, não emitiu, nos termos legais, os documentos necessários para a construção de edifícios, não alterou o contrato de concessão, não emitiu a planta de alinhamento oficial, e não criou soluções específicas para os casos em que o não aproveitamento do terreno não fosse imputável aos concessionários.
20. A Administração estabeleceu com a recorrente uma relação de confiança, e praticou continuamente actos que deixaram a recorrente ter a convicção de que podia desenvolver o lote SQ1, mas não emitiu documentos e licenças necessárias para o desenvolvimento do lote SQ1, acto esse que pode ser qualificado como venire contra factum proprium.
21. A decisão, feita pela Administração, de declarar a caducidade da concessão do terreno quebrou a confiança justa da recorrente, e violou o princípio da boa fé.
22. Nos termos do art.º 124.º do CPA, o acto recorrido é anulável por violar o princípio da boa fé.
(iv) Violação do princípio da igualdade
23. Para o não aproveitamento do terreno no prazo de arrendamento que não seja imputável ao concessionário, a Administração adopta sempre a seguinte solução: na expiração do prazo de arrendamento e declaração de caducidade da concessão, o terreno será concedido de novo ao concessionário, que celebrará com o Governo da RAEM o novo contrato de concessão e pagará o prémio actualizado.
24. No passado, nos Despachos do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 89/2007 e n.º 8/2009, a Administração procedeu, primeiro, à devolução dos terrenos e, posteriormente, concedeu, de novo, outros terrenos, para resolver os casos de expiração do prazo de arrendamento.
25. Por outro lado, no caso do lote SN que se situa na zona industrial de Seac Pai Van, a Administração também, com base no projecto do plano urbanístico da zona de Seac Pai Van e na falta de infra-estruturas circundantes, concedeu de novo, através do Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 15/2012, um terreno situado na zona industrial de Seac Pai Van na ilha de Coloane, designado por lote “SI1”, à concessionária sociedade “Fabrico de Artigos de Plástico e Desenvolvimento Imobiliário Xin Zhi Zhong Hua, Limitada”.
26. Segundo o princípio da igualdade, as mesmas situações devem ser tratadas com mesmas formas, e as situações diferentes devem ser tratadas com formas diferentes.
27. Para o não aproveitamento do terreno no prazo de arrendamento que não era imputável à recorrente, a Administração adoptou uma solução diferente da sua prática habitual, declarando directamente a caducidade da concessão do terreno, sem conceder de novo outro terreno à recorrente. Verifica-se, obviamente, a violação do princípio da igualdade.
28. Nos termos do art.º 124.º do CPA, o acto recorrido é anulável por violar o princípio da igualdade.
(v) Aplicação errada da «Lei de Terras»
29. Indicou-se no parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas o seguinte: “De acordo com o art.º 48.º, n.º 1, aplicável por força dos art.ºs 212.º e 215.º, todos da Lei n.º 10/2013 - «Lei de Terras», e pelo facto de o prazo de arrendamento de 25 anos, fixado pela cláusula 2ª do contrato, ter expirado em 8 de Novembro de 2015 e a concessão ser ainda provisória, não pode a mesma ser renovada. Assim, foi declarada a caducidade da concessão do lote SQ1 pelo decurso do prazo de arrendamento.”
30. É verdade que segundo o sentido literal do n.º 1 do art.º 48.º da Lei de Terras, independentemente da culpa do concessionário e da imputabilidade de não conclusão do aproveitamento ao concessionário, as concessões provisórias não podem ser renovadas.
31. Mas o pensamento legislativo da «Lei de Terras» não é a inobservância do princípio da culpa. O Digno Magistrado do MP disse expressamente no processo n.º 434/2015 do TSI que: “tudo isto não significa que as Leis n.º 6/80/M e n.º 10/2013 se olvidem do princípio da culpa (imputabilidade), ou sejam indiferentes aos princípios da boa fé – sendo este um princípio que penetra e orienta todo o ordenamento jurídico de Macau”.
32. Regula o art.º 8.º do Código Civil os princípios gerais da interpretação da lei: a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
33. Conforme a referida disposição, para saber o pensamento legislativo do n.º 1 do art.º 48.º da «Lei de Terras», deve o interpretador ter em conta “a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
34. Quanto à unidade do sistema jurídico, como referiu o supracitado Magistrado do MP, é previsto em diversos lugares da «Lei de Terras» que, em caso de “imputabilidade do concessionário/falta da culpa do concessionário”, tem o Chefe do Executivo “poder discricionário para avaliar e determinar se seja ou não justificativo o motivo alegado por concessionário”.
35. Quanto às circunstâncias em que a lei foi elaborada, segundo o Parecer n.º 3/IV/2013 da 1ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, relativo à Lei de Terras, um deputado levantou questões sobre a não conclusão do aproveitamento do terreno por motivo não imputável ao concessionário, e o proponente alegou na sua resposta que os casos possam ser tratados de forma excepcional nos termos da «Lei de Terras».
36. O pensamento legislativo do n.º 1 do art.º 48.º da «Lei de Terras» não deve ser entendido como o de não renovar, indistintamente, as concessões provisórias. Tendo em conta a unidade do sistema jurídico, e as condições em que a lei foi elaborada e aplicada, a interpretação correcta do n.º 1 do art.º 48.º da «Lei de Terras» deve ser a de que as concessões provisórias não podem ser renovadas quando a não conclusão do aproveitamento dentro do prazo de arrendamento seja imputável aos concessionários.
37. Mesmo que não se chegue à referida conclusão através da interpretação jurídica, um operador de Direito diligente pode verificar a existência de lacuna na «Lei de Terras».
38. Verifica-se a lacuna da lei quando o legislador não regule casos de relevância jurídica.
39. Segundo o art.º 41.º da «Lei de Terras», é aplicável subsidiariamente a lei civil, pelo que os princípios fundamentais relativos ao cumprimento de contrato no Código Civil aplicam-se também ao contrato de concessão do terreno, designadamente os princípios da culpa e da boa fé.
40. De acordo com o princípio da culpa, verifica-se o incumprimento do contrato por parte do devedor quando este falte, culposamente, ao cumprimento das obrigações fixadas no contrato, ou seja quando exista dolo ou mera culpa.
41. Cabe à lei regular os casos em que a falta ao cumprimento das obrigações do devedor não lha seja imputável, a fim de garantir os direitos e interesses dos respectivos indivíduos. Cabe à lei regular os casos em que a falta ao cumprimento das obrigações do devedor não lha seja imputável, a fim de garantir os direitos e interesses dos respectivos indivíduos. Se a lei não regule os respectivos casos, será causada ao devedor a parcialidade e injustiça.
42. Para os casos em que a não conclusão do aproveitamento do terreno dentro do prazo de arrendamento não seja imputável ao concessionário, a «Lei de Terras» não prevê a suspensão ou prorrogação do prazo de arrendamento, o que se mostra injusto para os concessionários que não tenham culpa. Daí que, trata-se de lacuna da lei.
43. O art.º 9.º do Código Civil prevê as seguintes formas para integrar as lacunas da lei: uma é a aplicação por analogia, e a outra é a norma que o próprio intérprete criaria.~
44. O legislador da «Lei de Terras» prevê que se a não conclusão do desenvolvimento do terreno dentro do prazo de arrendamento se dever a factores exteriores e força maior, e por motivo não imputável ao concessionário, pode ser suspenso ou prorrogado o prazo de aproveitamento do terreno, a fim de evitar qualquer injustiça provocada para o concessionário.
45. O referido caso é análogo ao caso em que a falta do aproveitamento do terreno no prazo de arrendamento não seja imputável ao concessionário.
46. Salvo melhor entendimento, pode a Administração, ao abrigo do n.º 2 do art.º 9.º do Código Civil, aplicar, por analogia, o art.º 104.º, n.º 5 da «Lei de Terras».
47. Por outra palavra, para o referido caso, mesmo que termine o prazo de arrendamento, a entidade competente ainda pode exercer o seu poder discricionário, autorizar a suspensão ou prorrogação do prazo de arrendamento, e permitir ao concessionário cumprir as suas obrigações e concluir o aproveitamento do terreno.
48. Se forem postas reservas quanto à aplicação analógica do n.º 5 do art.º 104.º da «Lei de Terras» aos casos de expiração do prazo de arrendamento, ainda deve a Administração, de acordo com o n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil, criar soluções específicas conforme o espírito do legislador, a fim de integrar as respectivas lacunas da lei.
49. Com base nos princípios da equidade e da justiça, caso o legislador, ao legislar, note que o não aproveitamento do terreno não é imputável ao concessionário, criará a seguinte solução: conceder ao concessionário um prazo razoável para que este possa concluir o aproveitamento do terreno nele, e a concessão provisória do terreno torna-se definitiva após a conclusão do aproveitamento e a emissão da licença de utilização
50. A Administração não aplicou, por analogia, o n.º 5 do art.º 104.º da «Lei de Terras», nem criou soluções específicas, conforme o espírito do legislador, para o caso em que a não conclusão do aproveitamento do terreno no prazo de arrendamento não era imputável à recorrente.
51. O Digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer no Acórdão do TSI, no Processo n.º 434/2015: o legislador estabeleceu uma regra, isto é, é obrigatória e inevitável a caducidade de qualquer concessão provisória por arrendamento, quando o respectivo aproveitamento não se concluir no prazo da concessão de 25 anos, no entanto, a circunstância no n.º 5 do art.º 104.º constitui a excepção à referida regra, e neste caso, o prazo da concessão não expirará anteriormente ao prazo do aproveitamento.
52. Quer dizer, quando o não aproveitamento do terreno não seja imputável ao concessionário, o prazo de arrendamento não termina de imediato, e pode-se prorrogar, excepcionalmente, o prazo da concessão provisória, em vez de declarar imediatamente a caducidade da concessão do terreno.
53. In casu, o terreno não é aproveitado porque a Administração não entregou, a tempo, o terreno à recorrente, não procedeu oportunamente ao aplanamento do terreno, não concluiu, a tempo, o plano de urbanização da zona industrial de Seac Pai Van, não emitiu à recorrente a planta de alinhamento, e não alterou o contrato de concessão, quer dizer, o não aproveitamento do terreno não é imputável à recorrente.
54. Desta forma, por o não aproveitamento do terreno concedido não ser imputável à recorrente, o Despacho de 15 de Dezembro de 2016 proferido pelo Chefe do Executivo (do qual faz parte integrante o parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 29 de Fevereiro de 2016) aplicou erradamente os dispostos na «Lei de Terras», designadamente o n.º 1 do art.º 48.º.
(vi) Violação da protecção do direito à propriedade privada na «Lei Básica»
55. Os art.ºs 6.º, 103.º e 120.º da «Lei Básica» estipulam expressamente a protecção dos direitos adquiridos por particulares, designadamente o art.º 120.º, que prevê que a RAEM reconhece e protege, em conformidade com a lei, os contratos de concessão de terras legais antes do retorno de Macau e os direitos deles decorrentes.
56. Tal como foi referido na parte relativa à aplicação errada da «Lei de Terras», para efeitos da aplicação correcta da lei, deve a Administração proceder à interpretação correcta da «Lei de Terras», e em caso de lacunas da lei, tomar medidas para as integrar em conformidade com a lei.
57. Mas o Chefe do Executivo não fez isso. Em contrário, declarou-se, directamente, a caducidade do contrato de concessão do terreno, causando à recorrente inocente a perda dos direitos resultantes da concessão do terreno.
58. Tal acto, por si próprio (em vez da «Lei de Terras»), violou os dispostos na «Lei Básica» relativos à protecção do direito à propriedade privada, e à protecção dos contratos de concessão de terras legalmente celebrados antes do retorno de Macau e dos direitos deles decorrentes.
59. Por isso, o acto administrativo de declarar a caducidade da concessão o terreno, praticado pelo Chefe do Executivo com erro no entendimento e na aplicação da «Lei de Terras», violou os art.ºs 6.º, 103.º e 120.º da «Lei Básica», e ofendeu o direito à propriedade privada da recorrente, protegido pela «Lei Básica».
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A entidade recorrida contestou, pugnando pela improcedência do recurso, em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
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O relator proferiu despacho a fls. 107, declarando inexistir razão para produção de prova testemunhal.
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Desse despacho o recorrente apresente reclamação para conferência, que concluiu da seguinte maneira:
“I. Conforme o despacho da fls. 107 dos autos, o Juiz relator entende que há prova documental suficiente nos autos, não é necessário ouvir as testemunhas, só notifica as partes de fazer alegação facultativa.
II. No caso, a recorrente pede provar através da prova testemunhal os factos como os art.ºs 12.º, 13.º, 15.º, 17.º, 19.º, 20.º, 22.º, 25.º a 34.º, 38.º, 39.º, 41.º a 44.º da petição de recurso.
III. Os factos referidos são relevantes para julgamento, especialmente considerando que a recorrente pugna no recurso que falta a audiência dos interessados, o acto recorrido viola os princípios da boa fé e da igualdade, aplica erradamente a Lei das Terras e viola a norma de defesa do direito de propriedade privada, prevista na Lei Básica.
IV. Os referidos factos não podem ser provados simplesmente através da prova documental ou outros meios de prova com força probatória plena, mas sim necessariamente por prova testemunhal.
V. No caso, o Juiz relator forma a convicção sem ter ouvido as testemunhas, sendo ilegal.
VI. Não tendo feito investigação sobre os factos, o despacho do Juiz relator viola os princípios da discussão e da igualdade das partes.
VII. Além disso, como não são conhecidos os factos relevantes para julgamento, o acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo com base nos factos provados padece do vício da insuficiência para decisão dos factos provados.
Pelo exposto, pede-se que seja anulado o despacho objecto da presente reclamação, admitida a prova testemunhal produzida pela recorrente no recurso e efectuada a medida de produção da prova testemunhal, só depois de concluídas todas as medidas de investigação, sejam notificadas as partes de fazer alegação facultativa nos termos do art.º 68.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.”
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A entidade recorrida entende que a reclamação deve improceder.
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Nenhuma das partes apresentou alegações facultativas, nos termos do art. 63º do CPAC.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“I. Quanto à reclamação para a conferência:
A recorrente, ora reclamante, diz que pretendia produzir prova testemunhal para demonstrar a violação de certos princípios reitores da actividade administrativa. Donde, em seu entender, a utilidade dessa prova que ofereceu, cuja produção o despacho reclamado rejeitou.
A fis. 106 verso chegámos a pronunciar-nos no sentido de nada haver a objectar à requerida produção de prova.
Entretanto, nos tribunais superiores de Macau, veio a consolidar-se doutrina segundo a qual a declaração de caducidade pelo decurso do prazo da concessão sem aproveitamento do terreno traduz um poder vinculado, em cujo exercício se revelam inoperantes os princípios de direito administrativo que funcionam como limite ou condicionante da actividade discricionária da Administração.
Atendendo a que o caso em escrutínio nos presentes autos configura uma declaração de caducidade pelo decurso do prazo da concessão sem aproveitamento do terreno, proferida, portanto, a coberto de poder vinculado, parece que a produção da requerida prova não terá interesse para os fins do recurso, vistas as coisas à luz daquela perspectiva que vingou nos tribunais superiores da Região Administrativa Especial de Macau.
Daí que ora nos pronunciemos pela improcedência da reclamação.
II. Quanto ao recurso contencioso:

Objecto do presente recurso contencioso é o acto de 15 de Dezembro de 2016, da autoria do Exm.º Chefe do Executivo que declarou a caducidade da concessão por arrendamento do terreno com a área de 4 870 m2, situado em Coloane, na Zona Industrial de Seac Pai Van, constituído pelo lote denominado SQl, cujo contrato fora titulado por escritura pública de 09 de Novembro de 1990.
A recorrente, “Ieng Four, Limitada”, acha que o acto padece dos vários vícios que lhe imputa na sua petição de recurso, a saber: preterição da formalidade de audiência; violação dos princípios da boa-fé, da colaboração com os particulares e da igualdade; errada aplicação da Lei de Terras; e violação da Lei Básica.
A entidade recorrida, por seu turno, refuta que o acto padeça de qualquer destes vícios, asseverando a sua legalidade e batendo-se pela sua manutenção na ordem jurídica.
Vejamos, começando pela invocada preterição da formalidade essencial de audição.
O princípio da participação dos interessados na formação das decisões administrativas que lhes digam respeito, proclamado no artigo 10.º do Código do Procedimento Administrativo, encontra expressão prática no exercício do direito de audiência previsto nos artigos 93.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo. Finda a instrução, os interessados são convocados ou notificados para exercitarem tal direito. Só assim não será nos casos de inexistência e de dispensa de audição, incluindo-se nos primeiros as hipóteses em que a decisão se revele urgente ou possa ver comprometida a sua execução ou utilidade pela própria audiência, bem como os procedimentos em massa, e pontuando entre os segundos as situações em que os interessados já se hajam pronunciado no procedimento sobre as provas produzidas e sobre as questões pertinentes para a decisão, bem como quando o procedimento aponte para uma decisão favorável aos interessados. Nenhuma destas hipóteses estava em causa, pelo que, tendo havido instrução, havia lugar ao exercício do direito de audição.
Importa, no entanto, ponderar que o acto administrativo em crise é proferido no exercício de poderes vinculados. Entendemos, tal como defende a entidade recorrida, que, preenchidos - que se mostrem os pressupostos da declaração da caducidade preclusiva, tem a Administração a obrigação vinculada de produzir essa declaração. Então, a preterição daquela formalidade, que, como referido, temos por verificada, mostra-se indiferente para o resultado a que tem que chegar a decisão final do procedimento. Qualquer desvio que conduza a um resultado diverso daquele que vinculadamente se impõe há-de relevar noutra sede que não a da falta de audição do interessado. O que significa que, em casos tais, e quando, como no presente, não esteja em causa um direito fundamental de audição, visto que o procedimento não pode considerar-se sancionatório, a formalidade degrada-se em não essencial, sendo de dar prevalência ao interesse inerente ao princípio do aproveitamento do acto.
Tendemos, pois, a pronunciarmo-nos pela improcedência, porque despido de relevância anulatória, do invocado vício de falta de audiência.

Passemos à invocada violação de princípios que regem a actividade administrativa.
Trata-se de princípios cuja acuidade releva no exercício de poderes discricionários. Ora, como vem sendo repetidamente afirmado pela jurisprudência dos tribunais superiores de Macau, verificados os pressupostos falta de aproveitamento e decurso do prazo da concessão provisória, a Administração está vinculada a declarar a caducidade dos contratos de concessão. Foi o que sucedeu no presente caso. Estando em causa, como estava, o exercício de um poder vinculado, aqueles princípios mostram-se inoperantes em termos de poderem influir no sentido e na validade do acto. Se, em casos porventura substancialmente iguais ou idênticos; a Administração decidiu de forma diferente, não o terá feito a coberto da legalidade, não assistindo à recorrente o direito de ver nivelada a decisão do seu caso pela bitola da ilegalidade.
Improcede, pois, a suscitada violação dos princípios da igualdade, da boa-fé e da colaboração da Administração com os particulares.
Em seguida, a recorrente sustenta que o acto não providenciou uma correcta aplicação da Lei de Terras. Basicamente diz que a lei padece de lacuna, ao não prever a possibilidade de suspensão ou prorrogação do prazo de arrendamento, quando o concessionário não é responsável pela falta de realização do aproveitamento no prazo da concessão provisória, como afirma ter sucedido no caso vertente. E então sugere que a Administração deveria, ter aplicado, por analogia, o artigo 104.º, n.º 5, da Lei de Terras, ou criar a normação que, nos termos do artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, permitisse ultrapassar a lacuna.

Não nos parece que haja qualquer lacuna. O articulado do diploma da Lei de Terras, globalmente considerado, permite concluir ter sido intenção legislativa tratar de modo diverso a caducidade ligada aos casos de falta de aproveitamento dos terrenos no prazo estipulado para o efeito e a caducidade pelo decurso do prazo da concessão provisória sem realização do aproveitamento e demarcação definitiva do terreno. Naquela, que é conhecida como caducidade sanção, dá-se relevo à culpa; para esta, que é tratada como caducidade preclusiva, a culpa é indiferente, relevando o decurso do prazo sem que se houvesse operado o aproveitamento que levaria à conversão da concessão em definitiva. Tendo sido este o fito do legislador, não se pode colocar a hipótese de lacuna avançada pela recorrente. Idêntico entendimento parece estar subjacente às considerações tecidas pelo Tribunal' de Última Instância, no seu acórdão de 23 de Maio de 2018, exarado no processo n.º 7/2018, segundo as quais “nenhuma norma permite à Administração considerar suspenso o prazo de concessão provisória ou prorrogá-lo” e “relativamente ao decurso do prazo de 25 anos nenhuma norma permite que o Chefe do Executivo autorize a prorrogação desse prazo ou que o mesmo se considere suspenso, se considerar que o não aproveitamento do terreno não é imputável ao concessionário”.
Claudica, pois, o alegado erro de aplicação da Lei de Terras.
Por fim, a recorrente aponta também ao acto a violação dos artigos 6.º, 103.º e 120.º da Lei Básica e a inerente ofensa do direito à propriedade privada.
Também aqui, cremos que não lhe assiste razão.

A Lei Básica manda proteger o direito à propriedade privada, tal como impõe o reconhecimento e protecção dos contratos de concessão de terras celebrados antes do estabelecimento da RAEM e que se prolonguem para além da data de transferência de soberania.
Mas relega, para a lei, a forma e as condições que moldam essa protecção, como melhor se vê das normas pertinentes (artigos 6.º, 7.º, 103.º e 120.º). Pois bem, no que respeita aos terrenos pertença do antigo Território de Macau e da actual RAEM - terrenos do Estado -, não há concessões por tempo indeterminado. Há prazos de concessão e há regras para o aproveitamento dos terrenos. Esses prazos e regras estão disciplinados por lei e, na maioria dos casos, até são vertidos para os contratos de concessão.
Portanto, a protecção conferida pela Lei Básica é uma protecção subordinada ao cumprimento das regras legalmente instituídas, que se pode esvair com a inobservância dessas regras. E as regras, em matéria de terras, têm como pano de fundo a finalidade social dos direitos associados ao seu uso, o que demanda o seu efectivo aproveitamento nos prazos que o legislador teve por razoáveis, adentro do seu poder de conformação. Daí' que a impossibilidade de renovação das concessões provisórias, que resulta da nova Lei de Terras, como já resultava da antiga lei de Terras, em nada afronte os princípios vertidos naqueles artigos da Lei Básica.
Improcede também este fundamento do recurso.
Ante o exposto, o nosso parecer vai no sentido de ser negado provimento ao recurso.”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
Damos por assente a seguinte factualidade:
1 - Por despacho n.º 162/GM/89 publicado no Boletim Oficial, n.º 52, 4º Suplemento, do dia 29 de Dezembro de 1989, foi autorizada a concessão, por arrendamento e com dispensa de hasta pública, de um terreno, sito na zona industrial de Seac Pai Van, lote “SQ1”, na ilha de Coloane (adiante designado por “terreno concedido”), à Empresa de Construção e Obras de Engenharia, San Tak Fat, Limitada (presente “IENG FOUR LIMITADA”).
2 - No dia 9 de Novembro de 1990, o então Governo de Macau outorgou com a Empresa de Construção e Obras de Engenharia, San Tak Fat, Limitada a escritura pública do contrato de concessão do terreno sito na zona industrial de Seac Pai Van, lote “SQ1”, na ilha de Coloane.
3 - De acordo com a cláusula 3ª do contrato de concessão, o terreno concedido é aproveitado com a construção de um edifício industrial de 2 pisos, em regime de propriedade horizontal, e o estabelecimento de uma zona ao ar livre para a produção de asfalto. O rés-do-chão do edifício industrial e a zona ao ar livre são para uso próprio da recorrente.
4 - Segundo a cláusula 2ª, n.º 1 do contrato de concessão, o arrendamento é valido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da outorga da respectiva escritura pública.
5 - Segundo a cláusula 2ª, n.º 2 do contrato de concessão, o prazo de arrendamento fixado no número anterior poderá, nos termos da lei aplicável, ser renovado até 19 de Dezembro de 2049.
6 - Desta forma, o prazo de arrendamento do terreno concedido foi contado a partir da data da outorga da escritura pública, ou seja expirou no dia 8 de Novembro de 2015.
7 - O Chefe do Executivo proferiu despacho no dia 15 de Dezembro de 2016, declarando a caducidade da concessão do referido terreno.
8 - Em 1 de Março de 1990, a recorrente apresentou requerimento à Administração, indicando que por falta de dados das cotas de soleira, exigiu à Administração que o prazo para a entrega do projecto de arquitectura fosse contado a partir da aquisição dos dados das cotas de soleira. (vide as fls. 201 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT)
9 - De acordo com a informação n.º 63/90 constante das fls. 202 a 204 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT, não existiu na zona industrial de Seac Pai Van qualquer infra-estrutura, incluindo via, água, energia e canal.
10 - No dia 22 de Março de 1990, a então Direcção dos Serviços de Programação e Coordenação de Empreendimentos proferiu despacho, exigindo que a DSSOPT fornecesse o prazo para a elaboração do programa de infra-estrutura, para que pudesse fixar, com base nesse prazo, o prazo para a entrega, por parte da concessionária, do projecto de arquitectura. (vide as fls. 204 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT)
11 - No dia 2 de Dezembro de 1993, a então DSSOPT notificou, por via do Ofício n.º 862/8118.1/SOLDEP/93, a recorrente de que pretendeu alterar a finalidade do lote em Seac Pai Van, de indústria para habitação, e iria encarregar uma companhia de actualização e loteamento do terreno, pelo que perguntou à recorrente se concordou com a alteração do contrato de concessão ou a troca por outro terreno de finalidade industrial. (vide as fls. 236 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT, e as fls. 27 do Processo n.º 5/2016 da Comissão de Terras)
12 - Em 10 de Maio de 2001, a recorrente apresentou requerimento à DSSOPT, salientou de novo que a Administração nunca lhe entregou o terreno concedido, o que resultou na impossibilidade do desenvolvimento do terreno concedido, exigindo que a Administração indicasse a data em que podia aproveitar o terreno. (vide as fls. 241 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT, e as fls. 29 do Processo n.º 5/2016 da Comissão de Terras)
13 - Mas a DSSOPT não deu nenhuma resposta ao supracitado requerimento.
14 - Segundo a nota interna n.º 187/DPU/2001 de 28 de Maio de 2001 do Departamento de Planeamento Urbanístico da DSSOPT, estava em curso a alteração do planeamento urbanístico de Seac Pai Van, e por o superior ainda não ter proferido despacho em relação ao programa do planeamento urbanístico de Seac Pai Van, não era possível pronunciar-se sobre o requerimento apresentado pela recorrente em 10 de Maio de 2001. (vide as fls. 245 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT, e as fls. 30 do Processo n.º 5/2016 da Comissão de Terras)
15 - Devido à falta de infra-estrutura e planeamento urbanístico de Coloane, encontraram-se suspensos todos os processos de aproveitamento dos terrenos em Seac Pai Van, e estavam realizados estudos sobre o planeamento urbanístico da nova zona residencial. Por ainda não ser concluída a alteração do contrato de concessão com Empimac (pedreira Empimac), não serem fixadas as condições urbanísticas e não ser realizada a recuperação paisagística da encosta, a Administração ainda não aprovou a distinção e as finalidades dos terrenos da zona industrial de Seac Pai Van. Indicou-se ao mesmo tempo que a Administração não autorizou a ocupação, por parte dos concessionários, dos terrenos da zona industrial de Seac Pai Van. (vide a nota interna n.º 205/8104 a 8121.01/2007 de 8 de Junho de 2007 a fls. 251 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT)
16 - No dia 21 de Janeiro de 2011, a DSSOPT enviou uma carta à recorrente, solicitando o depósito temporário de brita no terreno concedido. (vide as fls. 257 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT, e as fls. 33 do Processo n.º 5/2016 da Comissão de Terras)
17 - No dia 17 de Fevereiro de 2011, a recorrente deu resposta à DSSOPT, concordando em emprestar o terreno concedido para o depósito de brita até 30 de Julho de 2011, e com a realização de obras de aplanamento do terreno e rede rodoviário no terreno concedido. (vide as fls. 265 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT, e as fls. 34 do Processo n.º 5/2016 da Comissão de Terras)
18 - Por ofício n.º 261/8118.02/DSODEP/2011, a DSSOPT não manifestou a sua oposição à finalidade da concessão do terreno, à altura do edifício e ao índice de utilização dos solos constantes do supracitado requerimento da recorrente, mas depois não mandou qualquer pessoa negociar com a recorrente outros pormenores do planeamento do terreno concedido e a alteração do contrato de concessão. (vide as fls. 287 do Processo n.º 8118 do Departamento de Gestão de Solos da DSSOPT)
19 - De acordo com o Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 15/2012, publicado no Boletim Oficial, n.º 18, II Série, do dia 2 de Maio de 2012, foi autorizada a permuta de terrenos com a
concessionária do lote SN da zona industrial de Seac Pai Van, Fabrico de Artigos de Plástico e Desenvolvimento Imobiliário Xin Zhi Zhong Hua, Limitada, sendo concedido de novo a esta sociedade um terreno situado na ilha de Coloane, junto à Estrada do Altinho de Ká Hó, na zona industrial de Seac Pai Van, designado por lote “SIl”. (vide o Doc. n.º 2 junto com a p.i.).
20 - Reunida em sessão de 19 de Fevereiro de 2016, a Comissão de Terras exarou no seu Parecer n.º 26/2016, o seguinte: «Face ao exposto, esta Comissão, após ter analisado o processo, considera que a concessão provisória em apreço se encontra já caducada pelo facto de ter expirado em 8 de Novembro de 2015 o prazo de arrendamento, de 25 anos, fixado na cláusula segunda do respectivo contrato (caducidade preclusiva).

Com efeito, de acordo com o artigo 44.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras), aplicável ao caso vertente por força do disposto nos seus artigos 212.º e 215.º, a concessão por arrendamento é inicialmente dada a título provisório e só se converte em definitiva se, no decurso do prazo fixado, forem cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas e o terreno estiver demarcado definitivamente (vide ainda artigos 130.º e 131.º).
Findo o seu prazo de vigência, as concessões provisórias não podem ser renovadas, a não ser no caso previsto no n.º 2 do artigo 48.º da Lei de terras, conforme estabelece o n.º 1 do mesmo preceito legal, operando-se a caducidade por força da verificação daquele facto (decurso do prazo de arrendamento).
De igual modo, resultava da Lei n. º 6/80/M, de 5 de Julho (Lei de terras anterior), que no caso da concessão revestir natureza provisória em virtude do terreno não se encontrar aproveitado (cf artigos 49.º, 132.º e 133.º), não era possível operar a sua renovação por períodos sucessivos de dez anos porquanto a figura da renovação prevista no n.º 1 do artigo 55.º era aplicável apenas às concessões definitivas.
Apesar da caducidade operar de forma automática e directa, para tornar a situação jurídica certa e incontestada e, portanto, eliminar a insegurança jurídica sobre a extinção ou não do direito resultante da concessão, deve a mesma (caducidade) ser declarada, conforme decorre do disposto no corpo do artigo 167.º da Lei n.º 10/2013.
Nestas circunstâncias, esta Comissão nada tem a opor à declaração de caducidade da concessão do terreno em epígrafe pelo decurso do prazo de arrendamento, perdendo a concessionária a favor da Região Administrativa Especial de Macau todas as prestações do prémio e os respectivos juros já pagos, nos termos do disposto no artigo 13.º do Regulamento Administrativo n.º 16/2004».

21 - E concluiu esse mesmo Parecer n.º 26/2016: «após ter analisado o processo e ter tido em consideração o parecer e proposta constantes na proposta n.º 387/DSODEP/2015, de 17 de Dezembro de 2015, bem como o despacho nela exarado pelo STOP, de 3 de Fevereiro de 2016, considera que verificada a caducidade da concessão pelo termo do prazo de arrendamento em 8 e Novembro de 2015, deve esta caducidade ser declarada por despacho do Chefe do Executivo».
22 - Em 29 de Fevereiro de 2016, o Secretário para os Transportes e Obras Públicas emitiu parecer, que aqui se dá por reproduzido, e que concluiu nos seguintes termos: «Consultado o processo supra mencionado e concordando com o que vem proposto, solicito a Sua Excelência o Chefe do Executivo que declare a caducidade da concessão do referido terreno».
23 - A Entidade Recorrida, em 15 de Dezembro de 2016, emitiu o seguinte despacho: «Concordo, pelo que declaro a caducidade da concessão, por arrendamento e com dispensa de hasta pública, a que se refere o Processo n.º 5/2016 da Comissão de Terras, nos termos e com os fundamentos que constam do Parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 29 de Fevereiro de 2016, os quais fazem parte integrante do presente despacho».
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III – O Direito
DA RECLAMAÇÃO
- Está em causa o despacho de fls.107, em que o relator decidiu o seguinte:
“Tal como temos considerado em casos semelhantes a este, cremos que também nos presentes autos há elementos documentais suficientes ao conhecimento do recurso contencioso sem necessidade de prova testemunhal.
Assim, porque nos achamos aptos a avançar para a fase decisória, notifique as partes para apresentarem, querendo, alegações, nos termos do art. 63º, nº1, do CPAC”.
É de manter este despacho.
Com efeito, está em causa a apreciação da validade do acto que declara a caducidade da concessão pelo decurso do prazo geral desta. Isto é, o fundamento para a prática do acto é a objectividade do tempo, sem interferência de qualquer carga subjectiva traduzida em juízos de imputabilidade de culpa. Estamos, pois, em sede de uma caducidade preclusiva, em que o que releva é somente o facto objectivo do decurso do prazo, é o que a jurisprudência da RAEM tem por adquirido (v.g., Acs. do TUI, de 6/06/2018, Proc. nº 43/2018 e de 11/10/2017, Proc. nº 28/2017; Ac. do TSI, de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016; de 1/02/2018, Proc. nº 26/2017 e de 26/04/2018, Proc. nº 767/2016; Ac. de 18/10/2018, Proc. nº 419/2017).
Ora, para se apurar da validade da decisão administrativa não são precisos mais elementos de prova do que aqueles que a própria recorrente aportou ao processo e aqueles que o processo administrativo apenso contém. Aliás, sempre se acrescenta que a maior parte dos factos aludidos aos que as testemunhas deporiam, como se pode ver do rol junto com a p.i., acabaram por ser vertidos na factualidade assente acima transcrita, face à não impugnação pela entidade recorrida, omissão que se compreende pela circunstância de serem factos com suporte documental no p.a.
Face ao exposto, é de indeferir a reclamação.
Pelo incidente, taxa de justiça em 4 UCs a cargo da reclamante.
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DO RECURSO CONTENCIOSO
1. Os vícios imputados ao acto foram:
- Falta de audiência de interessados;
- Violação do princípio da boa fé;
- Violação do princípio da igualdade;
- Violação dos arts. 48º,nº1, da Lei nº 10/2013 (Lei de Terras);
- Violação dos arts. 6º, 103º, nº1, 120º, nº1, da Lei Básica, por ofensa ao direito à propriedade privada.
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2. Da falta de audiência prévia
Pretende a recorrente obter a anulação da decisão administrativa aqui impugnada, com fundamento nos arts. 10º e 93º do CPA.
Vejamos.
Não teve lugar essa diligência no procedimento em causa nos autos, isso é certo. Cremos, porém, que a pretendida anulação não pode ser decretada.
Como tem sido assinalado pela jurisprudência do TUI e do TSI, a declaração de caducidade de concessão pelo decurso do prazo sem aproveitamento constitui actividade vinculada: A entidade administrativa competente não tinha outro remédio senão declarar a caducidade (caducidade-preclusão): não tinha poder discricionário de a declarar ou não; estava vinculado a fazê-lo, por ser matéria que escapa à disponibilidade das partes em afastar o limite temporal absoluto e peremptório (neste sentido, Ac. do TUI, de 31/01/2019, Proc. nº 62/2017; e do TSI, de 2/06/2016, Proc. nº 179/2016/A, de 24/11/2016, Proc. nº 1074/2015; de 2/03/2017, Proc. nº 433/2015; 13/07/2017, Proc. nº 743/2016; de 21/09/2017, Proc. nº 672/2015; de 20/07/2017, Proc. nº 15/2016, entre tantos outros).
Portanto, sendo inquestionável que a situação representada neste procedimento administrativo convergiu para um acto administrativo vinculado, então a falta desta formalidade não se mostra relevante, ao abrigo do princípio do aproveitamento do acto administrativo, uma vez que se chegue à conclusão de que o despacho impugnado só poderia ter o conteúdo que efectivamente teve e mais nenhum outro. Em tal situação, como também se costuma dizer, aquela formalidade degrada-se em formalidade não essencial (v.g. Ac. TUI, de 13/01/2016, Proc. nº 79/2015; ou do TSI, de 8/05/2014, Proc. nº 489/2012).
De resto, também este TSI teve já oportunidade de afirmar, “A realização da audiência de interessados só se imporá se, apresentado o pedido à Administração, ele tiver tido um desenvolvimento tramitacional com vista à recolha de elementos indispensáveis à decisão. Nisso consiste a instrução de que fala o art. 93º do CPA. (…) Tal formalidade mostra-se imprescindível nos casos de actividade discricionária, pois aí o papel do interessado pode revelar-se muito útil, decisivo até, ao sentido do conteúdo final do acto. Mas, noutros casos em que é vinculada a actividade administrativa, a audiência pode degradar-se em formalidade não essencial se for de entender que outra não podia ser a solução tomada face à lei (Ac. de 24/04/2014, Proc. nº 512/2012).
No mesmo sentido, Ac. do TUI, de 25/07/2012, de 25/04/2012 ou 23/05/2018, nos Processos nºs 48/2012, 11/2012 e 7/2017, respectivamente. Também do TSI, de 9/11/2017, 1/02/2018, 14/06/2018, 5/07/2018, nos Processos nºs 375/2016, 26/2017, 16/2017 e 633/2017, respectivamente.
E como concluímos que outro não podia ser o conteúdo deste acto declarativo, então a falta de audiência é aqui totalmente inconsequente do ponto de vista da imputada invalidade.
Sendo assim, este vício deve ter-se por improcedente.
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3. Da violação do princípio da boa-fé
A conclusão alcançada no ponto anterior leva-nos a afastar a verificação do vício aqui em análise.
Com efeito, o princípio da boa-fé (cfr. art. 8º, do CPA) é característico de uma actividade discricionária, como é sabido. Neste sentido, entre outros, ver:
- Ac. do TUI, de 8/06/2016, Proc. nº 9/2016;
- Ac. do TUI, de 22/06/2016, Proc. nº 32/2016;
- Ac. do TSI, de 7/07/2016, Proc. nº 434/2015;
- Ac. do TSI, de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016;
- Ac. do TSI, de 15/03/2018, Proc. nº 299/2013;
- Ac. do TSI, de 26/04/2018, Proc. nº 767/2016
- Ac. do TSI, de 14/06/2018, Proc. nº 16/2017;
- Ac. do TSI, de 5/07/2018, Proc. nº 633/2017;
- Ac. do TSI, de 18/10/2018, Proc. nº 370/2016.
Ora, sendo vinculada ope legis a actividade em apreço, não tem relevância o papel da vontade do administrador. É da lei que advém, fatalmente a vinculação da Administração à imperiosidade da declaração de caducidade.
Isto é, têm entendido os tribunais de Macau, e com razão, que, decorrido o prazo da concessão sem que o aproveitamento tenha sido efectuado tal como contratualmente convencionado, à contraente pública outra solução não resta senão declarar a caducidade (ver arestos citados), sem interferência de regras e princípios de direito administrativo privativos da discricionariedade.
Improcede, pois, o vício.
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4. Da violação do princípio da igualdade
Valem em relação à pretensa violação do princípio da igualdade (art. 5º, do CPA) os considerandos efectuados a propósito da violação do princípio da boa fé.
Acrescente-se somente que, mesmo que a Administração tenha eventualmente procedido diferentemente em relação outro interessado em igualdade de situação, o que importa sublinhar é que, sendo certo que a Administração tem que agir (vinculadamente) conforme manda a lei, é de todo inoperante que a verificação de casos pretensamente iguais com decisão diferente. Isto o dizemos porque não se pode exigir que ela volte a agir ilegalmente mais uma vez, agora a favor da recorrente. O princípio da igualdade não funciona na ilegalidade.
Improcede, pois, o vício.
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5. Violação dos arts. 48º,nº1, da Lei nº 10/2013 (Lei de Terras);
Está em causa o disposto no art. 48º da Lei de Terras e que a recorrente acha ter sido violado.
Trata-se de um preceito que consigna que as concessões provisórias não podem ser renovadas (nº1), salvo nos casos em que o terreno se encontre anexado a um terreno concedido a título definitivo e ambos estejam a ser aproveitados em conjunto (nº2).
Pretende a recorrente fazer-nos ver que a culpa (que acha não ser sua quanto à não conclusão do aproveitamento), não está arredada da necessária análise a propósito da renovabilidade da concessão.
Este TSI, porém, também já analisou este argumento noutras ocasiões, para concluir que se trata de questão não procedente sempre que o acto impugnado assenta no mero decurso do prazo de caducidade. É o que aqui sucede: o que foi declarada foi a caducidade preclusiva com alicerce nos arts. 167º e 212º e 215º, da Lei de Terras.
E, como é jurisprudência firme da RAEM, a culpa, nesse caso, é indiferente à solução do recurso, já que a declaração administrativa da caducidade não tem que ver com eventuais razões impeditivas, ou obstaculizantes, do aproveitamento. O que releva é somente o facto objectivo do decurso do prazo, tal como a jurisprudência da RAEM tem por inquestionável.
Só para citar alguns, vejam-se os seguintes:
- Ac. do TUI, de 6/06/2018, Proc. nº 43/2018;
- Ac. do TUI, de 11/10/2017, Proc. nº 28/2017;
- Ac. do TSI, de 19/10/2017, Proc. nº 179/2016;
- Ac. de 1/02/2018, Proc. nº 26/2017;
- Ac. de 26/04/2018, Proc. nº 767/2016;
- Ac. de 18/10/2018, Proc. nº 419/2017;
- Ac. do TSI, de 18/10/2018, Proc. nº 370/2016.
Não vemos motivo para alterar a nossa posição. Ocorreu, sim, a caducidade preclusiva e a Administração não tinha possibilidade de agir diferentemente.
Para terminar, resta dizer que a invocação dos arts. 66º e 75º, nº1, al. 1) da Pei de Terras não serve o desígnio da recorrente, porquanto se aplicam a situações diferentes reportadas a concessões gratuitas, o que não é o caso, de nada valendo a invocação da unidade do sistema jurídico, nem a defesa de aplicação analógica de preceitos da Lei, como o 104º, nº5, até porque a “fattispecie” desta disposição em tudo difere da situação dos autos.
Razão por que improcede o vício invocado a este respeito.
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6. Violação do art. 6º, 103º, nº1, 120º, nº1, da Lei Básica, por ofensa ao direito à propriedade privada.
Não se entende em que medida os preceitos invocados se podem mostrar úteis à resolução do caso sob o ponto de vista agora alegado. De qualquer maneira, se o que a impugnante pretende é chamar a atenção para o desrespeito de direitos nascidos antes de 19/12/1999, então somos a dizer que a “propriedade privada” da recorrente não está, nem podia estar, na mira do acto, que apenas se limita a dar por cessada a “concessão”.
Aliás, sobre o art. 120º, teve este TSI já a oportunidade de adiantar que “É correcto afirmar que a Lei Básica, no corpo do artigo, reconhece e protege os contratos de concessão de terras celebrados, e os direitos deles decorrentes, antes do estabelecimento da RAEM que se prolonguem para depois de 19/12/1999. Mas tal segmento normativo apenas pode ser utilizado para consagrar o respeito que a RAEM deve reconhecer aos direitos emergentes dos contratos que se encontrem em vigor após 19/12/1999. Ora, quanto a este aspecto, e como já tivemos ocasião de observar, o contrato celebrado em nada impedia a prática do acto administrativo que aqui está em apreciação, por em nada ter afrontado o clausulado inicial do contrato e das suas revisões.
E mesmo quanto ao seu parágrafo único1, igualmente não encontramos no acto nenhuma ofensa à força imperativa deste inciso legal, se pensarmos que ele se limita a mandar aplicar às novas concessões e às renovações (quando possíveis, obviamente) o regime legal e as “políticas” que vierem a ser produzidos já no âmbito da RAEM. A imposição que brota deste parágrafo está, de resto, em sintonia com o art. 11º do Código Civil e com o princípio tempus regit actum.» (no mesmo sentido, Ac. do TSI, 26/04/2018, Proc. nº 767/2016 acima citado)” (Ac. do TSI, de 4/04/2019, Proc. nº 571/2018).
Improcede, pois, o vício.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em 20Ucs.
T.S.I., 11 de Julho de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Joaquim Teixeira de Sousa





1 “As concessões de terras feitas ou renovadas após o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau são tratadas em conformidade com as leis e políticas respeitantes a terras da Região Administrativa Especial de Macau”.
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Proc. nº 155/2017 30