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Processo n.º 748/2018 Data do acórdão: 2019-5-30
Assuntos:
– acidente de viação
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– leges artis
– livre apreciação da prova
– art.o 114.o do Código de Processo Penal
– prova livre
– prova bastante
S U M Á R I O
1. Haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. O princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do Código de Processo Penal não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que com incidência sobre o caso concreto em questão não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração. Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova.
3. No concernente à temática da prova livre, as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto.
4. Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto. Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 748/2018
Recorrente (demandada civil):
A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão condenatório proferido a fls. 345 a 352 do Processo Comum Colectivo n.° CR1-17-0392-PCC (com enxerto cível de indemnização emergente de acidente de viação) do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte em que se julgou atribuir culpa exclusiva ao condutor do veículo automóvel ligeiro dos autos pela produção do acidente de viação em consideração, veio recorrer a demandada civil denominada A, imputando a essa decisão judicial, materialmente falando, erro notório na apreciação da prova, para rogar que fosse reduzida a percentagem da culpa daquele condutor na ocorrência do acidente, com pretendida atribuição de maior percentagem de culpa ao sinistrado, alegando, para o efeito, e na sua essência, que do conjunto de elementos de prova dos autos se retiraria, através de um processo racional e lógico, por recurso às regras de experiência comum, a conclusão irrecusável de terem sido o condutor e a vítima mortal ambos responsáveis pelo acidente (cfr. a motivação de recurso de fls. 377 a 389 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a parte demandante civil (a fls. 396 a 400 dos autos), no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta que não tinha legitimidade para emitir parecer, por estar em causa matéria só civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 345 a 352, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Da fundamentação probatória da decisão condenatória recorrida, consta que o arguido, que também foi demandado civilmente nos autos, declarou, na audiência de julgamento, que no momento em que o veículo automóvel por si conduzido embateu na vítima, ele, por estar com olhos atentos na luz verde dos semáforos, não reparou na vítima, e só após o embate é que soube travar o veículo, e foi por isso que o veículo apenas ficou travado após percorrido uma distância relativamente longa (cfr. o escrito no primeiro parágrafo da fundamentação probatória da decisão judicial recorrida, a fl. 347v dos autos).
3. Da fundamentação jurídica da decisão condenatória recorrida, consta escrito que o Tribunal recorrido decidiu atribuir culpa exclusiva ao arguido demandado pela produção do acidente de viação em causa, por considerar que este violou a regra estradal vertida no art.o 37.o, n.o 1, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR) (cfr. o escrito no último parágrafo da página 9 do texto do acórdão recorrido, a fl. 349).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando:
A recorrente, sendo seguradora do veículo automóvel conduzido pelo arguido demandado aquando da ocorrência do acidente de viação dos autos, veio esgrimir materialmente à decisão judicial recorrida erro notório na apreciação da prova, para pretender a redução da percentagem da culpa do condutor demandado na produção do acidente.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP) quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, resulta que a livre convicção do Tribunal recorrido na parte respeitante à indagação da conduta do condutor demandado aquando do embate do veículo por si conduzido na vítima se baseou sobretudo nas declarações do mesmo condutor na audiência de julgamento.
Por outro lado, a ocorrência do acidente de viação em questão foi gravada por sistema de vigilância montado sobre a via pública em causa.
Assim sendo, é evidente que o Tribunal recorrido não violou qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, nem violou qualquer regra da experiência da vida humana, nem violou quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel.
Por isso, improcede o arguido vício de erro notório na apreciação da prova.
Resta saber se é de manter a percentagem (total) da culpa do condutor como tal decidida no aresto recorrido.
Com base na matéria de facto dada por provada em primeira instância, o Tribunal a quo considerou que o condutor demandado teve culpa exclusiva pela produção do acidente de viação, ao ter violado, precisamente, a regra estradal do art.o 37.o, n.o 1, da LTR, que preceitua que “Ao aproximar-se de uma passagem para peões sinalizada, junto da qual o trânsito de veículos e de peões, ou só o primeiro, está regulado por sinalização luminosa ou por agente, o condutor deve, mesmo que autorizado a avançar, deixar passar os peões que já tenham iniciado o atravessamento da faixa de rodagem”.
A matéria de facto provada em primeira instância suporta realmente a integração cabal da conduta de condução do arguido demandado nessa norma jurídica.
Entretanto, o peão (a vítima), no momento da ocorrência do acidente, estava a atravessar a via pública em questão quando os semáforos estavam com luz verde para o lado do veículo do arguido demandado.
Por isso, há concorrência da culpa, entre o condutor demandado e o peão vítima, pela produção do acidente.
Ante todas as circunstâncias fácticas apuradas em primeira instância, e ponderando sobretudo que se tratou de um dia com chuva, com pavimento molhado, o que deveria reclamar, por parte de qualquer condutor do tipo de homem médio, redobrado zelo pelas circunstâncias à volta, sendo, porém, certo que o condutor dos autos, segundo o que ele declarou na audiência de julgamento, só olhou para a luz verde dos semáforos, é de passar a atribuir 90% de culpa ao condutor pela produção do acidente.
Procede, assim, parcialmente o recurso, com o que a quantia total indemnizatória atribuída no aresto recorrido a favor da parte demandante civil deverá ser reduzida a 90% (MOP1.236.000,00 x 90% = MOP1.112.400,00), por ser de considerar, como decorre da análise acima feita, que a vítima do acidente teve 10% de culpa pela produção do acidente.
Quanto aos juros legais da quantia indemnizatória civil, estes serão devidos a partir de hoje até integral e efectivo pagamento (conforme o douto Acórdão Uniformazador de Jurisprudência do Venerando Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, no Processo n.o 69/2010).
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, ficando, por conseguinte, a quantia total indemnizatória atribuída no acórdão recorrido reduzida a 90%, passando a seguradora ora recorrente a ser condenada a pagar à parte demandante civil a quantia de MOP1.112.400,00 (um milhão, cento e doze mil e quatrocentas patacas), com juros legais a contar de hoje até integral e efectivo pagamento.
Custas do pedido civil em ambas as Instâncias pela parte demandante civil e pela seguradora ora recorrente, na proporção dos respectivos decaimentos.
Macau, 30 de Maio de 2019.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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