Processo n.º 227/2018 Data do acórdão: 2019-6-20
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– leges artis
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 227/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrente (assistente): A
Recorrido (arguido): B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 233 a 239v do Processo Comum Colectivo n.° CR4-17-0257-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou absolvido o arguido B, aí já melhor identificado, do pronunciado crime consumado, em autoria material, de emissão de cheque sem provisão em valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo art.o 214.o, n.os 1 e 2, alínea a), do Código Penal (CP).
Inconformada, veio a ofendida A, já constituída assistente, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, na sua motivação apresentada a fls. 249 a 269 dos presentes autos correspondentes, que a referida decisão absolutória penal padece dos vícios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, para rogar a condenação penal directa do arguido nos termos pelos quais já vinha pronunciado.
Ao recurso, respondeu a fls. 272 a 278v o Digno Procurador-Adjunto junto do Tribunal recorrido, no sentido de manutenção do julgado.
Respondeu também o arguido, defendendo a fls. 279 a 301 o não provimento ou até a rejeição do recurso.
Subido o recurso, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 311 a 312, pugnando pela verificação do crime por que vinha pronunciado o arguido.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 233 a 239v, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido;
– conforme o facto provado 1 descrito nesse aresto, no dia 1 de Janeiro de 2014, a ora assistente recorrente e o ora recorrido arguido (sendo este na qualidade de promotor de jogos) celebraram de novo um contrato de concessão de facilidades de crédito (a que se refere o documento 1 junto à queixa-crime), segundo o qual aquela se obrigou a disponibilizar crédito a este até ao montante máximo de quarenta milhões de dólares de Hong Kong;
– no último parágrafo da cláusula “3.4” desse contrato de empréstimo a promotor de jogos consubstanciado no teor do dito documento 1 (ora constante de fls. 15 a 24, assinado inclusivamente pelo arguido recorrido em 29 de Novembro de 2013, sendo de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2014 o período de vigência desse próprio contrato) então junto à queixa-crime apresentada por via escrita (a fls. 11 a 14) pela ora recorrente, o arguido, na qualidade de mutuário, autoriza a recorrente, ali como mutuante, a preencher, nos termos por esta tidos por adequados, o espaço em branco (incluindo o espaço em branco referente à data do cheque) do cheque dado em garantia das facilidades de crédito em causa;
– em sintonia com a cláusula “5.1” desse contrato, a mutuante tem direito a executar a garantia, se a dívida não for paga em tempo;
– o arguido declarou na audiência de julgamento em primeira instância que não fazia ideia sobre o conteúdo das cláusulas dos contratos de empréstimo assinados com a assistente ora recorrente (cfr. o teor das suas declarações resumidas no primeiro parágrafo da fundamentação probatória do aresto recorrido, a fl. 236v);
– na mesma audiência de julgamento, o arguido declarou também que: se lembrava ele de que ainda devia mais de vinte e dois milhões à assistente; a sala de jogos em causa foi encerrada em Março de 2014, pelo que ele foi cancelar a conta bancária à luz da qual tinha sido emitido o cheque dos autos então dado em 2011 à assistente para garantia das facilidades de crédito, cheque esse assinado pela sua própria mão, com o montante do cheque e o nome do beneficário do cheque também por ele preenchidos; ao cancelar, em finais de Dezembro de 2014, a conta do cheque em causa, não chegou a comunicar isto à assistente (cfr. o teor das declarações do arguido resumidas no mesmo primeiro parágrafo da fundamentação probatória do aresto recorrido).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando:
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, sabe-se que o Tribunal recorrido deu por não provados todos os factos pronunciados que tivessem a ver com a afirmação do dolo do arguido na prática do crime de emissão de cheque sem provisão, por entender esse Tribunal que como o arguido não chegou a receber a carta de notificação enviada pela assistente para ele pagar a dívida sob pena de preenchimento, pela assistente, da data do cheque e de apresentação do cheque a pagamento, não pode dar provado, nomeadamente, que o arguido tenha ficado consciente da falta de fundos na conta do cheque para efeitos de pagamento da dívida.
Entretanto, este raciocínio do Tribunal recorrido compromete patentemente as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, por seguintes razões:
De facto, sem qualquer garantia oferecida à assistente, é impensável, para qualquer homem médio colocado na situação concreta da relação contratual entre ela e o arguido, que ela esteja disposta a conceder a este facilidades de crédito até ao avultado montante de quarenta milhões dólares de Hong Kong.
Assim, foi exactamente para garantir essa linha de crédito que o cheque dos autos foi assinado e entregue pelo arguido à assistente, no valor pecuniário preenchido pela própria mão dele, em quarenta milhões de dólares de Hong Kong.
Por outro lado, atento também esse limite de montante avultado de facilidades de crédito, qualquer homem médio colocado na situação concreta do arguido não acredita que este não tenha feito ideia do clausulado contratual em causa.
Portanto, ele deveria ter sabido bem que a vigência do contrato em causa iria terminar apenas em 31 de Dezembro de 2014 e que a falta de pagamento tempestivo da dívida iria fazer executar o cheque então dado por ele à assistente em garantia, e sabia ele (conforme o declarado por ele na audiência de julgamento em primeira instância) que encerrada a sala de jogos em causa em Março de 2014, ainda devia dinheiro à assistente mutuante no valor de mais de vinte e dois milhões, com a agravante de que não comunicou ele à assistente o seu acto de encerramento, em finais de Dezembro de 2014, da conta do dito cheque, não é crível, para qualquer homem médio colocado na situação concreta desse caso, que ele não tenha sabido da inexistência de fundos suficientes na conta do mesmo cheque para efeitos de pagamento do montante em dívida à assistente.
É, pois, de reenviar, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, o objecto do processo para novo julgamento por um novo Tribunal Colectivo, na parte somente respeitante aos factos pronunciados 8 (com excepção da parte inicial do conteúdo deste facto pronunciado 8), 9, 10, 11 e 12.
Com o assim concluído, já não é mister conhecer do outro vício assacado pela recorrente à decisão recorrida, qual seja, o de contradição insanável da fundamentação.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, reenviando o processo para novo julgamento nos termos acima especificados.
As custas do presente recurso (com três UC de taxa de justiça) ficam a cargo do arguido, por ter ele defendido a improcedência do recurso.
Macau, 20 de Junho de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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